quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Harry Potter e o Cálice de Fogo (7/7)
CAPÍTULO TRINTA E UM
A Terceira Tarefa
— Dumbledore também acha que Você-Sabe-Quem está se fortalecendo outra vez? — sussurrou Rony.
Tudo que Harry vira na Penseira, e quase tudo que Dumbledore lhe contara e mostrara depois, ele agora estava dividindo com Rony e Hermione — e, é claro, com Sirius, a quem Harry enviara uma coruja assim que saíra do escritório do diretor. Mais uma vez os três garotos ficaram acordados até tarde na sala comunal, discutindo os acontecimentos até que a cabeça de Harry começou a rodar, até que ele compreendeu o que Dumbledore quisera dizer quando falara em uma cabeça ficar tão cheia de pensamentos que era um alívio esvaziá-la.
Rony ficou olhando fixamente para as chamas na lareira.
Harry achou que o viu estremecer levemente, embora a noite não estivesse fria.
— E ele confia em Snape? — tornou a perguntar Rony. — Confia realmente em Snape, mesmo que o cara tenha sido um Comensal da Morte?
— Sim — disse Harry.
Hermione não falava havia dez minutos. Estava sentada com a testa apoiada nas mãos, fitando os joelhos. Harry pensou que ela também faria bom uso de uma Penseira.
— Rita Skeeter — murmurou ela finalmente.
— Como é que você pode estar preocupada com ela agora? — indagou Rony, incrédulo.
— Não estou preocupada com ela — respondeu Hermione para os próprios joelhos. — Só estou pensando... Lembra o que ela me disse no Três Vassouras? "Sei coisas sobre Ludo Bagman que a deixariam de cabelo em pé”. Era a isso que ela estava se referindo, não é? Ela fez a cobertura do julgamento, sabia que ele tinha passado informações para os Comensais da Morte. E Winky, também, lembra: “O Sr. Bagman é um bruxo malvado”. O Sr. Crouch provavelmente ficou furioso quando Bagman se livrou da prisão, e comentou isso em casa.
— É, mas Bagman não passou informações de propósito, passou? Hermione deu de ombro.
— E Fudge acha que Madame Maxime atacou Crouch? — perguntou Rony se virando para Harry outra vez.
— É — respondeu Harry — mas só está dizendo isso porque o Sr. Crouch desapareceu perto da carruagem da Beauxbatons.
— Nunca pensamos nela, não é mesmo? — disse Rony, lentamente. — E olhem que ela positivamente tem sangue de gigante, e não quer nem admitir...
— Claro que não — disse Hermione secamente, erguendo os olhos. — Olha só o que aconteceu com o Hagrid quando a Rita descobriu quem era a mãe dele. Olha só o Fudge tirando conclusões apressadas sobre ela, só porque a mãe é meio giganta. Quem precisa desse tipo de preconceito? Eu provavelmente diria que tinha ossos grandes se soubesse o que me esperava por dizer a verdade.
Hermione consultou seu relógio de pulso.
— Não praticamos nada! — exclamou, chocada. — Vamos fazer a Azaração de Impedimento! Amanhã temos que meter as caras nela pra valer! Vamos Harry você precisa descansar.
Os dois garotos subiram lentamente para o dormitório. Enquanto vestia o pijama, Harry olhou para a cama de Neville. Fiel à palavra dada a Dumbledore, não falara a Rony e Hermione sobre os pais do garoto. Depois que tirou os óculos e se meteu na cama, ficou imaginando como devia ser a pessoa ter pais vivos, mas incapazes de reconhecê-la. Ele sempre despertava simpatia nos estranhos por ser órfão, mas ao escutar os roncos de Neville, concluiu que o colega a merecia mais do que ele.
Deitado no escuro, Harry sentiu um assomo de raiva e ódio contra as pessoas que haviam torturado o Sr. e a Sra. Longbottom... Lembrou-se dos risos e caçoadas dos espectadores quando o filho de Crouch e os companheiros foram arrastados para fora do tribunal pelos dementadores... Compreendeu o que sentiram... Então lembrou-se do rosto extremamente branco do garoto que gritava e percebeu, com um sobressalto, que ele morrera no ano seguinte...
Fora Voldemort, pensou Harry fitando, no escuro, o dossel da cama, tudo acabava apontando para Voldemort... Ele é quem tinha separado aquelas famílias, quem tinha arruinado todas aquelas vidas...
Rony e Hermione precisavam estar revisando as matérias para os exames, que terminariam no dia da terceira tarefa, em lugar disso, estavam devotando todas as energias a ajudar Harry a se preparar.
— Não se preocupe — disse Hermione brevemente, quando Harry comentou isso com eles, e disse que não se importava de continuar a praticar sozinho.
— Pelo menos vamos tirar notas máximas em Defesa contra as Artes das Trevas, nunca teríamos descoberto tantas azarações em aula.
— Bom treinamento para quando formos aurores — comentou Rony excitado, experimentando uma Azaração de Impedimento em uma vespa que entrara zumbindo na sala, e fazendo-a estacar no ar.
Quando entrou o mês de junho, a atmosfera do castelo se tornou mais uma vez elétrica e tensa. Todos aguardavam com ansiedade a terceira tarefa, que se realizaria uma semana antes do fim do trimestre. Harry praticava azarações em todos os momentos de folga. Sentia-se mais confiante com relação a esta tarefa do que a qualquer das anteriores. Mas, apesar de difícil e perigosa, como certamente seria, Moody tinha razão.
Harry conseguira passar por criaturas monstruosas e atravessar barreiras mágicas antes, e desta vez, recebera aviso, tivera a chance de se preparar para aquilo que o aguardava.
Cansada de surpreendê-los por toda a escola, a Professora Minerva dera a Harry permissão para usar a sala de Transformação vazia na hora do almoço. Ele não tardou a dominar a Azaração de Impedimento, um feitiço para retardar e obstruir atacantes, o Feitiço Redutor lhe permitiria explodir objetos sólidos em seu caminho, o Feitiço dos Quatro Pontos, uma descoberta útil de Hermione que faria sua varinha apontar para o norte, permitindo-lhe, assim, verificar se estava se deslocando na direção certa dentro do labirinto.
Mas ele ainda estava tendo problemas com o Feitiço Escudo. Este lançava uma parede temporária e invisível em torno dele e o protegia de pequenos feitiços, Hermione conseguiu desfazê-la com uma bem colocada Azaração das Pernas Bambas. Harry bambeou pela sala uns bons dez minutos, até a garota ter tido tempo para achar a contra-azaração.
— Mas você continua se saindo realmente bem — disse Hermione encorajando Harry e consultando a lista que fizera para riscar o que ele já aprendera. — Alguns desses devem ser uma mão na roda.
— Venham só dar uma espiada nisso — disse Rony que estava parado junto à janela. Contemplava os jardins. — Que será que o Malfoy está aprontando?
Harry e Hermione foram ver. Malfoy, Crabbe e Goyle estavam parados à sombra de uma árvore lá embaixo. Crabbe e Goyle pareciam estar vigiando alguma coisa, os dois abafavam risinhos. Malfoy tampava a boca com a mão e falava para dentro dela.
— Parece até que ele está usando um walkie-talkie — disse Harry curioso.
— Não pode estar — lembrou Hermione. — Já disse a vocês dois que esse tipo de coisa não funciona em Hogwarts. Vamos, Harry — acrescentou ela energicamente, dando as costas à janela e voltando ao meio da sala — vamos experimentar outra vez o Feitiço Escudo.
Sirius agora mandava corujas diariamente. Do mesmo modo que Hermione, ele parecia querer se concentrar em fazer Harry concluir a última tarefa, antes de se preocupar com outra coisa. Em cada carta ele lembrava ao afilhado que fosse o que fosse que acontecesse fora dos muros de Hogwarts não era responsabilidade do garoto, nem estava em seu poder influenciar nada.
“Se Voldemort está realmente voltando a se fortalecer — escreveu ele —, minha prioridade é garantir a sua segurança. Ele não pode sequer alimentar esperanças de pegá-lo enquanto você estiver sob a proteção de Dumbledore, mas mesmo assim, não corra riscos: concentre-se em atravessar esse tal labirinto em segurança, depois poderemos voltar nossa atenção para outros assuntos”.
O nervosismo de Harry foi crescendo à medida que o dia vinte e quatro de junho se aproximava, mas nem tanto quanto nas tarefas anteriores. Por um lado, ele se sentia confiante de que, desta vez, fizera tudo que pudera para se preparar para a tarefa. Por outro, esse era o último esforço e, independentemente de se dar bem ou mal, o torneio enfim terminaria, o que seria um enorme alívio. O café foi uma reunião barulhenta à mesa da Grifinória, na manhã da terceira tarefa. O correio coruja apareceu, trazendo para Harry um cartão de boa sorte de Sirius.
Era apenas um pedaço de pergaminho, dobrado com a impressão de uma pata enlameada, Harry gostou assim mesmo. Uma coruja-das-torres chegou trazendo para Hermione seu exemplar do Profeta Diário, como habitualmente. Ela abriu o jornal, deu uma olhada na primeira página, cuspiu a boca cheia de suco de abóbora, sujando todo o jornal.
— Que foi? — exclamaram Harry e Rony juntos, olhando para garota.
— Nada — disse Hermione depressa, tentando esconder o jornal, mas Rony agarrou-o.
Ele arregalou os olhos para a manchete e disse:
— Nem pensar. Hoje não. Essa vaca velha.
— Que foi? — perguntou Harry. — Rita Skeeter de novo?
— Não — respondeu Rony, e do mesmo modo que Hermione, tentou esconder o jornal.
— Fala de mim, não é? — perguntou Harry.
— Não — disse Rony, num tom que não convencia ninguém.
Mas antes que Harry pudesse pedir para ver o jornal, Draco Malfoy gritou lá da mesa da Sonserina, do outro lado do salão.
— Ei, Potter! Potter! Como é que está a sua cabeça? Você está se sentindo legal? Tem certeza de que não vai endoidar para cima da gente?
Malfoy segurava um exemplar do Profeta Diário, também. Os alunos ao redor da mesa da Sonserina deram risadinhas e se viraram nas cadeiras para ver a reação de Harry.
— Me deixa ver isso — pediu Harry a Rony. — Me dá isso aqui.
Com muita relutância Rony entregou o jornal. Harry virou-o e deparou com a própria foto, sob uma gigantesca manchete.
“HARRY POTTER PERTURBADO E PERIGOSO”
O garoto que derrotou Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado encontra-se instável e possivelmente perigoso, escreve nossa repórter especial Rita Skeeter. Há poucos dias vieram à luz provas assustadoras do estranho comportamento de Harry Potter, que lançam dúvidas sobre suas qualificações para competir em um torneio rigoroso como o Tribruxo, ou até mesmo para freqüentar a Escola de Hogwarts.
O Profeta Diário está em condições de afirmar, com exclusividade, que Potter regularmente desmaia na escola, e com freqüência se queixa de dor na cicatriz que tem na testa (relíquia de um feitiço com que Você-Sabe-Quem tentou matá-lo).
Na última segunda-feira, no meio de uma aula de Adivinhação, a repórter do Profeta Diário presenciou a saída intempestiva de Potter da sala de aula, dizendo que sua cicatriz o incomodava em demasia para que pudesse continuar em classe.
É possível dizem os maiores especialistas do Hospital St. Mungus para Doenças e Acidentes Mágicos, que o cérebro de Potter tenha sido afetado pelo ataque que sofreu de Você-Sabe-Quem, e que sua insistência em dizer que a cicatriz continua a doer seja uma expressão de sua arraigada confusão.
"Talvez até esteja fingindo": opinou um especialista, "o que poderia ser um mecanismo para receber atenção”.
O Profeta Diário, no entanto, descobriu fatos preocupantes sobre Harry Potter, que Alvo Dumbledore, diretor de Hogwarts, tem cuidadosamente ocultado do público bruxo.
"Potter é ofidioglota" revela Draco Malfoy, um quartanista de Hogwarts. "Há uns dois anos, houve uma série de ataques a estudantes, e quase todos pensaram que Potter era o responsável depois que o viram perder a cabeça em um Clube de Duelos e açular uma cobra contra um colega. O episódio foi abafado. Mas ele também faz amizade com lobisomens e gigantes. Achamos que ele é capaz de qualquer coisa para ter algum poder.”
Ofidioglossia, ou a capacidade de conversar com as cobras, é tradicionalmente considerada uma Arte das Trevas. Com efeito, o ofidioglota mais famoso dos nossos tempos não é outro senão Você-Sabe-Quem. Um membro da Liga de Defesa contra as Artes das Trevas, que prefere se manter anônimo, declarou que consideraria qualquer bruxo ofidioglota "merecedor de investigação”.
“Pessoalmente, eu encararia com muita suspeita qualquer pessoa que conversasse com cobras, pois esses animais em geral são usados nos piores tipos de magia negra e historicamente, são associados com bruxos malignos!” Da mesma forma "qualquer um que procure a companhia de criaturas selvagens como lobisomens e gigantes me parece ter inclinação para a violência":
Alvo Dumbledore deveria, sem dúvida, refletir se um garoto desses pode realmente competir no Torneio Tribruxo. Há quem receie que Potter possa apelar para as Artes das Trevas em seu desespero de vencer o torneio, cuja terceira tarefa será realizada hoje à noite.
— Acho que ela está deixando de gostar de mim, não? — comentou Harry despreocupado, dobrando o jornal.
Na mesa da Sonserina, Malfoy, Crabbe e Goyle riam-se dele, davam pancadinhas na cabeça, faziam caretas grotescas imitando loucos e agitavam as línguas como cobras.
— Como foi que ela soube que a sua cicatriz doeu na aula de Adivinhação? — perguntou Rony. — Não havia como ela ter estado presente, não havia como poder ter ouvido...
— A janela estava aberta — disse Harry. — Eu a abri para respirar.
— Você estava no alto da Torre Norte — lembrou Hermione. — Sua voz não podia ter sido ouvida lá embaixo nos jardins!
— Bem, você é quem anda pesquisando métodos mágicos de grampear! — disse Harry. — Me diga você como foi que ela conseguiu!
— Estou tentando — defendeu-se Hermione. — Mas eu... Mas...
Uma expressão estranha e sonhadora subitamente apareceu no rosto de Hermione. Ela ergueu uma das mãos e correu os dedos pelos cabelos.
— Você está legal? — perguntou Rony, erguendo as sobrancelhas para a amiga.
— Estou — respondeu Hermione sem fôlego. Ela tornou a correr os dedos pelos cabelos e levou a mão à boca, como se estivesse falando para um walkie-talkie invisível. Harry e Rony se entreolharam.
— Tive uma idéia — disse Hermione, olhando para o espaço. — Acho que sei... Porque desse jeito ninguém poderia ver... Nem Moody... E ela poderia ter chegado até o peitoril da janela... Mas isso é proibido... Decididamente é proibido... Acho que a pegamos! Me dêem dois segundinhos na biblioteca, só para ter certeza!
Dizendo isso, Hermione agarrou a mochila e saiu correndo do Salão Principal.
— Oi! — gritou Rony para ela. — Temos exame de História da Magia dentro de dez minutos! Caracas — disse o garoto tornando a se virar para Harry —, ela deve realmente odiar aquela Skeeter para se arriscar a perder o início do exame. Que é que você vai fazer na sala do Binns, reler livros?
Dispensado dos testes de fim de trimestre por ser campeão no torneio, até ali Harry se sentara no fundo das salas de exame, pesquisando novas azarações para a terceira tarefa.
— Acho que sim — respondeu Harry para Rony; mas nesse instante a Professora Minerva vinha contornando a mesa da Grifinória em direção a ele.
— Potter, os campeões vão se reunir na câmara vizinha ao salão depois do café — anunciou ela.
— Mas a tarefa só vai ser à noite! — exclamou Harry, derramando, sem querer, ovos mexidos na roupa, receoso de que tivesse se enganado na hora.
— Eu sei disso, Potter. As famílias dos campeões foram convidadas para assistir à última tarefa, entende. É apenas uma oportunidade para você cumprimentá-los.
Ela se afastou. Harry acompanhou-a com o olhar, boquiaberto.
— Ela não está esperando que os Dursley apareçam, está? — perguntou a Rony sem entender.
— Sei lá. Harry é melhor eu me apressar ou vou chegar tarde na sala de Binns. A gente se vê depois.
Harry terminou o café da manhã num salão que ia lentamente se esvaziando. Viu Fleur Delacour se levantar da mesa da Corvinal e se juntar a Cedrico, na hora em que o rapaz atravessava o salão para entrar na câmara.
Krum saiu daquele seu jeito curvado para se reunir a eles logo depois. Harry continuou onde estava. Na realidade não queria entrar na câmara. Não tinha família — ou pelo menos nenhuma família que fosse aparecer para vê-lo arriscar a vida. Mas no instante em que começou a se levantar, pensando que seria melhor ir à biblioteca reler mais algumas azarações, a porta da câmara se abriu e Cedrico pôs a cabeça para fora.
— Harry, anda, eles estão esperando por você!
Absolutamente perplexo, Harry se levantou. Não era possível que os Dursley estivessem ali, era? O garoto atravessou o salão e abriu a porta que levava à câmara. Cedrico e os pais estavam logo à entrada. Vitor Krum, a um canto, falava muito depressa em búlgaro com o pai e a mãe de cabelos escuros.
Herdara o nariz adunco do pai. Do outro lado da sala, Fleur algaraviava em francês com a mãe. Sua irmãzinha, Gabrielle, segurava a mão da mãe. Ela acenou para Harry, que retribuiu o aceno. Então ele viu a Sra. Weasley e Gui parados diante da lareira, sorrindo para ele.
— Surpresa! — disse animada a Sra. Weasley, quando Harry, todo sorriso, se encaminhou para eles.
— Pensamos em vir ver você, Harry! — Ela se curvou e lhe deu um beijo na bochecha.
— Você está bem? — cumprimentou Gui, sorrindo para o garoto e apertando sua mão. — Carlinhos queria vir, mas não pôde tirar licença. Ele me contou que você esteve incrível na tarefa com o Rabo-Córneo húngaro.
Fleur Delacour, Harry notou, espiava Gui, com grande interesse, por cima do ombro da mãe. O garoto percebeu que ela não fazia objeção alguma a cabelos compridos e brincos com dentes pendurados.
— Foi muita gentileza da senhora — murmurou Harry a Sra. Weasley. — Pensei por um momento... Os Dursley...
— Hum — resmungou a Sra. Weasley contraindo os lábios. Ela sempre se abstinha de criticar os Dursley diante de Harry, mas seus olhos faiscavam sempre que eles eram mencionados.
— Estou achando o máximo voltar aqui — comentou Gui, correndo os olhos pela câmara (Violeta, a amiga da Mulher Gorda, piscou para ele lá do seu quadro).
— Não revejo a escola há cinco anos. Aquele quadro do cavaleiro doidão ainda está por aí? Sir Cadogan?
— Ah, está — respondeu Harry, que conhecera Sir Cadogan no ano anterior.
— E a Mulher Gorda? — indagou Gui.
— Ela já estava aqui no meu tempo — comentou a Sra. Weasley.
— Ela me passou um carão daqueles uma noite em que eu vinha voltando para o dormitório às quatro horas da manhã...
— E o que é que a senhora estava fazendo fora do dormitório às quatro horas da manhã? — perguntou Gui olhando a Sra. Weasley, admirado.
Ela sorriu, os olhos cintilando.
— Seu pai e eu saímos para dar um passeio à noite. Ele foi pego por Apolíneo Pringle, era o zelador naquela época, seu pai ainda tem as marcas.
— Quer fazer o tour da escola com a gente, Harry? — perguntou Gui.
— Ah, OK. — disse Harry e os três se dirigiram à porta que levava ao Salão Principal. Ao passarem por Amos Diggory, o bruxo se virou.
— Aí está você, não é? — disse ele, olhando Harry de alto a baixo. — Aposto como não está se sentindo tão cheio de si agora que Cedrico superou a sua pontuação, não?
— Quê? — exclamou Harry.
— Não dê atenção a ele — pediu Cedrico a Harry, em voz baixa, erguendo as sobrancelhas para o pai. — Ele anda aborrecido desde o artigo da Rita Skeeter sobre o Torneio Tribruxo, sabe, porque ela fez de conta que você era o único campeão de Hogwarts.
— Mas ele não se deu ao trabalho de corrigi-la, não é? — disse Amos Diggory, em voz suficientemente alta para Harry ouvir quando ia se encaminhando para a porta com a Sra. Weasley e Gui. — Mas... Você vai mostrar a ele, Cedrico. Já o venceu uma vez, não foi?
— Rita Skeeter sai do caminho dela para provocar confusões, Amos! — disse a Sra. Weasley zangada. — Era de se esperar que você soubesse disso, já que trabalha no Ministério!
O Sr. Diggory pareceu que ia dizer alguma coisa, irritado, mas sua mulher pôs a mão em seu braço e ele simplesmente encolheu os ombros e virou as costas.
Harry teve uma manhã muito agradável passeando pela propriedade ensolarada com Gui e a Sra. Weasley, mostrando-lhes a carruagem de Beauxbatons e o navio de Durmstrang. A Sra. Weasley se mostrou intrigada com o Salgueiro Lutador, que fora plantado depois que ela terminara a escola, e lembrou-se longamente do guarda-caça antes de Hagrid, um homem chamado Ogg.
— Como vai o Percy? — perguntou Harry, quando davam a volta às estufas.
— Nada bem — respondeu Gui.
— Ele está muito aborrecido — disse a Sra. Weasley, baixando a voz e olhando para os lados. — O Ministério quer abafar o desaparecimento do Sr. Crouch, e Percy foi convocado para um interrogatório sobre as instruções que o Sr. Crouch tem-lhe mandado. Aparentemente o Ministério pensa que elas talvez não tenham sido escritas por Crouch. Percy está sob uma enorme tensão. Não vão deixá-lo substituir o chefe, como quinto juiz, hoje à noite. Cornélio Fudge virá fazer isso.
Os três voltaram ao castelo para almoçar.
— Mamãe... Gui! — exclamou Rony, fazendo cara de espanto, ao se reunir à mesa da Grifinória. — Que é que vocês estão fazendo aqui?
— Viemos assistir à última tarefa do Harry! — disse a Sra. Weasley animada. — Devo confessar, é uma bela mudança não ter que cozinhar. Como foi o seu exame?
— Ah... OK.. Não consegui me lembrar dos nomes de todos os duendes rebeldes, por isso inventei alguns. Tudo bem — acrescentou servindo-se de um pastel galês, sob o olhar severo da mãe —, todos eles têm nomes tipo Bodrode o Barbudo, Urgue o Impuro, não foi difícil.
Fred, Jorge e Gina vieram fazer companhia a eles também e Harry se divertiu tanto que quase se sentiu de volta à Toca, esquecera-se de se preocupar com a tarefa da noite e somente quando Hermione apareceu, já na metade do almoço, foi que ele se lembrou de que a garota tivera uma idéia sobre Rita Skeeter.
— Vai nos contar...?
Hermione balançou a cabeça num aviso e olhou para a Sra. Weasley.
— Olá, Hermione — disse a Sra. Weasley muito mais formalmente do que de costume.
— Olá — respondeu a garota, seu sorriso hesitante diante da expressão fria no rosto da senhora. Harry olhou para as duas, em seguida disse:
— Sra. Weasley, a senhora não acreditou naquele besteirol que a Rita Skeeter escreveu no Semanário das Bruxas, acreditou? Porque Mione não é minha namorada.
— Ah! — exclamou a Sra. Weasley. — Não... É claro que não!
Mas ela se tornou bem mais calorosa para com Hermione depois disso.
Harry, Gui e a Sra. Weasley passaram a tarde em um longo passeio ao redor do castelo, depois voltaram ao Salão Principal para o banquete da noite. Ludo Bagman e Cornélio Fudge haviam se sentado à mesa dos professores. Bagman parecia bem animado, mas Cornélio Fudge, ao lado de Madame Maxime, estava sério e calado. Madame Maxime se concentrava no prato a sua frente, e Harry achou que seus olhos pareciam vermelhos. Hagrid não parava de olhar para os lados dela na mesa.
Havia mais pratos do que de costume, mas o garoto, que estava começando a se sentir realmente nervoso, não comeu muito. Quando o teto encantado no alto começou a desbotar de azul para um violáceo crepuscular, Dumbledore se ergueu à mesa dos professores e fez-se silêncio.
— Senhoras e senhores, dentro de cinco minutos, vou pedir a todos que se encaminhem para o estádio de Quadribol para assistir à terceira e última tarefa do Torneio Tribruxo. Os campeões, por favor, queiram acompanhar o Sr. Bagman ao estádio agora.
Harry se levantou. Todos os colegas da Grifinória o aplaudiram, os Weasley e Hermione lhe desejaram boa sorte e ele se dirigiu à porta do Salão Principal com Cedrico, Fleur e Krum.
— Está se sentindo bem, Harry? — perguntou Bagman, quando desciam os degraus da entrada para os jardins. — Confiante?
— Estou OK.. — Era um pouco verdade; estava nervoso, mas não parava de repassar mentalmente todas as azarações e feitiços que praticara enquanto andavam, e a idéia de que era capaz de lembrar de todos eles o fazia se sentir melhor.
Os campeões entraram no estádio de Quadribol, que estava totalmente irreconhecível. Uma sebe de seis metros corria a toda volta. Havia uma abertura bem diante deles: a entrada para o imenso labirinto. A passagem além parecia escura e sinistra.
Cinco minutos mais tarde, as arquibancadas começaram a se encher, o ar vibrou com as vozes excitadas e o ruído dos pés de centenas de estudantes que ocupavam seus lugares. O céu se tornara azul profundo e límpido, e as primeiras estrelas começavam a surgir. Hagrid, o Professor Moody, a Professora Minerva e o Professor Flitwick entraram no estádio e se aproximaram de Bagman e dos campeões.
Usavam grandes estrelas vermelhas e luminosas nos chapéus, todos, exceto Hagrid, que carregava a dele nas costas do colete de pele de toupeira.
— Vamos patrulhar o lado externo do labirinto — disse a professora aos campeões. — Se estiverem em apuros, e quiserem ser socorridos, disparem faíscas vermelhas para o ar e um de nós irá buscá-los, entenderam?
Os campeões confirmaram com um aceno de cabeça.
— Podem começar, então! — disse Bagman, animado, para os quatro patrulheiros.
— Boa sorte, Harry — sussurrou Hagrid, e os quatro saíram em diferentes direções para se postar em torno do labirinto. Bagman, então, apontou a varinha para a garganta e murmurou "Sonorus", e sua voz magicamente amplificada ressoou pelas arquibancadas.
— Senhoras e senhores, a terceira e última tarefa do Torneio Tribruxo está prestes a começar! Deixe-me lembrar a todos o placar atual! Empatados em primeiro lugar, com oitenta e cinco pontos cada, o Sr. Cedrico Diggory e o Sr. Harry Potter, os dois da Escola de Hogwarts!
Os vivas e as palmas fizeram os pássaros saírem voando da Floresta Proibida para o céu crepuscular.
— Em segundo lugar, com oitenta pontos, o Sr. Vítor Krum, do Instituto Durmstrang! — Mais aplausos. — E, em terceiro lugar, a Srta. Fleur Delacour, da Academia de Beauxbatons!
Harry conseguiu apenas reconhecer a Sra. Weasley, Guy, Rony e Hermione aplaudindo Fleur educadamente, mais ou menos no meio das arquibancadas. Ele acenou para os amigos que retribuíram o aceno, sorrindo.
— Então... Quando eu apitar, Harry e Cedrico! —, anunciou Bagman. — Três... Dois... Um...
O bruxo soprou com força o apito e Harry e Cedrico correram para a entrada do labirinto. As sebes altaneiras lançavam sombras escuras sobre a trilha e, talvez porque fossem tão altas e densas ou porque fossem encantadas, o barulho dos espectadores que as cercavam silenciou no instante em que os rapazes entraram no labirinto. Harry quase se sentiu novamente embaixo da água. Puxou a varinha, murmurou: “Lumus" e ouviu Cedrico fazer o mesmo atrás dele.
Depois de andarem uns cinqüenta metros, os garotos chegaram a uma bifurcação. Entreolharam-se.
— Até mais — disse Harry e tomou a trilha da esquerda, enquanto Cedrico tomou a da direita.
Harry ouviu o apito de Bagman uma segunda vez. Krum acabara de entrar no labirinto. Harry se apressou. A trilha que escolhera parecia completamente deserta.
Ele se virou à direita e continuou depressa, mantendo a varinha acima da cabeça, tentando ver o mais longe possível. Mesmo assim, não havia nada à vista.
O apito de Bagman soou ao longe uma terceira vez. Todos os campeões agora estavam no interior do labirinto.
Harry não parava de olhar para trás. Tinha a sensação familiar de que alguém o vigiava. O labirinto foi ficando mais escuro a cada minuto que se passava, porque o céu no alto ia ganhando um matiz azul-marinho. Ele chegou a uma segunda bifurcação.
— Me oriente — sussurrou ele à varinha, segurando-a deitada na palma da mão.
A varinha fez um giro completo e apontou para a direita, para a sebe maciça. Para ali ficava o norte, e ele sabia que precisava seguir para noroeste para chegar ao centro do labirinto. Faria melhor se tomasse a trilha da esquerda e tornasse a seguir para a direita assim que pudesse.
A trilha à frente também estava vazia e quando Harry chegou a uma curva à direita e entrou por ela, encontrou mais uma vez o caminho livre. Harry não sabia o porquê, mas a falta de obstáculos começava a deixá-lo nervoso. Com certeza já deveria ter encontrado algum a essa altura? Tinha a impressão de que o labirinto o estava induzindo a uma falsa sensação de segurança. Então ouviu um movimento bem atrás dele. Ergueu a varinha, pronto a atacar, mas seu facho de luz recaiu sobre Cedrico, que acabara de sair correndo da trilha do lado direito.
Cedrico parecia gravemente abalado. A manga de suas vestes fumegava.
— Os explosivins de Hagrid! — sibilou ele. — Estão enormes, escapei por um triz!
Cedrico sacudiu a cabeça e desapareceu de vista por outra trilha.
Interessado em guardar uma boa distância entre ele próprio e os explosivins, Harry retomou depressa o seu caminho. Então, ao fazer uma curva ele viu... Um dementador deslizava em sua direção. Três metros e meio de altura, o rosto oculto pelo capuz, as mãos podres e cobertas de feridas estendidas à frente, ele avançava às cegas, tateando em direção ao garoto. Harry ouviu sua respiração vibrante, sentiu um frio pegajoso se apoderar dele, mas sabia o que precisava fazer...
Chamou à mente o pensamento mais feliz que pôde, se concentrou com todas as forças no pensamento de sair do labirinto e comemorar com Rony e Hermione, ergueu a varinha e exclamou:
— Expecto Patronum!
Um veado prateado irrompeu da ponta da varinha de Harry e avançou à galope para o dementador, que recuou e tropeçou na barra das vestes... Harry nunca vira um dementador tropeçar.
— Espere ai! — gritou ele, avançando na cola do seu patrono prateado. — Você é um bicho-papão! Ridikulus!
Ouviu-se um grande estalo e o transformista explodiu, deixando atrás apenas uma fumacinha. O veado prateado desapareceu de vista. Harry desejou que ele tivesse podido ficar, seria agradável ter uma companhia... Mas continuou o seu caminho o mais depressa e silenciosamente que pôde, apurando os ouvidos, a varinha, mais uma vez, erguida no alto.
Esquerda... Direita... Novamente à esquerda... Em duas ocasiões ele foi dar em trilhas sem saída. Harry executou o Feitiço dos Quatro Pontos mais uma vez e descobriu que se afastara demais para leste.
Retrocedeu, tomou a trilha à direita e viu uma estranha névoa dourada flutuando mais adiante. Aproximou-se cautelosamente, apontando para a névoa o facho de luz da varinha. Parecia algum tipo de encantamento. Ele se perguntou se seria capaz de explodi-la para desimpedir o caminho.
— Reducto!— ordenou.
O feitiço atravessou a névoa, deixando-a intacta. O garoto concluiu que devia ter sabido: o Feitiço Redutor só servia para objetos sólidos. Que aconteceria se ele atravessasse a névoa? Valeria a pena arriscar ou deveria retroceder?
Ele ainda hesitava, quando um grito rompeu o silêncio.
— Fleur? — berrou Harry.
Silêncio. Ele olhou para todos os lados. Que acontecera com a garota? Seu grito parecia ter vindo de algum lugar à frente. O garoto inspirou profundamente e atravessou a névoa encantada.
O mundo virou de cabeça para baixo. Harry ficou pendurado no chão, os cabelos em pé, os óculos balançando fora do nariz, ameaçando cair no céu infinito.
Ele os segurou na ponta do nariz e continuou pendurado, aterrorizado.
Tinha a sensação de que seus pés estavam grudados na grama, que agora se transformara em teto. Abaixo, o céu pontilhado de estrelas se estendia infinitamente. Harry sentiu que se tentasse mexer um pé, despencaria da terra de vez. Pense, disse a si mesmo, enquanto todo o seu sangue afluía à cabeça, pense...
Mas nenhum dos feitiços que praticara se destinava a combater uma repentina inversão de terra e céu. Ousaria mexer um pé?
Ele ouviu o sangue latejar com força em seus ouvidos. Tinha duas opções — tentar se mexer ou disparar faíscas vermelhas e ser socorrido e desqualificado da tarefa.
Harry fechou os olhos para evitar contemplar o espaço infinito abaixo dele e puxou o pé direito com toda a força que pôde do teto gramado. Imediatamente o mundo se endireitou. Harry caiu para frente de joelhos num chão maravilhosamente sólido. Sentiu-se por algum tempo mole de susto. Inspirou profundamente para se firmar, então tornou a se levantar e avançou correndo, lançando olhares para trás por cima do ombro, enquanto fugia da névoa dourada, que piscou para ele inocentemente ao luar.
O garoto parou na junção de duas trilhas e olhou para os lados à procura de algum sinal de Fleur. Tinha certeza de que fora a garota que ouvira gritar. Com que será que ela deparara? Estaria bem?
Não havia faíscas vermelhas no alto — será que isto significava que conseguira se livrar do problema ou estaria em tal apuro que nem conseguira apanhar a varinha? Harry tomou a trilha à direita com uma sensação de crescente inquietação... Mas, ao mesmo tempo, não conseguiu deixar de pensar, menos um campeão...
A Taça estava em algum lugar ali perto e, pelo jeito, Fleur não estava mais competindo. Ele chegara até ali, não chegara? E se, de fato, conseguisse vencer?
Por um instante fugaz, e pela primeira vez desde que se fora feito campeão, ele reviu aquela imagem de si mesmo, erguendo a Taça do Tribruxo diante do resto da escola...
Por uns dez minutos não encontrou nada, exceto trilhas sem saída. Duas vezes tomou a mesma trilha errada. Finalmente encontrou um novo caminho e começou a andar depressa por ele, a luz da varinha oscilando, fazendo sua sombra bruxulear e se distorcer pelos lados da sebe. Então ele virou mais uma vez e deu de cara com um explosívín.
Cedrico tinha razão — era enorme. Três metros de comprimento, lembrava mais um escorpião gigante do que qualquer outra coisa. Seu longo ferrão estava revirado para trás. A grossa armadura refulgia à luz da varinha, que Harry apontava para ele.
— Estupefaça!
O feitiço bateu no escudo do explosívín e ricocheteou; Harry se abaixou bem a tempo, mas sentiu cheiro de cabelos queimados, chamuscara o alto da cabeça. O explosívín soltou um jorro de chamas da cauda e voou para cima do garoto.
— Impedimenta!— berrou Harry. O feitiço bateu mais uma vez no escudo do explosivin e voltou; Harry cambaleou alguns passos para trás e caiu.
— IMPEDIMENTA!
O explosívín estava a centímetros dele quando se imobilizou — o garoto conseguira atingi-lo na barriga carnuda e sem escudo. Ofegando, Harry se impeliu para longe e correu, com todas as forças, na direção oposta — a Azaração de Impedimento não era permanente, o explosívín recobraria o uso das pernas a qualquer momento.
Harry seguiu pela trilha da esquerda e não encontrou saída, seguiu pela da direita e tampouco encontrou saída, obrigando-se a parar, com o coração acelerado, ele executou mais uma vez o Feitiço dos Quatro Pontos, retrocedeu e escolheu uma trilha que o levasse para noroeste.
Já ia caminhando apressado pela nova trilha havia alguns minutos, quando ouviu alguma coisa na trilha paralela à sua, que o fez estacar.
— Que é que você está fazendo? — berrou a voz de Cedrico. — Que diabo você pensa que está fazendo?
E então Harry ouviu a voz de Krum.
— Crucio!
O ar se encheu repentinamente com os gritos de Cedrico. Horrorizado, Harry avançou correndo por sua trilha, tentando encontrar uma passagem para a de Cedrico. Quando não apareceu nenhuma, ele tentou novamente o Feitiço Redutor. Não foi eficiente, mas queimou um buraquinho na sebe, pelo qual Harry enfiou a perna, chutando os galhos emaranhados até eles cederem deixando uma abertura, com esforço Harry a atravessou, rasgando as vestes e, ao olhar para a direita, viu Cedrico se debatendo e se contorcendo no chão, sob o olhar de Krum.
Harry se endireitou e apontou a varinha para Krum na hora em que o rapaz ergueu a cabeça. Krum deu as costas e começou a correr.
— Estupefaça!— berrou Harry.
O feitiço atingiu Krum pelas costas; ele parou instantaneamente, caiu de borco e ficou imóvel, com a cara na grama. Harry correu para Cedrico, que parara de se contorcer, mas continuava deitado no chão arfando, as mãos cobrindo o rosto.
— Você está bem? — perguntou Harry rouco, agarrando Cedrico pelo braço.
— Estou — ofegou ele. — É... Eu não acredito... Ele se aproximou de mim pelas costas... Eu o ouvi e, quando me virei, ele estava empunhando a varinha apontada para mim...
Cedrico se levantou. Ainda tremia. Ele e Harry olharam para Krum.
— Eu não acredito... Achei que ele era legal — comentou Harry, contemplando Krum.
— Eu também.
— Você ouviu Fleur gritar há algum tempo?
— Ouvi. Você acha que Krum a pegou também?
— Não sei — disse Harry lentamente.
— Vamos deixá-lo aqui? — perguntou Cedrico.
— Não — disse Harry. — Acho que devíamos disparar faíscas vermelhas. Alguém virá apanhá-lo... Do contrário ele provavelmente será comido por um explosívín.
— E seria bem merecido — murmurou Cedrico, mas ainda assim, ergueu a varinha e disparou uma chuva de faíscas vermelhas para o ar, que pairaram sobre Krum, marcando o local em que ele se encontrava.
Harry e Cedrico ficaram ali no escuro por um momento, olhando a toda volta. Então Cedrico falou:
— Bem... Suponho que seja melhor a gente ir...
— Quê? Ah... Sim... Certo...
Foi um momento estranho. Ele e Cedrico unidos por breves instantes contra Krum — agora o fato de serem adversários ocorria a ambos. Eles continuaram pela trilha escura sem falar, então Harry virou-se para a esquerda e Cedrico para a direita. O ruído dos passos do rapaz não tardou a desaparecer.
Harry seguiu caminho, continuando a usar o Feitiço dos Quatro Pontos, para se certificar de que caminhava na direção correta. Agora a competição estava entre ele e Cedrico. O desejo de chegar à Taça primeiro ardia em seu peito como nunca antes, mas ele não conseguia acreditar no que acabara de ver Krum fazer. O uso de uma Maldição Imperdoável em um ser humano significava uma sentença de prisão perpétua em Azkaban, fora o que Moody dissera. Krum com certeza não poderia ter desejado a Taça Tribruxo tanto assim... Harry se apressou.
De vez em quando ele chegava a trilhas sem saída, mas a escuridão crescente lhe dava a certeza de que estava se aproximando do centro do labirinto.
Então, quando seguia por uma trilha longa e reta, ele mais uma vez percebeu um movimento, e a luz de sua varinha incidiu sobre uma criatura extraordinária, uma que ele só vira sob a forma de ilustração no seu Livro Monstruoso dos Monstros.
Era uma esfinge. Tinha o corpo de um enorme leão, grandes patas com garras e um longo rabo amarelado que terminava em um tufo de pêlos castanhos.
A cabeça, porém, era de mulher. Ela virou os olhos amendoados para Harry quando ele se aproximou.
O garoto ergueu a varinha hesitante.
A esfinge não estava agachada como se fosse saltar, mas andava de um lado para outro da trilha, bloqueando seu avanço. Então falou, com uma voz profunda e rouca:
— Você está muito próximo do seu objetivo. O caminho mais rápido é passando por mim.
— Então... Então será que a senhora podia se afastar, por favor? — disse Harry, sabendo qual seria a resposta.
— Não — disse ela, continuando a sua patrulha. — Não, a não ser que você decifre o meu enigma. Se acertar de primeira, deixo-o passar. Se errar, eu o ataco. Permaneça em silêncio, e eu o deixarei partir ileso.
O estômago de Harry escorregou alguns centímetros. Hermione é que era boa nesse tipo de coisa e não ele. O garoto avaliou suas chances. Se o enigma fosse muito difícil, ele podia se calar, ir embora sem se machucar e tentar encontrar um caminho alternativo para o centro.
— OK. — respondeu ele. — Pode me dizer o enigma?
A esfinge se sentou nos quartos traseiros, bem no meio da trilha e recitou:
Primeiro pense no lugar reservado aos sacrifícios,
Seja em que templo for.
Depois, me diga que é que se
desfolha no inverno e torna a brotar na primavera?
E finalmente, me diga qual é o objeto que tem som,
luz e ar e flutua na superfície do mar?
Agora junte tudo e me responda o seguinte,
Que tipo de criatura você não gostaria de beijar?
Harry encarou-a boquiaberto.
— Podia, por favor, repetir... Mais devagar? — pediu hesitante.
A esfinge pestanejou, sorriu e repetiu o enigma.
— Todas as pistas levam ao nome da criatura que eu não gostaria de beijar? — perguntou Harry.
A esfinge meramente sorriu, aquele sorriso misterioso. Harry interpretou-o como um "sim". Começou a pensar. Havia muitos animais que ele não gostaria de beijar, seu pensamento imediato foi um explosívín, mas alguma coisa lhe disse que não era a resposta correta. Ele teria que tentar decifrar as pistas...
— O lugar reservado aos sacrifícios — murmurou Harry, encarando a esfinge —, seja em que templo for... Hum... Seria... Um altar. Não, esta não seria a minha resposta! Uma... Ara? Vou voltar a isso depois... poderia me dar a pista seguinte, por favor?
O animal fabuloso repetiu as linhas seguintes do enigma.
— A última coisa a desaparecer no inverno e a reaparecer na primavera nas árvores da floresta — repetiu Harry. — Hum... Não faço idéia... Árvores... Galhos... Rama... Pode me dizer o último trecho outra vez?
Ela repetiu as últimas quatro linhas.
— O objeto que tem som, luz e ar e flutua na superfície do mar... — disse Harry. — Hum.... Isso seria... Hum... Espere aí, uma bóia?
A esfinge sorriu.
— Ara... Hum... Ara... Rama... — disse Harry, agora era ele quem estava andando para lá e para cá. — Uma criatura que eu não gostaria de beijar... Uma ararambóla!
A esfinge abriu um sorriso maior. Levantou-se, esticou as pernas dianteiras e então se afastou para um lado e o deixou passar.
— Obrigado! — disse Harry e, admirado com a própria genialidade, prosseguiu correndo.
Tinha que estar perto agora, tinha que estar... A varinha lhe dizia que estava na direção exata, desde que não deparasse com nada horripilante, ele poderia ter uma chance... À frente precisou escolher entre duas trilhas.
— Me oriente! — sussurrou mais uma vez à varinha, e ela deu um giro e apontou para a da direita.
Harry saiu correndo por ela e viu uma luz adiante.
A Taça Tribruxo brilhava num pedestal a menos de cem metros a sua frente. Harry mal saíra correndo quando um vulto escuro se precipitou sobre a trilha à sua frente.
Cedrico ia chegar primeiro. O rapaz estava correndo o mais rápido que podia em direção à Taça, e Harry percebeu que nunca o alcançaria, Cedrico era muito mais alto, tinha pernas muito mais compridas...
Então, Harry viu um vulto imenso por cima da sebe à sua esquerda, deslocando-se ligeiro pela trilha que cortava a sua, ia tão depressa que Cedrico estava prestes a colidir com ele, e com os olhos na Taça, o rapaz não vira o vulto...
— Cedrico! — berrou Harry. — À sua esquerda!
O garoto virou a cabeça em tempo de se atirar para além vulto e evitar colidir com ele, mas, em sua pressa, tropeçou. Harry viu a varinha voar da mão dele, ao mesmo tempo em que uma enorme aranha entrava na trilha e começava a avançar para o rapaz.
— Estupefaça! — berrou Harry, o feitiço atingiu o gigantesco corpo da aranha, negro e peludo, mas produziu tanto efeito quanto se o garoto tivesse atirado uma simples pedra nela, a aranha estremeceu, virou-se e correu para Harry.
— Estupefaça! Impedimenta! Estupefaça!
Mas não adiantou — a aranha ou era demasiado grande ou tão mágica que os feitiços só conseguiam irritá-la, Harry viu de relance, horrorizado, oito olhos negros e brilhantes e pinças afiadas como navalhas, antes que a aranha estivesse sobre ele.
O inseto ergueu-o no ar com as patas dianteiras, debatendo-se como louco, Harry tentou chutá-lo, sua perna fez contato com as pinças e no momento seguinte ele sentiu uma dor excruciante, ouviu Cedrico gritar "Estupefaça!” também, mas o feitiço do rapaz produziu tanto efeito quanto o de Harry, o garoto ergueu a varinha quando a aranha tornou a abrir as pinças e gritou " Expelliarmus!”
Funcionou, o Feitiço para Desarmar fez a aranha largá-lo, o que significou que Harry caiu três metros e tanto sobre uma perna já machucada, que se dobrou sob seu corpo. Sem parar para pensar, ele mirou bem alto sob a barriga da aranha, como fizera com explosívín, e gritou "Estupefaça!" na mesma hora em que Cedrico gritava o mesmo.
Os dois feitiços combinados fizeram o que um sozinho não conseguira — a aranha tombou de lado, achatando uma sebe próxima, e espalhando na trilha um emaranhado de pernas peludas.
— Harry! — ele ouviu Cedrico gritar. — Você está bem? Ela caiu em cima de você?
— Não! — gritou Harry em resposta. Ele examinou a perna. Sangrava muito.
Ele viu uma secreção grossa e pegajosa que saíra das pinças da aranha em suas vestes rasgadas. Então, tentou se levantar, mas a perna tremia demais e se recusava a sustentar seu peso. Ele se apoiou na sebe, tentando recuperar o fôlego e olhou para os lados.
Cedrico estava a pouquíssima distância da Taça Tribruxo que refulgia às suas costas.
— Pegue a Taça, então — disse Harry arfante para Cedrico. — Pegue logo. Você chegou ao centro.
Mas Cedrico não se mexeu. Continuou parado olhando para Harry. Em seguida virou-se para olhar a Taça. Harry percebeu a expressão desejosa no rosto do rapaz à luz dourada do objeto. Cedrico se virou mais uma vez para Harry que agora se amparava na sebe para se manter de pé. Cedrico inspirou profundamente.
— Você pega. Você é que deveria vencer. Você salvou minha vida duas vezes neste labirinto.
— Não é assim que a coisa deve funcionar — disse Harry. Sentiu raiva, sua perna doía muito, seu corpo doía inteiro do esforço para se desvencilhar da aranha e, apesar de tudo isso, Cedrico o vencera, da mesma forma que o vencera na hora de convidar Cho para o baile. — Quem chegar à Taça primeiro ganha os pontos. E foi você. Estou lhe dizendo, não vou vencer nenhuma corrida com essa perna assim.
Cedrico deu alguns passos em direção à aranha estuporada, afastando-se da Taça e balançou a cabeça.
— Não — disse.
— Pare de ser nobre — retrucou Harry irritado. — Pegue logo a Taça para a gente poder ir embora daqui.
Cedrico observou Harry se aprumar, segurando-se com força na sebe.
— Você me falou dos dragões — disse Cedrico. — Eu teria perdido a primeira tarefa se você não tivesse me prevenido sobre o que me esperava.
— Tive ajuda nisso — retorquiu Harry, tentando enxugar a perna ensangüentada com as vestes. — Você me ajudou com o ovo, estamos quites.
— Eu tive ajuda com o ovo para começar — disse Cedrico.
— Continuamos quites — repetiu Harry, experimentando a perna, desajeitado, ela tremeu violentamente quando o garoto se apoiou nela, tinha torcido o tornozelo quando a aranha o largara.
— Você devia ter ganho mais pontos na segunda tarefa — teimou Cedrico. — Você ficou para trás para salvar todos os reféns. Eu é que deveria ter feito isso.
— Eu fui o único campeão suficientemente burro para levar aquela música a sério! — disse Harry com amargura. — Pegue a Taça!
— Não.
Cedrico pulou por cima do emaranhado de pernas da aranha para se juntar a Harry, que o encarou. Cedrico falava sério. Estava dando as costas a uma glória que a Casa da Lufa-Lufa não experimentava havia séculos.
— Anda — disse o rapaz. Dava a perceber que aquela atitude estava lhe custando cada centímetro de determinação que possuía, mas havia firmeza em seu rosto, cruzara os braços, parecia decidido.
Harry olhou de Cedrico para a Taça. Por um momento fulgurante ele se viu saindo do labirinto, segurando-a. Viu-se erguendo a Taça Tribruxo no alto, ouviu os berros dos espectadores, viu o rosto de Cho iluminado de admiração, mais claramente do que jamais o vira... E então a imagem se dissolveu e ele se viu encarando o rosto teimoso e sombrio de Cedrico.
— Os dois — disse Harry.
— Quê?
— Levamos a Taça ao mesmo tempo. Ainda é uma vitória Hogwarts. Empatamos.
Cedrico encarou Harry. Descruzou os braços.
— Você... Você tem certeza?
— Tenho. Tenho... Nós nos ajudamos, não foi? Nós dois chegamos aqui. Vamos levá-la, juntos.
Por um instante, Cedrico pareceu que não conseguia acreditar no que estava ouvindo, então seu rosto se abriu num sorriso.
— Negócio fechado. Venha até aqui.
Ele agarrou o braço de Harry pela axila e ajudou-o a mancar até o pedestal onde estava a Taça.
Quando a alcançaram, os dois estenderam a mão para cada uma das asas.
— Quando eu disser três, certo? — disse Harry — Um... Dois... Três...
Ele e Cedrico apertaram as asas.
Instantaneamente, Harry sentiu um solavanco dentro do umbigo. Seus pés deixaram o chão. Ele não conseguiu soltar a mão da Taça Tribruxo, ela o puxava para diante, num vendaval colorido, Cedrico ao seu lado.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
Osso, Carne e Sangue
Harry sentiu seus pés baterem no chão, a perna machucada cedeu e ele caiu para frente, por fim, sua mão soltou a Taça Tribruxo. Ele ergueu a cabeça.
— Onde estamos? — perguntou.
Cedrico sacudiu a cabeça. Levantou-se, ajudou Harry a ficar de pé e os dois olharam a toda volta. Estavam inteiramente fora dos terrenos de Hogwarts, era óbvio que tinham viajado quilômetros — talvez centenas de quilômetros — porque até as montanhas que rodeavam o castelo haviam desaparecido.
Em lugar de Hogwarts, os garotos se viam parados em um cemitério escuro e cheio de mato; para além de um grande teixo à direita podiam ver os contornos escuros de uma igrejinha. Um morro se erguia à esquerda. Muito mal, Harry conseguia discernir a silhueta escura de uma bela casa antiga na encosta do morro.
Cedrico olhou para a Taça Tribruxo e depois para Harry.
— Alguém lhe disse que a Taça era uma Chave de Portal? — perguntou.
— Não. — Harry examinou o cemitério. Estava profundamente silencioso e meio fantasmagórico. — Será que isto faz parte da tarefa?
— Não sei — respondeu Cedrico. Sua voz revelava um certo nervosismo. — Varinhas em punho, não acha melhor?
— É — disse Harry, satisfeito de que Cedrico tivesse sugerido isso por ele.
Os dois puxaram as varinhas. Harry não parava de olhar para todo lado.
Tinha, mais uma vez, a estranha sensação de que estavam sendo observados.
— Vem alguém aí — disse de repente.
Apertando os olhos para enxergar na escuridão, eles divisaram um vulto que se aproximava, andando entre os túmulos sempre em sua direção. Harry não conseguia distinguir um rosto, mas pelo jeito que o vulto caminhava e mantinha os braços, dava para ver que estava carregando alguma coisa. Fosse quem fosse, era baixo e usava um capuz que lhe cobria a cabeça e sombreava o rosto. E... Vários passos depois, a distância entre eles sempre mais curta — Harry viu que a coisa nos braços do vulto parecia um bebê... Ou seria meramente um fardo de vestes?
Harry baixou ligeiramente a varinha e olhou para Cedrico ao seu lado. O rapaz lhe respondeu com um olhar intrigado. Os dois tornaram a se virar para observar o vulto que se aproximava. Ele parou ao lado de uma lápide alta, a uns dois metros. Por um segundo, Harry, Cedrico e o vulto baixo apenas se entreolharam.
Então, inesperadamente, a cicatriz de Harry explodiu de dor. Foi uma agonia tão extrema como jamais sentira na vida; ao levar a mão ao rosto, a varinha lhe escapou dos dedos, seus joelhos cederam,ele caiu ao chão e não viu mais nada, sua cabeça pareceu prestes a rachar.
De muito longe, acima de sua cabeça, ele ouviu uma voz fria e aguda dizer:
— Mate o outro.
Um zunido, e uma segunda voz que arranhou o ar da noite:
— Avada Kedavra!
Um relâmpago verde perpassou as pálpebras de Harry e ele ouviu alguma coisa pesada cair no chão ao seu lado, a dor de sua cicatriz atingiu tal intensidade que ele teve ânsias de vomitar, em seguida diminuiu, aterrorizado com o que iria ver, ele abriu os olhos ardidos.
Cedrico estava estatelado no chão ao seu lado, os braços e pernas abertos.
Morto.
Por um segundo que continha toda a eternidade, Harry fitou o rosto do colega, seus olhos cinzentos abertos, vidrados e inexpressivos como as janelas de uma casa deserta, a boca entreaberta num esgar de surpresa. Então, antes que a mente de Harry pudesse aceitar o que seus olhos viam, antes que pudesse sentir alguma coisa além de atônita incredulidade, ele sentiu que alguém o levantava.
O homem baixo de capa pousara o fardo que carregava no chão, acendeu a varinha e saiu arrastando Harry em direção à lápide de mármore. O garoto viu o nome ali gravado faiscar à luz da varinha, antes de ser virado e atirado contra a pedra. “TOM RIDDLE”.
O homem da capa agora estava conjurando cordas para prender Harry com firmeza, amarrando-o à lápide, do pescoço aos tornozelos. O garoto ouviu uma respiração rápida e rasa saindo do fundo do capuz, ele se debateu e o homem lhe deu uma bofetada, uma bofetada com uma mão à que faltava um dedo. E Harry percebeu quem estava sob o capuz. Era Rabicho.
— Você! — exclamou ele.
Mas Rabicho, que acabara de conjurar as cordas, não respondeu; estava ocupado verificando se estavam bem apertadas, seus dedos tremendo descontrolados, apalpando os nós. Uma vez convencido de que Harry estava amarrado à lápide sem a menor folga e que não conseguiria se mexer, Rabicho tirou um pano preto de dentro das vestes e enfiou-o com violência na boca de Harry; depois, sem dizer palavra, virou as costas e se afastou depressa, o garoto não podia emitir som algum nem ver aonde fora Rabicho, não podia virar a cabeça para ver além da lápide, só podia ver o que estava diretamente em frente.
O corpo de Cedrico se encontrava a uns seis metros de distância. Mais adiante, refulgindo à luz das estrelas, jazia a Taça Tribruxo. A varinha de Harry ficara caída no chão aos pés do rapaz. O fardo de roupas que Harry imaginara que fosse um bebê continuava ali perto, junto à lápide. Parecia estar se mexendo incomodado.
O garoto observou-o e sua cicatriz queimou de dor... E, de repente, ele concluiu que não queria ver o que estava naquelas roupas... Não queria que o fardo se abrisse...
Harry ouviu, então, um ruído aos seus pés. Baixou os olhos e viu uma cobra gigantesca deslizando pelo capim, circulando em torno da lápide a que ele fora amarrado. A respiração asmática e rápida de Rabicho estava se tornando mais ruidosa agora. Parecia que arrastava alguma coisa pesada pelo chão. Então ele tornou a entrar no campo de visão de Harry e o garoto pôde ver que o bruxo empurrava um caldeirão de pedra para perto do túmulo. Continha alguma coisa que parecia água — Harry a ouviu sacudir — e era maior do que qualquer outro caldeirão que Harry já tivesse usado; sua circunferência era suficientemente grande para caber um adulto sentado.
A coisa embrulhada no fardo de vestes no chão se mexeu com mais insistência, como se estivesse tentando se desvencilhar. Agora Rabicho estava mexendo com uma varinha no fundo externo do caldeirão. De repente surgiram chamas sob a vasilha. A enorme cobra deslizou para longe mergulhando nas sombras.
O líquido no caldeirão parecia estar esquentando bem rápido. Sua superfície começou não somente a borbulhar, mas também a atirar para o alto faíscas incandescentes, como se estivesse em chamas. O vapor se adensou e borrou a silhueta de Rabicho que cuidava do fogo. Seus movimentos sob a capa se tornaram mais agitados. E Harry ouviu mais uma vez a voz aguda e fria.
— Ande depressa!
Toda a superfície da água estava iluminada pelas faíscas. Parecia cravejada de diamantes.
— Está pronta, meu amo.
— Agora... — disse a voz fria.
Rabicho abriu o fardo de vestes no chão, revelando o que havia nele, e Harry deixou escapar um grito que foi estrangulado pelo chumaço de pano que arrolhava sua boca.
Era como se Rabicho tivesse virado uma pedra e deixado à mostra algo feio, pegajoso e cego — mas pior, cem vezes pior. A coisa que Rabicho andara carregando tinha a forma de uma criança humana encolhida, só que Harry nunca vira nada que se parecesse menos com uma criança. Era pelada, de aparência escamosa, de uma cor preta avermelhada e crua. Os braços e pernas eram finos e fracos e o rosto — nenhuma criança viva jamais tivera um rosto daqueles — era plano e lembrava o de uma cobra, com olhos vermelhos e brilhantes.
A coisa tinha uma aparência quase desamparada, ela ergueu os braços magros e passou-os pelo pescoço de Rabicho e este a ergueu, Ao fazer isso, seu capuz caiu para trás e Harry viu, à claridade do fogo, a expressão de repugnância em seu rosto fraco e pálido, enquanto transportava a criatura para a borda do caldeirão.
Por um instante o garoto viu o rosto plano e maligno iluminar-se com as faíscas que dançavam na superfície da poção. Então Rabicho a depositou dentro do caldeirão, ouviu-se um silvo, e ela submergiu. Harry escutou aquele corpinho frágil bater no fundo do caldeirão com um baque suave.
“Tomara que se afogue”, pensou o garoto, a cicatriz doendo mais do que era possível suportar, “por favor... Tomara que se afogue...”
Rabicho estava falando. Sua voz tremia, ele parecia assustadíssimo.
Ergueu a varinha, fechou os olhos e falou para a noite.
— Osso do pai, dado sem saber, renove filho!
A superfície do túmulo aos pés do garoto rachou. Horrorizado, Harry observou um fiapo de poeira se erguer no ar à ordem de Rabicho, e cair suavemente no caldeirão.
A superfície diamantífera da água se dividiu e chiou; disparou faíscas para todo o lado e ficou um azul vivido e peçonhento.
Rabicho choramingou. Tirou um punhal longo, fino e brilhante de dentro das vestes. Sua voz quebrou em soluços petrificados.
— Carne... Do servo... Dada de bom grado... Reanime... O seu amo.
Ele esticou a mão direita à frente, a mão em que faltava um dedo. Segurou o punhal com firmeza na mão esquerda e ergueu-o.
Harry percebeu o que Rabicho ia fazer um segundo antes acontecer, fechou os olhos com toda força que pôde, mas não conseguiu bloquear o grito que cortou a noite, e que o atravessou como se ele tivesse sido apunhalado também.
Ouviu alguma coisa cair ao chão, ouviu a respiração ofegante e aflita de Rabicho, depois o ruído nauseante de alguma coisa tombar dentro do caldeirão. Harry não suportou olhar... Mas a poção ficou vermelho-vivo e sua claridade atravessou suas pálpebras fechadas...
Rabicho ofegava e gemia de agonia. Somente quando Harry sentiu sua respiração aflita no próprio rosto é que percebeu que o bruxo estava bem diante dele.
— S-sangue do inimigo... Tirado à força... Ressuscite... Seu adversário.
Harry nada pôde fazer para impedir isso, estava muito bem amarrado... Procurando ver mais embaixo, lutando inutilmente contra as cordas que o prendiam, ele viu o punhal de prata reluzente tremer na mão de Rabicho que restava. Sentiu a ponta da arma furar a dobra do seu braço direito e o sangue fluir pela manga de suas vestes rasgadas.
Rabicho, ainda ofegando de dor, apalpou o bolso à procura de um frasquinho que ele aproximou do corte de Harry para recolher o sangue.
O bruxo cambaleou de volta ao caldeirão com o sangue do garoto.
Despejou-o ali. O líquido no caldeirão ficou instantaneamente branco ofuscante. Concluída a tarefa, Rabicho se ajoelhou ao lado do caldeirão, depois deixou-se cair de lado e ficou deitado no chão, aninhando o toco sangrento de braço, arquejando e soluçando.
O caldeirão foi cozinhando, disparando faíscas em todas as direções, um branco tão branco que transformava todo o resto num negrume aveludado. Nada aconteceu...
“Tomara que tenha se afogado” pensou Harry, “tomara que tenha dado errado...”
E então, de repente, as faíscas que subiam do caldeirão se extinguiram.
Uma nuvem de vapor branco se ergueu, repolhuda e densa, tampando tudo que havia na frente de Harry, impedindo-o de continuar a ver Rabicho, Cedrico ou qualquer outra coisa exceto o vapor pairando no ar... Pensou... “Se afogou...” “Tomara...” “Tomara que tenha morrido...”
Mas, através da névoa à sua frente, ele viu, com um assomo gelado de terror, a silhueta escura de um homem, alto e esquelético, emergindo do caldeirão.
— Vista-me — disse a voz aguda e fria por trás do vapor, e Rabicho, soluçando e gemendo, ainda aninhando o braço mutilado, correu a apanhar as vestes negras no chão, levantou-se, ergueu o braço e colocou-as apenas com a mão existente por cima da cabeça do seu amo.
O homem magro saiu do caldeirão, com o olhar fixo em Harry... E o garoto mirou aquele rosto que assombrava seus pesadelos havia três anos. Mais branco do que um crânio, com olhos grandes e vermelhos, um nariz chato como o das cobras e fendas no lugar das narinas...
Lord Voldemort acabara de ressurgir.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
Os Comensais da Morte
Voldemort desviou o olhar de Harry e começou a examinar o próprio corpo.
Suas mãos eram como aranhas grandes e pálidas, seus longos dedos brancos acariciaram o próprio peito, os braços, o rosto, os olhos vermelhos, cujas pupilas eram fendas, como as de um gato, brilhavam ainda mais no escuro. Ele ergueu as mãos e flexionou os dedos com uma expressão arrebatada e exultante. Não deu a menor atenção a Rabicho, que continuou tremendo e sangrando no chão, nem à enorme cobra, que reapareceu em cena e recomeçou a descrever círculos em torno de Harry, sibilando. Voldemort enfiou um dos dedos anormalmente longos em um bolso fundo e tirou uma varinha.
Acariciou-a gentilmente também, depois ergueu-a e apontou-a para Rabicho, e ela o guindou do chão e atirou contra a lápide a que Harry estava amarrado, o bruxo caiu aos pés da lápide e ficou ali, encolhido, chorando.
Voldemort voltou seus olhos vermelhos para Harry e soltou uma risada, aquela sua risada aguda, fria e sem alegria.
As vestes de Rabicho agora estavam manchadas de sangue brilhante, o bruxo enrolara nelas o toco de braço.
— Milorde... — disse ele com a voz embargada — milorde... O senhor prometeu... O senhor prometeu...
— Estique o braço — disse Voldemort indolentemente.
— Ah, meu amo... Obrigado, meu amo...
Rabicho esticou o toco sangrento, mas Voldemort deu uma gargalhada.
— O outro braço, Rabicho.
— Meu amo, por favor... Por favor...
Voldemort se curvou e puxou o braço esquerdo de Rabicho; empurrou a manga das vestes do servo acima do cotovelo e Harry viu que havia uma coisa na pele, uma coisa que lembrava uma tatuagem vermelho-vivo — um crânio, com uma cobra saindo da boca —, a mesma imagem que aparecera no céu na Copa Mundial de Quadribol: a Marca Negra. Voldemort examinou-a demoradamente, sem dar atenção ao choro descontrolado de Rabicho.
— Reapareceu — comentou ele baixinho —, todos deverão ter notado... E agora, veremos... Agora saberemos...
Ele comprimiu a marca no braço do servo com seu longo indicador branco.
A cicatriz na testa de Harry ardeu com uma dor aguda e Rabicho deixou escapar um uivo. Voldemort afastou o dedo da marca em Rabicho e Harry viu que ela se tornara muito preta. Com uma expressão de cruel satisfação no rosto, Voldemort se endireitou, atirou a cabeça para trás e começou a examinar o escuro cemitério.
— Quantos terão suficiente coragem para voltar quando sentirem isso? — sussurrou ele, fixando seus olhos vermelhos e brilhantes nas estrelas. — E quantos serão bastante tolos para ficar longe de mim?
Ele começou a andar de um lado para outro diante de Harry e Rabicho, seus olhos percorrendo o cemitério todo o tempo. Decorrido pouco mais de um minuto, ele tornou a olhar para Harry, um sorriso cruel deformando seu rosto viperino.
— Você está em pé, Harry Potter, sobre os restos mortais do meu pai — sibilou ele baixinho. — Um trouxa e um idiota... Muito parecido com a sua querida mãe. Mas os dois tiveram sua utilidade, não? Sua mãe morreu tentando defendê-lo quando criança... E eu matei meu pai e veja como ele se provou útil, depois de morto...
Voldemort soltou outra gargalhada. Para cima e para baixo ele andava, olhando para os lados, e a serpente continuava a circular no meio do capim.
— Você está vendo aquela casa lá na encosta do morro, Potter? Meu pai morava ali. Minha mãe, uma bruxa que vivia no povoado, se apaixonou por ele. Mas foi abandonada quando lhe contou o que era... Ele não gostava de magia, meu pai...
— Ele a abandonou e voltou para os pais trouxas antes de eu nascer, Potter, e ela morreu me dando à luz, me deixando para ser criado em um orfanato de trouxas... Mas eu jurei encontrá-lo... Vinguei-me dele, desse idiota que me deu seu nome... Tom Riddle...
E andava sem parar, seus olhos correndo de um túmulo para outro.
— Me vejam só recordando minha história de família... — comentou ele baixinho. — Ora, ora, estou ficando muito sentimental... Mas veja Harry! A minha família verdadeira está chegando...
O ar se encheu repentinamente com o rumor de capas esvoaçantes. Entre os túmulos, atrás do teixo, em cada espaço escuro, havia bruxos aparatando... Todos usavam capuzes e máscaras. E um por um, eles se adiantaram... Lentamente, cautelosamente, como se mal conseguissem acreditar no que viam.
Voldemort ficou parado em silêncio, esperando-os. Então um Comensal da Morte se prostrou de joelhos, arrastou-se até Voldemort, e beijou a barra de suas vestes negras.
— Meu amo... Meu amo...
Os Comensais da Morte que vinham atrás o imitaram, um por um, eles se aproximaram de joelhos para beijar as vestes de Voldemort para depois recuar e se levantar, formando um círculo silencioso em torno do túmulo de Tom Riddle, Harry, Voldemort e o monte de vestes que soluçava e sacudia, que era Rabicho.
Mas eles deixaram espaços vazios no círculo, como se esperassem mais gente.
Voldemort, porém, não parecia esperar mais ninguém. Olhou os rostos encapuzados ao seu redor e, embora não houvesse vento, um rumorejo pareceu percorrer o círculo como se perpassasse por ele um arrepio.
— Bem-vindos, Comensais da Morte — disse Voldemort em voz baixa. — Treze anos... Treze anos desde que nos encontramos pela última vez. Contudo, vocês atendem ao meu chamado como se fosse ontem... Então continuamos unidos sob a Marca Negra! Ou será que não?
Ele retomou sua expressão ameaçadora e farejou, dilatando as narinas em forma de fenda.
— Sinto cheiro de culpa — disse ele. — Há um fedor de culpa no ar. — Um segundo surto de arrepios percorreu o circulo, como se cada membro tivesse o desejo, mas não a coragem, de se afastar dali. — Vejo todos vocês, inteiros e saudáveis, com os seus poderes intactos, tão desenvoltos! E me pergunto... Por que esse bando de bruxos nunca foi socorrer seu amo, a quem jurou lealdade eterna?
Ninguém falou. Ninguém se mexeu exceto Rabicho, que continuava no chão, chorando, o braço ensangüentado.
— E eu próprio respondo — sussurrou Voldemort —, porque devem ter acreditado que eu estava derrotado, pensaram que eu acabara. Voltaram a se misturar com os meus inimigos e alegaram inocência, ignorância e bruxaria... E então eu me pergunto, mas como é que vocês podem ter acreditado que eu não me reergueria? Vocês, que conheciam as providências que eu tomara, há muito tempo, para me proteger da morte humana? Vocês que tiveram provas da imensidão do meu poder, na época em que fui mais poderoso do que qualquer bruxo vivente? E eu mesmo respondo, talvez acreditassem que poderia haver um poder ainda maior, um poder capaz de derrotar até Lord Voldemort... Talvez vocês agora prestem lealdade a outro... Talvez àquele campeão da plebe, dos trouxas e sangue-ruins, Alvo Dumbledore?”
À menção do nome de Dumbledore, os membros do circulo se inquietaram, alguns murmuraram e negaram sacudindo a cabeça.
Voldemort ignorou-os.
— Um desapontamento para mim... Confesso que estou desapontado...
Um dos bruxos se atirou subitamente à frente, rompendo o círculo. Tremendo da cabeça aos pés, prostrou-se aos pés de Voldemort.
— Meu amo! — exclamou. — Meu amo, me perdoe! Nos perdoe todos!
Voldemort começou a rir. Ergueu a varinha.
— Crucio!
O Comensal da Morte no chão contorceu-se e gritou, Harry teve certeza de que o som se propagava até as casas vizinhas... Tomara que a polícia chegue, desejou ele desesperado... Alguém... .Alguma coisa...
Voldemort ergueu a varinha. O Comensal da Morte torturado se estatelou no chão, arfando.
— Levante-se, Avery — disse Voldemort baixinho. — Ponha-se de pé. Você está me pedindo perdão? Eu não perdôo. Eu não esqueço. Treze longos anos... Quero um pagamento por esses treze anos antes de perdoar-lhes. Rabicho aqui já pagou parte da dívida, não foi, Rabicho?
Ele baixou os olhos para o bruxo mutilado, que continuava a soluçar.
— Você voltou para mim, não por lealdade, mas por medo dos seus antigos amigos. Você merece sentir dor, Rabicho. Você sabe disso, não sabe?
— Sei, meu amo — gemeu Rabicho —, por favor, meu amo... Por favor...
— Contudo você me ajudou a recuperar meu corpo — disse Voldemort friamente, observando o servo soluçar no chão. — Mesmo inútil e traiçoeiro como é, você me ajudou... E Lord Voldemort recompensa quem o ajuda...
Voldemort tornou a erguer a varinha e girou-a no ar. Um fio que parecia feito de prata liquefeita prolongou-se da varinha e pairou no ar. Momentaneamente informe, o fio se agitou e em seguida se transformou na réplica brilhante de uma mão humana, clara como o luar, que saiu voando e foi se prender ao pulso sangrento de Rabicho.
Os soluços do bruxo pararam abruptamente. Com a respiração rascante e falha, ele levantou a cabeça e fitou, incrédulo, a mão prateada, agora ligada sem costura ao seu braço, como se ele estivesse usando uma luva luminosa. O bruxo flexionou os dedos reluzentes, depois, trêmulo, apanhou um graveto no chão e pulverizou-o.
— Milorde — sussurrou ele. — Meu amo... É linda... Muito obrigado... Muito obrigado...
Ele avançou de joelhos e beijou a barra das vestes de Voldemort.
— Que a sua lealdade jamais volte a vacilar, Rabicho — disse Voldemort.
— Não, milorde... Nunca, milorde...
Rabicho se levantou e tomou posição no círculo, sem tirar os olhos da mão nova e poderosa, seu rosto lavado de lágrimas. Voldemort se aproximou então do homem à direita de Rabicho.
— Lúcio, meu ardiloso amigo — murmurou ele se detendo diante do bruxo. — Ouço dizer que você não renunciou aos seus hábitos antigos, embora para o mundo você apresente uma imagem respeitável. Acredito que continue pronto para assumir a liderança de uma torturazinha de trouxas? No entanto você nunca tentou me encontrar, Lúcio... As suas aventuras na Copa Mundial de Quadribol foram engraçadas, devo dizer... Mas será que suas energias não teriam sido melhor empregadas em procurar ajudar seu amo.
— Milorde, sempre estive constantemente alerta — ouviu-se na mesma hora a voz de Lúcio Malfoy saindo por baixo do capuz. — Se tivesse havido algum sinal do senhor, algum rumor sobre seu paradeiro, eu teria ido imediatamente para o seu lado, nada teria me detido...
— Contudo, você correu da minha marca, quando um leal Comensal da Morte a projetou no céu no verão passado — comentou displicentemente Voldemort, e o Sr. Malfoy parou abruptamente de falar. — É, sei de tudo que aconteceu, Lúcio... Você me desapontou... Espero serviços mais leais no futuro.
— Naturalmente, milorde, naturalmente... O senhor é misericordioso, obrigado...
Voldemort continuou a andar e parou, reparando no espaço — suficientemente grande para duas pessoas — que separava Malfoy do comensal seguinte.
— Os Lestrange deveriam estar aqui — disse Voldemort baixinho. — Mas estão enterrados vivos em Azkaban. Foram fiéis. Preferiram ir para Azkaban a renunciar a mim... Quando Azkaban for aberta, os Lestrange receberão honras que ultrapassarão todos os seus sonhos. Os dementadores se unirão a nós... São nossos aliados naturais... Chamaremos de volta os gigantes banidos... Todos os meus servos devotados me serão devolvidos e um exército de criaturas que todos temem...
Ele continuou sua caminhada. Passou por alguns comensais em silêncio, mas parou diante de outros para lhes falar.
— Macnair... Eliminando animais perigosos para o Ministério da Magia agora, segundo me conta Rabicho. Breve você terá melhores vítimas, Macnair. Lord Voldemort irá providenciá-las...
— Obrigado, meu amo... Obrigado — murmurou Macnair.
— E aqui — Voldemort prosseguiu dirigindo-se aos dois maiores vultos encapuzados — temos Crabbe... Você vai trabalhar melhor desta vez, não vai, Crabbe? E você, Goyle?
Os dois fizeram uma reverência desajeitada, murmurando com uma certa lentidão:
— Sim, meu amo...
— Trabalharemos, meu amo...
— O mesmo se aplica a você, Nott — disse Voldemort baixinho, ao passar pelo vulto curvado à sombra do Sr. Goyle.
— Milorde, eu me prostrei diante do senhor, sou o seu mais fiel...
— Basta — disse Voldemort.
Ele chegou, então, à maior lacuna no círculo, e parou contemplando-a com seus olhos parados e vermelhos, como se pudesse ver pessoas em pé ali.
— E aqui temos seis Comensais da Morte ausentes... Três mortos a meu serviço. Um demasiado covarde para voltar... Ele me pagará. Um que eu acredito ter me deixado para sempre... Este será morto, é claro... E um que continua sendo meu mais fiel servo, e que já reingressou no meu serviço.
Os Comensais da Morte se agitaram, Harry viu que eles se entreolhavam por trás das máscaras.
— Ele está em Hogwarts, esse servo fiel, e foi graças aos seus esforços que o nosso jovem amigo chegou aqui esta noite... Sim, — disse Voldemort, um sorriso crispando sua boca sem lábios, quando os olhares do círculo convergiram para Harry. — Harry Potter teve a gentileza de se reunir a nós para comemorar a minha ressurreição. Poderíamos até chamá-lo de meu convidado de honra.
Fez-se silêncio. Em seguida o Comensal da Morte à direita de Rabicho deu um passo à frente, e a voz de Lúcio Malfoy falou por baixo da máscara.
— Meu amo, é grande o nosso desejo de saber... Suplicamos que nos conte... Como foi que o senhor conseguiu este... Milagre... Como conseguiu voltar para nós...
— Ah, que história extraordinária, Lúcio! — disse Voldemort. — E ela começa... E termina... Com o meu jovem amigo aqui.
Ele caminhou descansadamente e parou ao lado de Harry, fazendo com que os olhos de todo o círculo se voltassem para os dois. A cobra continuava a rastejar em círculos.
— Vocês sabem, naturalmente, que muitos chamam este garoto de minha perdição! — disse Voldemort baixinho, os olhos fixos em Harry, cuja cicatriz começou a arder tão ferozmente que ele quase gritou de agonia. — Vocês todos sabem que na noite em que perdi meus poderes e o meu corpo, tentei matá-lo. A mãe dele morreu, tentando salvá-lo, e, sem saber, o resguardou com uma proteção que, devo admitir, eu não havia previsto... Eu não pude tocar no rapaz.
Voldemort ergueu um longo dedo branco e levou-o até próximo do rosto de Harry.
— A mãe deixou nele os vestígios do seu sacrifício... Isto é magia antiga, de que eu devia ter me lembrado, foi uma tolice tê-la esquecido... Mas isso não importa. Eu agora posso tocá-lo.
Harry sentiu a ponta fria do longo dedo branco tocá-lo, e pensou que sua cabeça ia explodir de dor. Voldemort riu de mansinho na orelha do garoto, depois afastou o dedo e continuou a se dirigir aos Comensais da Morte.
— Eu calculei mal, meus amigos, admito. Minha maldição foi refratada pelo tolo sacrifício da mulher e ricocheteou contra mim. Ah... A dor que ultrapassa a dor, meus amigos, nada poderia ter me preparado para aquilo. Fui arrancado do meu corpo, me tornei menos que um espírito, menos que o fantasma mais insignificante... Mas, ainda assim, continuei vivo. Em que me transformei, nem eu mesmo sei... Eu que cheguei mais longe do que qualquer outro no caminho que leva à imortalidade. Vocês conhecem o meu objetivo, vencer a morte. E agora fui testado, e aparentemente uma, ou mais de uma, das minhas experiências foi bem sucedida... Pois eu não morri, embora a maldição devesse ter me matado. Contudo, fiquei tão impotente quanto a mais fraca criatura viva e sem meios de ajudar a mim mesmo... Pois não possuía mais corpo, e qualquer feitiço que pudesse ter me ajudado exigia o uso da varinha... Só me lembro de me obrigar, sem dormir, sem cessar, segundo a segundo, a existir... Fui morar em um lugar distante, numa floresta e esperei... Certamente um dos meus fiéis Comensais da Morte tentaria me encontrar... Um deles viria e realizaria por mim a mágica necessária para eu recuperar meu corpo... Mas esperei em vão...
O arrepio tornou a perpassar o círculo de atentos Comensais da Morte.
Voldemort deixou o silêncio espiralar de modo terrível antes de prosseguir:
— Só me restara um poder. Eu podia me apossar do corpo de outros. Mas eu não me atrevia a ir aonde viviam muitos humanos, pois eu sabia que os aurores continuavam a viajar pelo exterior à minha procura. Por vezes eu habitava animais, as cobras, é claro, eram minhas preferidas, mas eu não ficava muito melhor dentro delas do que como puro espírito, porque seus corpos eram mal equipados para realizar mágicas... E apossar-me delas encurtava suas vidas, nenhuma delas sobreviveu muito tempo... Então... Há quatro anos... Os meios para o meu retorno me pareceram garantidos. Um bruxo, jovem, tolo e crédulo, cruzou o meu caminho na floresta em que eu vivia. Ah, ele parecia exatamente a chance com que eu sonhara... Porque era professor na escola de Dumbledore... Era dócil à minha vontade... E me trouxe de volta a este país e, pouco depois, me apoderei do seu corpo para vigiá-lo de perto enquanto cumpria minhas ordens. Mas meu plano fracassou. Não consegui roubar a Pedra Filosofal. Não pude obter a vida eterna. Fui impedido... Fui impedido, mais uma vez, por Harry Potter...
Novamente o silêncio, nada se movia, nem mesmo as folhas do teixo. Os Comensais da Morte permaneceram muito quietos, os olhos cintilantes em suas máscaras fixos em Voldemort e Harry.
— Meu servo morreu quando abandonei seu corpo, e fiquei mais fraco do que jamais estive. Voltei ao meu esconderijo distante, e não vou fingir que não receei então que talvez jamais recuperasse meus poderes... Sim, aquela talvez tenha sido a hora mais negra da minha vida... Eu não poderia esperar que caísse do céu outro bruxo para eu me apoderar... E já perdera as esperanças de que algum Comensal da Morte se importasse com o que me acontecera...
Uns dois bruxos mascarados no círculo se mexeram constrangidos, mas Voldemort não lhes deu a menor atenção.
— Então, há menos de um ano, quando eu praticamente abandonara toda esperança, aconteceu... Um servo voltou para mim, o Rabicho aqui, que simulara a própria morte para fugir à justiça, foi forçado a se expor por aqueles que no passado tinham sido seus amigos, e resolveu voltar para o seu amo. Ele me procurou no campo onde houvera boatos de que eu estaria escondido... Ajudado, naturalmente, pelos ratos que encontrou em seu caminho. Rabicho tem uma curiosa afinidade por ratos, não é mesmo, Rabicho? Seus imundos amiguinhos lhe contaram que havia um lugar, no meio de uma floresta albanesa que eles evitavam, onde pequenos animais como eles encontravam a morte pelas mãos de um vulto escuro que os possuía... Mas a viagem de regresso não correu tranqüilamente para mim, não é, Rabicho? Certa noite, esfomeado, na orla da floresta em que esperava me encontrar, ele parou, tolamente, em uma estalagem para comer alguma coisa... E quem ele haveria de encontrar lá, se não Berta Jorkins, uma bruxa do Ministério da Magia?
— Agora vejam como o destino favorece Lord Voldemort. Isto poderia ter sido o fim de Rabicho e da minha última chance de regeneração. Mas Rabicho — revelando uma presença de espírito que eu jamais esperaria dele — convenceu Berta Jorkins a acompanhá-lo em um passeio noturno. Ele a dominou... E a trouxe até mim. E Berta Jorkins, que poderia ter posto tudo a perder, em vez disso provou ser uma dádiva que superou as minhas expectativas mais extravagantes... Pois, com um nadinha de persuasão, tornou-se uma verdadeira mina de informações. Ela me contou que este ano seria realizado um Torneio Tribruxo em Hogwarts. E que conhecia um Comensal da Morte fiel que teria muito prazer em me ajudar, se eu o procurasse. Ela me contou muitas coisas... Mas os meios que usei para romper o Feitiço da Memória que a dominava foram fortes, e depois que extrai dela toda informação útil, sua mente e seu corpo ficaram irrecuperavelmente danificados. Servira a sua finalidade. Mas eu não poderia me apossar do seu corpo. Descartei-a.
Voldemort sorriu, aquele sorriso medonho, seus olhos vermelhos vidrados e cruéis.
— O corpo de Rabicho, naturalmente, era pouco próprio para uma possessão, já que todos o presumiam morto e ele atrairia demasiada atenção se fosse visto. Contudo, era o servo fisicamente válido de que eu precisava. E, embora fosse um bruxo medíocre, foi capaz de seguir as instruções que lhe dei e que me devolveriam um corpo rudimentar e fraco porém meu, um corpo que eu poderia habitar enquanto esperava os ingredientes essenciais para uma verdadeira ressurreição... Uns feitiços de minha própria invenção... Uma ajudazinha de Nagini — os olhos de Voldemort se voltaram para a cobra que circulava a lápide sem parar —, uma poção feita com sangue de unicórnio, veneno de cobra fornecido por Nagini... E logo eu recuperei uma forma quase humana e suficientemente forte para viajar. Não havia mais esperanças de roubar a Pedra Filosofal, pois eu sabia que Dumbledore teria tomado providências para destruí-la. Mas eu estava disposto a abraçar mais uma vez a vida mortal antes de perseguir a imortal. Estabeleci objetivos mais modestos... Aceitei ter o meu antigo corpo e a minha antiga força de volta.
— Eu sabia que para obter isso, que é uma velha peça de Magia Negra a poção que me reanimou hoje à noite, eu precisaria de três poderosos ingredientes. Bem, um deles já estava à mão, não é mesmo, Rabicho? A carne doada por um servo... O osso do meu pai, naturalmente, significava que eu teria que vir até aqui, onde ele estava enterrado. Mas o sangue de um inimigo... Rabicho queria que eu usasse um bruxo qualquer, não foi, Rabicho? Um bruxo qualquer que tivesse me odiado... Como tantos ainda odeiam. Mas eu sabia do que precisava, se era para me reerguer mais poderoso do que tinha sido antes da queda. Eu queria o sangue de Harry Potter. Eu queria o sangue daquele que tinha me despojado do poder há treze anos, porque a proteção duradoura que a mãe dele tinha lhe dado circularia em minhas veias também... Mas como apanhar Harry Potter? Porque ele foi protegido muito mais do que acho que ele sabe, protegido de várias maneiras criadas por Dumbledore há muito tempo, quando recebeu o encargo de cuidar do futuro do garoto.
— Dumbledore invocou uma mágica antiga para garantir a proteção ao garoto enquanto estivesse aos cuidados dos parentes. Nem mesmo eu posso tocá-lo em casa deles... Depois, naturalmente houve a Copa Mundial de Quadribol... Achei que a proteção dele enfraqueceria ali, longe dos parentes e de Dumbledore, mas eu ainda não estava suficientemente forte para tentar seqüestrá-lo em meio a uma horda de bruxos do Ministério. Depois, o garoto retornaria a Hogwarts, onde vive debaixo do nariz torto daquele tolo, amante de trouxas, de manhã à noite. Então, como poderia capturá-lo?
— Ora... Aproveitando as informações de Berta Jorkins, é claro. Usando o meu fiel Comensal da Morte, baseado em Hogwarts, para garantir que o nome do garoto fosse inscrito no Cálice de Fogo. Usando o meu Comensal da Morte para garantir que o garoto ganhasse o torneio — que tocasse a Taça Tribruxo primeiro, Taça que o meu Comensal da Morte havia transformado em uma Chave de Portal para trazê-lo aqui, longe do socorro e proteção de Dumbledore, até o aconchego dos meus braços abertos para recebê-lo. E aqui está ele... O garoto que vocês todos acreditaram que tinha sido minha ruína...
Voldemort avançou lentamente e se virou para encarar Harry.
Ergueu a varinha.
— Crucio!
Foi uma dor que superou qualquer coisa que Harry já sofrera, seus próprios ossos pareciam estar em fogo, sua cabeça, sem dúvida alguma, estava rachando ao longo da cicatriz, seus olhos giravam descontrolados em sua cabeça, ele queria que tudo terminasse... Que perdesse os sentidos... Morresse...
Então passou. Ele ficou pendurado nas cordas que o prendiam à lápide do pai de Voldemort, olhando aqueles brilhantes olhos vermelhos através de uma espécie de névoa. A noite ressoava com o estrépito das risadas dos Comensais da Morte.
— Estão vendo a tolice que foi vocês suporem que este garoto algum dia pudesse ser mais forte que eu? — ponderou Voldemort. — Mas eu não quero que reste nenhum engano na mente de ninguém. Harry Potter me escapou por pura sorte. E vou provar o meu poder matando-o, aqui e agora, diante de todos vocês, onde não há Dumbledore para ajudá-lo nem mãe para morrer por ele. Vou dar a Harry uma oportunidade. Ele poderá lutar, e vocês não terão mais dúvida alguma sobre qual de nós é mais forte. Espere mais um pouquinho Nagini — sussurrou ele, e a cobra se afastou, deslizando pelo capim, até o local em que os Comensais da Morte estavam parados observando. — Agora, desamarre-o Rabicho, e devolva sua varinha.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
Priori Incantatem
Rabicho aproximou-se de Harry, que tentou se aprumar para sustentar o corpo antes que as cordas fossem desamarradas. Rabicho ergueu a nova mão prateada, puxou o chumaço de pano que amordaçava Harry e então, com um único movimento, cortou as cordas que prendiam o garoto à lápide.
Houve talvez uma fração de segundo em que Harry poderia ter pensado em fugir, mas sua perna machucada estremeceu sob o peso do corpo quando ele firmou os pés no túmulo malcuidado, ao mesmo tempo que os Comensais da Morte cerraram fileiras, apertando o círculo em torno dele e de Voldemort, e os espaços que seriam dos Comensais da Morte ausentes se fecharam. Rabicho saiu do círculo e foi até onde jazia o corpo de Cedrico, e voltou trazendo a varinha de Harry, que ele enfiou com brutalidade na mão do garoto sem sequer olhá-lo.
Depois, Rabicho retomou seu lugar no círculo de comensais que observavam.
— Você aprendeu a duelar, Harry Potter? — perguntou Voldemort suavemente, seus olhos vermelhos brilhando no escuro.
Ao ouvir a pergunta Harry se lembrou, como se pertencesse a uma vida anterior, do Clube dos Duelos em Hogwarts que ele freqüentara brevemente há dois anos... A única coisa que aprendera tinha sido o Feitiço para Desarmar, "Expelliarmus?... e de que adiantaria isso, mesmo que ele pudesse privar Voldemort de sua varinha, quando ele estava rodeado de Comensais da Morte e em desvantagem de, no mínimo, trinta a um? Ele jamais aprendera nada que o tivesse preparado minimamente para uma situação dessas. Sabia que estava enfrentando aquilo contra o qual Moody sempre o alertara... a Maldição Avada Kedavra, impossível de bloquear — e Voldemort tinha razão —, desta vez a mãe de Harry não estava ali para morrer por ele... Não contava com proteção alguma...
— Nos cumprimentamos com uma curvatura, Harry — disse Voldemort, se inclinando ligeiramente, mas mantendo o rosto de cobra erguido para Harry. — Vamos, as boas maneiras devem ser observadas... Dumbledore gostaria que você demonstrasse educação... Curve-se para a morte, Harry...
Os Comensais da Morte deram novas gargalhadas. A boca sem lábios de Voldemort riu. Harry não se curvou. Não ia deixar o bruxo brincar com ele antes de matá-lo... Não ia lhe dar essa satisfação...
— Eu disse, curve-se — repetiu Voldemort, erguendo a varinha, e Harry sentiu sua coluna se curvar como se uma mão enorme e invisível o empurrasse impiedosamente para frente, e os Comensais da Morte riram com mais gosto que nunca.
— Muito bem, disse Voldemort suavemente, e quando ele baixou a varinha a pressão que empurrava Harry se aliviou também. — Agora você me enfrenta, como homem... De costas retas e orgulhoso, do mesmo modo que seu pai morreu... Agora... Vamos ao duelo.
O bruxo ergueu a varinha antes que Harry pudesse fazer alguma coisa para se defender, antes que pudesse sequer se mexer, e ele foi atingido pela Maldição Cruciatus. A dor foi tão intensa, e tão devoradora, que Harry já nem sabia onde estava... Facas em brasa perfuravam cada centímetro de sua pele, sua cabeça, sem dúvida alguma, ia explodir de dor, ele gritava mais alto do que jamais gritara na vida...
Então tudo parou. Harry se virou e tentou ficar em pé; tremeu descontrolado, como fizera Rabicho quando decepara a própria mão, cambaleou para os lados na direção dos Comensais da Morte ao redor, e eles o empurraram de volta a Voldemort.
— Uma pequena pausa — disse o bruxo, as narinas de cobra se dilatando de excitação — uma pequena pausa... Isso doeu, não foi Harry? Você não quer que eu faça isso outra vez, quer?
Harry não respondeu. Ia morrer como Cedrico, era o que aqueles olhos vermelhos e cruéis estavam lhe dizendo... Ia morrer, e não havia nada que pudesse fazer para evitá-lo... Mas não ia facilitar. Não ia obedecer a Voldemort... Não ia suplicar...
— Perguntei se quer que eu faça isso outra vez — disse Voldemort gentilmente. — Responda! Império!
E Harry teve, pela terceira vez em sua vida, a sensação de que todos os pensamentos tinham se apagado de sua mente... Ah, foi uma felicidade, não pensar, foi como se estivesse flutuando, sonhando... Apenas responda "não"!... Diga "não"!... Apenas responda "não"! “Não direi”, falou uma voz mais forte no fundo de sua cabeça, “não responderei...” Apenas responda "não"!..
“Não vou responder, não vou dizer isso...”
Apenas responda "não "!.
— NÃO VOU RESPONDER!
E essas palavras explodiram da boca de Harry, ecoaram pelo cemitério, e o estado onírico em que mergulhara se dissolveu repentinamente como se tivessem lhe atirado um balde de água fria — renovaram-se as dores que a Maldição Cruciatus deixara por todo o seu corpo — renovou-se a consciência de onde estava, do que estava enfrentando...
— Não vai? — disse Voldemort suavemente, e agora os Comensais da Morte não estavam rindo. — Não vai dizer "não"? Harry, a obediência é uma virtude que preciso lhe ensinar antes de você morrer... Talvez mais uma dosezinha de dor?
Voldemort ergueu a varinha, mas desta vez Harry estava preparado, com os reflexos nascidos da prática de Quadribol, ele se atirou para um lado no chão, rolou para trás da lápide de mármore do pai de Voldemort e a ouviu rachar quando o feitiço errou o alvo.
— Não estamos brincando de esconde-esconde, Harry — disse a voz suave e fria de Voldemort, aproximando-se, enquanto os Comensais da Morte riam. — Você não pode se esconder de mim. Será que isso significa que já se cansou do nosso duelo? Será que significa que você prefere que eu o encerre agora, Harry? Saia daí, Harry... Saia e venha brincar, então... Será rápido... Talvez até indolor... Eu não saberia dizer... Eu nunca morri...
Harry continuou agachado atrás da lápide e percebeu que chegara o seu fim. Não havia esperança... Nenhuma ajuda de ninguém. Quando ouviu Voldemort chegar ainda mais perto, ele soube apenas uma coisa que transcendeu o medo e a razão — ele não ia morrer agachado ali como uma criança brincando de esconde-esconde; não ia morrer ajoelhado aos pés de Voldemort... Ia morrer de pé como seu pai, e ia morrer tentando se defender, mesmo que não houvesse defesa alguma possível...
Antes que Voldemort pudesse meter a cara viperina atrás da lápide, Harry se levantou... Agarrou a varinha com força, empunhou-a à frente e saiu rápido detrás da lápide para encarar Voldemort.
O bruxo estava pronto. Quando Harry gritou "Expeliarmus!", Voldemort gritou "Avada Kedavra!”
Um jorro de luz verde saiu da varinha de Voldemort na mesma hora em que um jorro de luz vermelha disparou da de Harry — e os dois se encontraram no ar — e de repente, a varinha de Harry começou a vibrar como se uma descarga elétrica estivesse entrando por ela, sua mão estava presa à varinha, ele não teria podido soltá-la se quisesse — e um fino feixe de luz agora ligava as duas varinhas, nem vermelha nem verde, mas um dourado intenso e rico —, e Harry, acompanhando o feixe com o olhar espantado, viu que os dedos longos e brancos de Voldemort também agarravam uma varinha que sacudia e vibrava.
E então — nada poderia ter preparado Harry para isso — ele sentiu seus pés se elevarem do chão. Ele e Voldemort estavam sendo erguidos no ar, as varinhas ainda ligadas por aquele fio de luz dourada e tremeluzente. Os dois estavam se afastando do túmulo do pai de Voldemort e por fim pousaram num trecho de terreno limpo e sem túmulos... Os Comensais da Morte gritavam, pedindo instruções a Voldemort; se aproximavam e se reagrupavam em um círculo em volta dos dois, a cobra em seus calcanhares, alguns bruxos sacando as varinhas...
O fio dourado que ligava Harry e Voldemort se fragmentou: embora as varinhas continuassem ligadas, mil outros fios brotaram e formaram um arco sobre os dois, e foram se entrecruzando a toda volta, até encerrá-los em uma teia dourada como uma redoma, uma gaiola de luz, para além da qual os Comensais da Morte rondavam como chacais, seus gritos estranhamente abafados...
— Não façam nada! — gritou Voldemort para os Comensais da Morte, e Harry viu os olhos vermelhos do bruxo se arregalarem para o que estava acontecendo, viu-o lutar para romper o fio de luz que continuava ligando sua varinha à de Harry; o garoto apertou a varinha com mais força, com as duas mãos, e o fio dourado continuou inteiro.
— Não façam nada a não ser que eu mande! — gritou Voldemort para os Comensais da Morte.
Então um som belo e sobrenatural encheu o ar... Vinha de cada fio de luz da teia que vibrava em torno de Harry e Voldemort. Era um som que o garoto reconhecia, embora só o tivesse ouvido uma vez na vida... A canção da fênix...
Era o som da esperança para Harry... O mais belo e mais bem-vindo que ele já ouvira na vida... O garoto teve a sensação de que o som estava dentro dele e não apenas à sua volta... Era o som que ele associava a Dumbledore, e era quase como se um amigo estivesse falando em seu ouvido...
Não rompa a ligação.
Eu sei, Harry disse à música, eu sei que não devo... Mas mal acabara de dizer isso, e a coisa se tornou muito mais difícil de fazer. Sua varinha começou a vibrar mais violentamente do que antes... E agora o fio de luz entre ele e Voldemort mudou também... Era como se grandes contas de luz estivessem deslizando para frente e para trás no fio que ligava as varinhas — Harry sentiu a sua estremecer com força, quando as contas de luz começaram a deslizar lenta e continuamente em sua direção... Agora o movimento do feixe de luz vinha de Voldemort para ele, e ele sentiu a varinha vibrar de indignação...
Quando a conta de luz mais à frente se aproximou da ponta da varinha de Harry, a madeira em seus dedos esquentou de tal forma que o garoto receou que ela fosse romper em chamas. Quanto mais perto chegava a conta, mais violentamente a varinha de Harry vibrava, ele tinha certeza de que sua varinha não sobreviveria a um contato direto com a conta, ela parecia prestes a se esfacelar sob seus dedos...
Harry concentrou cada partícula de sua mente em obrigar a conta a voltar para Voldemort, seus ouvidos tomados pela canção da fênix, seus olhos furiosos, fixos... E lentamente, muito lentamente, as contas estremeceram e pararam, e em seguida, de forma igualmente lenta, começaram a se deslocar para o lado oposto... E foi a varinha de Voldemort que começou a vibrar com muita violência...
Voldemort que parecia perplexo e quase temeroso...
Uma das contas de luz estremecia a centímetros da ponta da varinha de Voldemort. Harry não entendia por que estava fazendo aquilo, não sabia o que obteria... Mas começou a se concentrar, como nunca fizera na vida, em forçar aquela conta de luz a voltar à varinha de Voldemort... E lentamente... Muito lentamente... Ela foi se deslocando pelo fio dourado... Estremeceu por um momento... E então fez contato...
Na mesma hora, a varinha de Voldemort começou a emitir gritos ressonantes de dor... Depois... Os olhos vermelhos do bruxo se arregalaram de choque, uma mão, densa e fumegante voou da ponta da varinha e desapareceu... O fantasma da mão que ele fizera para Rabicho... Mais gritos de dor... E então algo muito maior começou a brotar da ponta da varinha de Voldemort, algo imenso e acinzentado, algo que parecia ser feito da mais sólida e densa fumaça... Era uma cabeça, depois um peito e os braços... O tronco de Cedrico Diggory.
Se em algum momento Harry pudesse ter soltado a varinha de susto, teria sido então, mas o instinto o fez continuar segurando-a com força, de modo que o fio de luz dourada permaneceu intacto, embora o fantasma cinzento e denso de Cedrico Diggory (seria um fantasma? Parecia tão sólido) emergisse em sua inteireza da ponta da varinha de Voldemort, como se estivesse se espremendo para fora de um túnel muito estreito... E esta sombra de Cedrico ficou em pé e examinou o fio de luz dourada de uma ponta a outra e falou.
— Agüenta firme, Harry.
Era uma voz distante como um eco, Harry olhou para Voldemort... Os olhos vermelhos e arregalados do bruxo ainda expressavam choque... Tal qual Harry, ele não esperara uma coisa daquelas... E, muito indistintamente, Harry ouviu os gritos amedrontados dos Comensais da Morte, rodeando a redoma dourada...
Novos gritos de dor da varinha... Então mais uma coisa surgiu em sua ponta... A sombra densa de uma segunda cabeça, rapidamente seguida de braços e tronco... Um velho que Harry vira uma vez em sonho tentava agora sair da ponta da varinha do mesmo modo que Cedrico o fizera... E seu fantasma, ou sua sombra, ou o que fosse, caiu ao lado do de Cedrico, examinou Harry e Voldemort, a teia dourada e as varinhas que se tocavam, levemente surpreso, apoiando-se em uma bengala...
— Então ele era um bruxo de verdade? — perguntou o velho, com os olhos em Voldemort. — Me matou, esse aí... Enfrenta ele, moleque...
Mas já, outra cabeça vinha surgindo... E esta, grisalha como uma estátua de fumaça, era de uma mulher... Harry os dois braços trêmulos com o esforço para manter a varinha parada, viu a mulher cair ao chão e se aprumar como tinham feito os outros, examinando tudo com atenção... A sombra de Berta Jorkins contemplou a luta diante dela de olhos arregalados.
— Não solte! — exclamou, e sua voz ecoou como a de Cedrico, como se viesse de muito longe. — Não deixe ele pegar você, Harry, não solte a varinha!
Ela e as outras duas sombras começaram a rodear as paredes da teia dourada ao mesmo tempo que os Comensais da Morte se moviam rapidamente pelo lado de fora... E, enquanto rodeavam os duelistas, as vítimas de Voldemort sussurravam palavras de estímulo a Harry e sibilavam outras, que Harry não podia ouvir, para Voldemort.
Agora, outra cabeça vinha emergindo da ponta da varinha do bruxo... e Harry soube, ao vê-la, quem seria... Ele sabia, como se esperasse isso desde o momento em que Cedrico saíra da varinha... Soube por que a mulher que apareceu era aquela em quem ele pensara mais do que em qualquer outra pessoa esta noite...
A sombra esfumaçada de uma mulher jovem de cabelos longos caiu no chão como fizera Berta, se endireitou e olhou para ele... E Harry, com os braços tremendo loucamente agora, retribuiu o olhar do rosto fantasmagórico de sua mãe.
— Seu pai está vindo... — disse ela baixinho. — Ele quer ver você... Vai dar tudo certo... Agüente firme...
E ele veio... Primeiro a cabeça, depois o corpo... Alto, os cabelos rebeldes como os de Harry, a sombra esfumaçada de Tiago Potter brotou da ponta da varinha de Voldemort, caiu ao chão e se levantou como havia feito sua mulher. Ele se aproximou de Harry fitando o filho, e falou na mesma voz distante e ressonante como os demais, mas em tom baixo, de modo que Voldemort, agora com o rosto lívido de medo ao ver suas vítimas a rodeá-lo, não pudesse ouvir...
— Quando a ligação for interrompida, permaneceremos apenas uns momentos... Mas vamos lhe dar tempo... você precisa chegar à Chave do Portal, ela o levará de volta a Hogwarts... Entendeu Harry?
— Entendi — ofegou Harry, lutando para manter firme a varinha, que agora começava a escapar e a escorregar sob seus dedos.
— Harry... — sussurrou a figura de Cedrico — por favor, leva o meu corpo com você? Leva o meu corpo para os meus pais...
— Levo — prometeu Harry, seu rosto contraído com o esforço de agüentar a varinha.
— Faça isso agora — sussurrou seu pai. — Prepare-se para correr... Faça isso agora...
— AGORA! — berrou Harry; de qualquer modo, ele não achava que pudesse continuar segurando a varinha nem mais um instante, ergueu-a no ar, com um puxão violento, e o fio dourado se rompeu, a gaiola de luz desapareceu, a música da fênix silenciou, mas as sombras das vítimas de Voldemort não desapareceram, avançaram para o bruxo, escondendo Harry do seu olhar...
E Harry correu como nunca correra na vida, derrubando dois Comensais da Morte abobados ao passar, depois ziguezagueou por trás de lápides, sentindo maldições acompanharem-no, ouvindo-as bater nas lápides — evitou maldições e túmulos, correndo em direção ao corpo de Cedrico, sem sequer sentir a perna doer, todo o seu ser se concentrando no que precisava fazer...
— Estupore-o!— ele ouviu Voldemort gritar.
A dez passos de Cedrico, Harry mergulhou atrás de um anjo de mármore para evitar os jorros de luz vermelha e viu a ponta da asa do anjo desmoronar ao ser atingida pelos feitiços. Apertando com mais força a varinha, ele saiu ligeiro de trás do anjo...
— Impedimenta!— berrou ele, apontando a varinha de qualquer jeito por cima do ombro na direção geral dos Comensais da Morte que corriam em seu encalço.
Por um grito abafado que ouviu, ele achou que conseguira fazer parar pelo menos um, mas não havia tempo para se deter e olhar, ele saltou por cima da Taça e mergulhou ao ouvir mais explosões saírem das varinhas às suas costas, mais jorros de luz voaram por cima de sua cabeça quando ele caiu, esticando a mão para agarrar o braço de Cedrico...
— Afastem-se! Eu o matarei! Ele é meu! — gritou a voz aguda de Voldemort.
A mão de Harry se fechou no pulso de Cedrico, havia uma lápide entre ele e Voldemort, mas Cedrico era demasiado pesado para carregar, e a Taça estava fora do seu alcance...
Os olhos vermelhos de Voldemort chispavam no escuro. Harry viu a boca do bruxo se crispar num sorriso e viu-o erguer a varinha.
— Accio! — berrou Harry, apontando a própria varinha para a Taça Tribruxo. A Taça voou pelo ar em sua direção, Harry agarrou-a pela asa...
Ele ouviu o grito de fúria de Voldemort no mesmo instante em que sentiu o solavanco no umbigo que significava que a Chave do Portal fora acionada... Ele se afastou em alta velocidade num turbilhão de vento e cor, levando Cedrico junto... Os dois estavam voltando...
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
Veritaserum
Harry sentiu que caía chapado no chão, seu rosto comprimiu a grama, cujo cheiro invadiu suas narinas. Ele fechara os olhos enquanto a Chave do Portal o transportava, e os mantinha fechados até aquele momento. Não se mexeu.
Todo o ar parecia ter sido expulso dos seus pulmões, sua cabeça rodava tanto que ele sentia o chão balançar sob seu corpo como se fosse o convés de um navio.
Para se firmar, apertou com mais força as duas coisas que continuava a segurar, a asa lisa e fria da Taça Tribruxo e o corpo de Cedrico. Tinha a sensação de que ia deslizar para a escuridão que se formava na periferia do seu cérebro se largasse qualquer das duas.
O choque e a exaustão o mantiveram no chão, inspirando o cheiro de grama, esperando... Esperando que alguém fizesse alguma coisa... Que alguma coisa acontecesse... E, todo o tempo, sua cicatriz ardia surdamente em sua testa...
Uma enxurrada de sons o ensurdeceu e confundiu, havia vozes por toda parte, passos, gritos... Ele continuou onde estava, o rosto contraído contra o barulho, como se aquilo fosse um pesadelo que ia passar...
Então duas mãos o agarraram com uma certa violência e o viraram de barriga para cima.
— Harry! Harry!
O garoto abriu os olhos.
Estava olhando para o céu estrelado e Alvo Dumbledore se debruçava sobre ele. As sombras escuras das pessoas que se aglomeravam ao seu redor se aproximavam, Harry sentiu o chão sob sua cabeça vibrar com a aproximação dos seus passos.
Ele voltara ao exterior do labirinto. Via as arquibancadas no alto, os vultos das pessoas que se movimentavam nelas, as estrelas no céu. Harry largou a Taça, mas segurou Cedrico mais junto dele e com mais força. Ergueu a mão livre e agarrou o pulso de Dumbledore, enquanto o rosto do bruxo saía de foco e tornava a entrar.
— Ele voltou — sussurrou Harry — Ele voltou. Voldemort.
— Que está acontecendo? Que está acontecendo?
O rosto de Cornélio Fudge apareceu invertido sobre Harry; parecia pálido e perplexo.
— Meu Deus, Diggory! — murmurou. — Dumbledore, ele está morto!
Essas palavras foram repetidas, as sombras que se comprimiam ao redor deles as exclamaram para as mais próximas... Depois outras as gritaram, guincharam — para a noite "Ele está morto!" "Ele está morto!" "Cedrico Diggory! Morto!”
— Harry, solte-o — ele ouviu Fudge dizer, e sentiu dedos que tentavam forçar os seus a se abrirem para soltar o corpo inerte de Cedrico, mas Harry resistiu.
Então o rosto de Dumbledore, que continuava borrado e difuso, se aproximou.
— Harry, você não pode mais ajudá-lo. Terminou. Solte-o.
— Ele queria que eu o trouxesse de volta — murmurou Harry, pareceu-lhe importante explicar isso. — Ele queria que eu o trouxesse de volta para os pais...
— Certo, Harry... Agora solte-o...
Dumbledore se curvou e, com uma força extraordinária para um homem tão velho e magro, ergueu Harry do chão e o pôs de pé. Harry oscilou. Sua cabeça latejava com força. Sua perna machucada não queria mais sustentar o seu peso.
As pessoas aglomeradas ao redor se acotovelavam, tentando chegar mais próximo, empurrando sombriamente.
— Que foi que houve?
— Que aconteceu com ele?
— Diggory está morto!
— Ele precisa ir para a ala hospitalar! — dizia Fudge em voz alta. — Ele está mal, está ferido, Dumbledore, os pais de Diggory estão aqui, estão nas arquibancadas...
— Eu levo Harry, Dumbledore, eu o levo...
— Não, eu prefiro... Que deve lhe contar... Antes que ele veja...?
— Dumbledore, Amos Diggory está correndo... Está vindo para cá. — Harry, fique aqui...
Garotas gritavam, soluçavam, histéricas... A cena lampejava estranhamente diante dos olhos de Harry...
— Está tudo bem, filho, estou com você... Vamos... Ala hospitalar...
— Dumbledore disse para eu ficar — disse Harry com a fala pastosa, a palpitação na cicatriz fazendo-o sentir vontade de vomitar, sua visão mais borrada que nunca.
— Você precisa se deitar... Vamos, agora...
Alguém maior e mais forte do que ele, meio que o puxou, meio que o carregou entre os espectadores assustados, Harry ouvia as pessoas exclamarem, gritarem e berrarem à medida que o homem que o segurava abria caminho por elas, levando o garoto para o castelo. Atravessaram o gramado, passaram o lago e o navio de Durmstrang, Harry não ouvia nada, exceto a respiração ruidosa do homem que o ajudava a caminhar.
— Que aconteceu, Harry? — perguntou o homem finalmente, erguendo-o para galgar os degraus de pedra da entrada. Toque. Toque. Toque. Era Olho-Tonto Moody.
— A Taça era uma Chave de Portal — disse Harry ao atravessarem o saguão de entrada. — Nos levou para um cemitério... E Voldemort estava lá... Lord Voldemort...
Toque. Toque. Toque. Escadaria de mármore acima...
— O Lord das Trevas estava lá? Que aconteceu depois?
— Matou Cedrico... Mataram Cedrico...
— E então?
Toque. Toque. Toque. Pelo corredor...
— Preparou uma poção... Recuperou o corpo dele...
— O Lord das Trevas recuperou o corpo? Ele voltou?
— E os Comensais da Morte vieram... Depois nós duelamos...
— Você duelou com o Lord das Trevas?
— Escapei... Minha varinha... Fez uma coisa engraçada... Vi meu pai e minha mãe... Eles saíram da varinha dele...
— Aqui dentro, Harry... Aqui dentro, e sente-se... Você vai ficar bom agora... Beba isso... Harry ouviu uma chave girar na fechadura e sentiu que empurravam um copo em suas mãos.
— Beba isso... Você vai se sentir melhor... Vamos Harry, preciso saber exatamente o que aconteceu...
Moody ajudou a virar a poção na boca de Harry; o garoto tossiu, um gosto apimentado queimou sua garganta. A sala de Moody entrou em foco, bem como o próprio Moody... Ele parecia tão pálido quanto Fudge, e seus dois olhos estavam fixos, sem piscar, no rosto de Harry.
— Voldemort voltou Harry? Você tem certeza de que voltou? Como foi que ele fez isso?
— Ele apanhou uma coisa no túmulo do pai dele, depois do Rabicho e de mim. — Sua cabeça estava clareando, sua cicatriz já não doía tanto, agora conseguia ver o rosto de Moody nitidamente, embora a sala estivesse escura.
Ainda se ouviam berros e gritos vindos do distante campo de Quadribol.
— Que foi que o Lord das Trevas tirou de você? — perguntou Moody.
— Sangue — respondeu Harry erguendo o braço. A manga estava rasgada no lugar em que o punhal de Rabicho a cortara. Moody deixou escapar um assobio longo e baixo.
— E os Comensais da Morte? Voltaram?
— Voltaram. Montes deles...
— Como foi que ele os tratou? — perguntou Moody baixinho. — Ele lhes perdoou?
Mas Harry de repente se lembrou. Devia ter contado a Dumbledore, devia ter dito logo de saída...
— Tem um Comensal da Morte em Hogwarts! Tem um Comensal da Morte aqui, ele pôs o meu nome no Cálice de Fogo, certificou-se de que eu chegasse até o fim...
Harry tentou se levantar, mas Moody o obrigou a sentar-se outra vez.
— Eu sei quem é o Comensal da Morte — disse ele em voz baixa.
— Karkaroff? — disse Harry agitado. — Onde é que ele está? O senhor o pegou? Ele está preso?
— Karkaroff? — disse Moody com uma risada estranha. — Karkaroff fugiu esta noite, quando sentiu a Marca Negra arder no braço. Ele traiu um número grande demais de seguidores fiéis do Lord das Trevas para querer reencontrá-los... Mas duvido que chegue muito longe. O Lord das Trevas tem maneiras de seguir seus Inimigos.
— Karkaroff foi embora? Fugiu? Mas então... Ele não pôs o meu nome no Cálice de Fogo?
— Não — disse Moody lentamente. — Não, não pôs. Fui eu quem pôs. Harry ouviu, mas não acreditou.
— Não, o senhor não pôs. O senhor não fez isso... Não pode ter feito...
— Garanto a você que fiz — disse Moody e seu olho mágico deu uma volta completa e se fixou na porta, e Harry percebeu que ele estava se certificando de que não havia ninguém do lado de fora. Ao mesmo tempo, Moody puxou a varinha e apontou-a para o garoto.
— E ele lhes perdoou, então? Os Comensais da Morte continuaram livres? Os que escaparam de Azkaban?
— Quê? — exclamou Harry.
Ele olhou a varinha que Moody apontava para ele. Aquilo era uma piada de mau gosto, tinha que ser.
— Eu lhe perguntei — disse Moody calmamente — se ele perdoou a ralé que jamais foi procurá-lo. Aqueles traidores covardes que sequer arriscaram ser mandados para Azkaban por ele. Os porcos desleais e imprestáveis que tiveram coragem suficiente para desfilar de máscaras na Copa Mundial de Quadribol, mas fugiram ao ver a Marca Negra quando eu a projetei no céu.
— O senhor projetou... Do que é que o senhor está falando...?
— Eu já lhe disse, Harry.. Eu já lhe disse. Se tem uma coisa que eu detesto mais no mundo é um Comensal da Morte que foi absolvido. Viraram as costas ao meu amo quando ele mais precisava deles. Eu esperei que ele os castigasse. Esperei que ele os torturasse. Me diga que ele os machucou, Harry... — O rosto de Moody se iluminou de repente com um sorriso demente. — Me diga que ele disse a todos que eu, somente eu, permaneci fiel... Preparado para arriscar tudo para entregar em suas mãos o que ele mais queria... Você.
— O senhor não fez... Isso, não pode ser o senhor...
— Quem pôs o seu nome no Cálice de Fogo com o nome de uma escola diferente? Fui eu, sim. Quem afugentou cada pessoa que julguei que poderia machucá-lo ou impedir que você ganhasse o torneio? Fui eu, sim. Quem encorajou Hagrid a lhe mostrar os dragões? Fui eu, sim. Quem fez você ver a única maneira de vencer o dragão? Fui eu, sim.
O olho mágico de Moody se desviou então da porta. Fixou-se em Harry. Sua boca torta ria mais desdenhosa e abertamente que nunca.
— Não foi fácil, Harry, orientá-lo durante aquelas tarefas sem despertar suspeitas. Tive de usar cada grama de astúcia que possuo para não deixar transparecer o meu dedo no seu sucesso. Dumbledore teria ficado desconfiadíssimo se você conseguisse tudo com muita facilidade. Desde que você entrasse no labirinto, de preferência com uma boa dianteira, então, eu sabia que teria uma chance de me livrar dos outros campeões e deixar o seu caminho desimpedido. Mas tive também de lutar contra a sua burrice. A segunda tarefa... Foi a que tive mais medo que você fracassasse. Eu fiquei vigiando-o, Potter. Eu sabia que você não tinha decifrado a pista do ovo, por isso tive que lhe dar mais uma sugestão...
— O senhor não deu — disse Harry rouco. — Cedrico me deu a pista...
— Quem disse a Cedrico para abrir o ovo dentro da água? Fui eu. Confiei que ele passaria a informação a você. Gente decente é tão fácil de manipular, Potter. Eu tinha certeza de que Cedrico iria querer retribuir o favor de tê-lo informado sobre os dragões, e foi o que ele fez. Mas, mesmo assim, Potter, parecia que você ia fracassar. Fiquei vigiando-o o tempo todo... Todas àquelas horas na biblioteca.
— Você não percebeu que o livro de que precisava estava no seu dormitório o tempo todo? Eu o coloquei lá mais cedo, dei-o ao garoto Longbottom, não se lembra? Plantas Mediterrâneas e Suas Propriedades Mágicas. Ele teria lhe informado tudo que você precisava saber sobre o guelricho. Eu esperava que você pedisse ajuda a qualquer um e a todos. Longbottom teria lhe dito na mesma hora. Mas você não pediu... Você não pediu... Você tem um traço de orgulho e independência que poderia ter estragado tudo.
— Então o que é que eu podia fazer? Mandar-lhe a informação por intermédio de outra fonte inocente. Você me contou no Baile de Inverno que um elfo doméstico, chamado Dobby, lhe dera um presente de Natal. Eu chamei o elfo à sala dos professores para apanhar umas vestes para lavar. Encenei uma conversa em voz alta com a Professora McGonagall sobre os reféns que seriam usados na tarefa e se Potter pensaria em comer guelricho. E o seu amiguinho elfo correu direto para o armário de Snape e foi depressa procurar você...
A varinha de Moody continuava apontada diretamente para o coração de Harry. Por cima do ombro do professor, sombras indistintas se moviam no Espelho-de-Inimigos pendurado na parede.
— Você ficou tanto tempo no lago, Potter, que eu pensei que tinha se afogado. Mas, por sorte, Dumbledore tomou a sua burrice por nobreza e lhe deu uma nota alta. Eu respirei mais uma vez aliviado. Esta noite, você teve uma tarefa mais fácil no labirinto do que deveria, é claro, — disse Moody. — Isto foi porque eu estava patrulhando do lado de fora, e podia ver as sebes mais externas, e pude destruir muitos obstáculos no seu caminho. Eu estuporei Fleur Delacour quando ela passou. Lancei a Maldição Imperius em Krum para ele acabar com Diggory e deixar o seu caminho livre até a Taça.
Harry encarava Moody. Não conseguia entender como podia ser aquilo... O amigo de Dumbledore, o famoso auror... Aquele que capturara tantos Comensais da Morte... Não fazia sentido... Nem um pingo...
As sombras no Espelho-de-Inimigos se acentuavam, se tornando mais nítidas. Harry via, por cima do ombro de Moody, o contorno de três pessoas, que se aproximavam cada vez mais. Mas o professor não as vigiava. Seu olho mágico estava fixo em Harry.
— O Lord das Trevas não conseguiu matá-lo, Potter, e ele queria tanto! — sussurrou Moody. — Imagine a recompensa que me dará, quando descobrir que fiz isso por ele. Entreguei-o a ele, a coisa de que ele mais precisava para se regenerar, e depois matei-o para ele. Vou receber mais honrarias do que todos os outros Comensais da Morte. Serei seu seguidor mais querido, mais chegado... Mais próximo do que um filho...
O olho normal de Moody estava esbugalhado, o olho mágico fixo em Harry.
A porta continuava trancada e Harry sabia que jamais pegaria a própria varinha a tempo...
— O Lord das Trevas e eu — disse Moody, e agora parecia completamente enlouquecido, agigantando-se sobre Harry, olhando-o com desdém — temos muito em comum. Nós dois, por exemplo, tivemos pais que nos desapontaram muito... Muito mesmo. Nós dois sofremos a indignidade, Harry, de receber o nome desses pais. E nós dois tivemos o prazer... O imenso prazer... De matar nossos pais para garantir a ascensão contínua da Ordem das Trevas!
— O senhor enlouqueceu — disse Harry, o garoto não conseguiu se conter — o senhor enlouqueceu!
— Enlouqueci, eu? — a voz de Moody se alteou descontrolada. — Veremos! Veremos quem enlouqueceu, agora que o Lord das Trevas voltou, comigo ao seu lado! Ele voltou Harry Potter, você não o derrotou, e agora, eu derroto você!
Moody ergueu a varinha, abriu a boca, Harry mergulhou a mão nas vestes...
— Estupefaça! — Houve um lampejo ofuscante de luz vermelha, e, com grande fragor de madeira estilhaçada, a porta da sala de Moody rachou ao meio...
Moody foi atirado de costas ao chão. Harry, ainda fitando o lugar em que estivera o rosto de Moody, viu Alvo Dumbledore, o Professor Snape e a Professora McGonagall mirando-o do Espelho-de-Inimigos.
O garoto virou-se para os lados e viu os três parados à porta, o diretor à frente, a varinha em punho. Naquele momento, Harry compreendeu totalmente, pela primeira vez, por que as pessoas diziam que Dumbledore era o único bruxo que Voldemort temia. A expressão no rosto dele quando olhou para a forma inconsciente de Olho-Tonto Moody era mais terrível do que Harry poderia jamais imaginar.
Não havia sorriso bondoso no rosto do diretor, não havia cintilação nos olhos atrás dos óculos. Havia uma fúria gelada em cada ruga daquele rosto velho, ele irradiava uma aura de poder como se Dumbledore desprendesse um calor de brasas vivas.
O diretor entrou na sala, enfiou um pé sob o corpo inconsciente de Moody e virou-o de barriga para cima, de modo que seu rosto ficasse visível. Snape entrou em seguida, olhando o Espelho-de-Inimigos, no qual seu próprio rosto ainda era visível, examinando a sala. A Professora McGonagall dirigiu-se imediatamente a Harry.
— Vamos, Potter — sussurrou ela. A linha fina de seus lábios tremia como se ela estivesse à beira das lágrimas. — Vamos... Ala hospitalar...
— Não — disse Dumbledore energicamente.
— Dumbledore, ele precisa, olhe só para ele, já sofreu bastante esta noite...
— Ele fica Minerva, porque precisa compreender — respondeu o diretor secamente. — Compreender é o primeiro passo para aceitar, e somente aceitando ele pode se recuperar. Precisa saber o que o fez passar pela provação desta noite e o porquê.
— Moody — disse Harry. Ele continuava num estado da mais completa descrença. — Como pode ter sido Moody?
— Este não é Alastor Moody — disse Dumbledore em voz baixa. — Você jamais conheceu Alastor Moody. O verdadeiro Moody não teria retirado você das minhas vistas depois do que aconteceu hoje à noite. No instante em que ele o levou, eu compreendi, e o segui.
Dumbledore se curvou para a forma inerte de Moody e meteu a mão nas vestes do bruxo. Tirou o frasco de bolso de Moody e uma penca de chaves numa argola. Depois se voltou para a Professora McGonagall e Snape.
— Severo, por favor, vá buscar a Poção da Verdade mais forte que você tiver, depois vá à cozinha e me traga aqui o elfo doméstico chamado Winky. Minerva, por favor, desça à casa de Hagrid, onde você encontrará um enorme cão preto sentado no canteiro de abóboras. Leve o cão ao meu escritório, diga-lhe que irei vê-lo daqui a pouco, depois volte aqui.
Se Snape ou Minerva acharam essas instruções estranhas, eles ocultaram sua confusão. Os dois se viraram na mesma hora e saíram da sala. Dumbledore aproximou-se do malão com as sete fechaduras, enfiou a primeira chave na fechadura e abriu-o. O malão continha uma profusão de livros de feitiços. Em seguida o diretor fechou-o, enfiou a segunda chave na segunda fechadura e tornou a abrir o malão.
Os livros de feitiços haviam desaparecido, desta vez o malão continha uma variedade de bisbilhoscópios, algumas folhas de pergaminho e penas, e algo que lembrava uma Capa da Invisibilidade.
Harry observou, espantado, Dumbledore enfiar a terceira, quarta, quinta e sexta chaves nas fechaduras e reabrir o malão que, a cada vez, revelava conteúdos diferentes. Por fim, enfiou a sétima chave na fechadura, escancarou a tampa e Harry deixou escapar um grito de assombro.
O garoto deparou com uma espécie de poço, uma sala subterrânea e, deitado no chão, bem um metro abaixo, aparentemente em sono profundo, magro e de aparência faminta, encontrava-se o verdadeiro Olho-Tonto Moody. Faltava-lhe a perna de pau, e a órbita em que deveria estar o olho mágico parecia vazia sob a pálpebra e lhe faltavam chumaços de cabelos grisalhos. Harry correu os olhos arregalados e perplexos do Moody que dormia no malão para o Moody inconsciente caído no chão da sala.
Dumbledore entrou no malão, desceu o corpo e caiu de leve no chão ao lado do Moody adormecido. Curvou-se para ele.
— Estuporado, controlado pela Maldição Imperius, muito fraco. — disse. — Naturalmente, precisariam mantê-lo vivo. Harry me atire a capa do impostor, Alastor está congelando. Madame Pomfrey precisara examiná-lo, mas ele não parece correr perigo imediato.
Harry fez o que o diretor lhe pediu, Dumbledore cobriu Moody com a capa, prendeu-a em volta do corpo do bruxo e tornou a sair do malão. Em seguida apanhou o frasco de bolso que estava sobre a escrivaninha, tirou a tampa e virou-o.
Um líquido espesso e viscoso se espalhou pelo chão da sala.
— Poção Polissuco, Harry. Vê a simplicidade e a genialidade da coisa. Porque Moody jamais bebe nada a não ser do frasco de bolso, todo mundo sabe disso. O impostor precisou, é claro, manter o verdadeiro Moody por perto para poder continuar a preparar a poção. Está vendo os cabelos dele... — Dumbledore olhou para o Moody no malão. — O impostor andou cortando-os o ano inteiro, está vendo as falhas? Mas acho que, na excitação de hoje à noite, o falso Moody talvez tenha esquecido de tomar a poção com a necessária freqüência... Na hora certa... A cada hora... Veremos.
Dumbledore puxou a cadeira atrás da escrivaninha e se sentou, os olhos fixos no Moody inconsciente no chão. Harry também ficou olhando. Os minutos se passaram em silêncio...
Então, diante dos olhos de Harry, o rosto do homem no chão começou a mudar. As cicatrizes foram desaparecendo, a pele foi se tornando lisa, o nariz mutilado ficou inteiro e começou a diminuir de tamanho. A longa juba de cabelos grisalhos foi se retraindo para o couro cabeludo e se alourando. De repente, com um forte baque, a perna de pau caiu e uma perna normal apareceu em seu lugar; no momento seguinte, o olho mágico saltou do rosto do homem e um olho verdadeiro o substituiu, o olho mágico saiu rolando pelo chão e continuou a girar em todas as direções.
Harry viu caído à sua frente um homem de pele muito clara, ligeiramente sardento, com cabelos bastos e louros. O garoto sabia quem era. Vira-o na Penseira de Dumbledore, assistira a ele ser retirado do tribunal pelos dementadores, tentando convencer o Sr. Crouch de que era inocente... Mas agora tinha rugas em torno dos olhos, e parecia bem mais velho...
Ouviram-se passos apressados no corredor. Snape retornava com Winky em seus calcanhares. A Professora McGonagall vinha logo atrás.
— Crouch! — exclamou Snape, parando de chofre à porta. — Bartô Crouch!
— Nossa! — exclamou a Professora McGonagall, parando de chofre ao ver o homem no chão. Imunda, descabelada, Winky espiou por entre as pernas de Snape. Ela abriu uma boca enorme e deixou escapar um grito esganiçado.
— Menino Bartô, menino Bartô, que é que o senhor está fazendo aqui?
Ela se atirou ao peito do rapaz.
— Vocês mataram ele! Vocês mataram ele! Vocês mataram o filho do meu amo!
— Ele está apenas estuporado, Winky — disse Dumbledore. — Afaste-se, por favor. Severo, trouxe a poção?
Snape entregou a Dumbledore um pequeno frasco com um líquido muito transparente, o Veritaserum que o professor ameaçara fazer Harry beber na sala dele. Dumbledore se levantou, se debruçou sobre o homem e o aprumou contra a parede sob o Espelho-de-Inimigos, no qual as imagens de Dumbledore, Snape e McGonagall continuavam a observar tudo. Winky permaneceu de joelhos, tremendo, as mãos cobrindo o rosto. Dumbledore abriu a boca do homem à força e despejou nela três gotas da poção. Depois, apontou a varinha para o peito do homem e disse:
— Enervate!
O filho de Crouch abriu os olhos. Seu rosto estava flácido, seu olhar desfocado. Dumbledore se ajoelhou diante dele, de modo que seus rostos ficassem no mesmo plano.
— Você está me ouvindo? — perguntou o diretor em voz baixa.
Os olhos do homem piscaram.
— Estou — murmurou.
— Gostaria que nos dissesse — pediu Dumbledore — como veio parar aqui. Como fugiu de Azkaban?
Crouch inspirou profundamente, estremecendo, e em seguida começou a falar numa voz sem inflexões nem emoção.
— Minha mãe me salvou. Ela sabia que estava morrendo. Convenceu meu pai a me tirar de lá como um último favor. Ele a amava como nunca me amara. E concordou. Os dois foram me visitar. Me deram uma dose da Poção Polissuco, contendo um fio de cabelo de minha mãe. Ela tomou uma dose da poção, contendo um fio de cabelo meu. Assumimos a forma um do outro.
Winky balançava a cabeça, tremendo.
— Não diga mais nada Menino Bartô, não diga mais nada, você está metendo seu pai em confusão!
Mas Crouch inspirou mais uma vez profundamente e continuou com a mesma voz sem emoção.
— Os dementadores são cegos. Eles perceberam uma pessoa saudável e uma pessoa doente entrando em Azkaban. Depois, perceberam uma pessoa saudável e uma pessoa doente deixando a prisão. Meu pai me contrabandeou para fora, disfarçado de minha mãe, para o caso de algum prisioneiro estar observando da cela.
— Minha mãe morreu pouco depois em Azkaban. Teve o cuidado de beber a Poção Polissuco até o fim. Foi enterrada com o meu nome e a minha aparência. Todos acreditaram que ela era eu.
As pálpebras do homem piscaram.
— E o que foi que seu pai fez com você, quando chegaram em casa? — perguntou Dumbledore.
— Encenou a morte de minha mãe. Um enterro discreto e íntimo. Aquele túmulo está vazio. O elfo doméstico cuidou de mim até eu ficar bom. Depois tive que ser escondido. Tive que ser controlado. Meu pai teve que usar vários feitiços para me dominar. Quando recuperei a saúde, só pensei em encontrar o meu amo... Em voltar para o seu serviço.
— Como foi que seu pai o dominou? — perguntou Dumbledore.
— A Maldição Imperius. Fiquei sob o domínio do meu pai. Fui forçado a usar uma Capa da Invisibilidade dia e noite. Sempre em companhia do elfo doméstico. Era ela quem me cuidava e guardava. Tinha pena de mim. Convenceu meu pai a me dar regalias ocasionais. Prêmios pelo meu bom comportamento.
— Menino Bartô, Menino Bartô — soluçou Winky entre os dedos. — Você não devia contar a eles, está nos metendo em apuros...
— Alguém descobriu que você continuava vivo? — perguntou Dumbledore brandamente. — Alguém sabia disso, além do seu pai e do elfo doméstico?
— Sabia. — Suas pálpebras tornaram a piscar. — Uma bruxa do escritório do meu pai, Berta Jorkins. Ela veio um dia em casa trazer papéis para o meu pai assinar. Ele não estava. Winky mandou-a entrar e voltou para a cozinha, para mim. Mas Berta Jorkins ouviu o elfo conversando comigo. Foi investigar. Ouviu o suficiente para adivinhar que eu estava escondido sob uma Capa da Invisibilidade. Meu pai chegou em casa. Ela o confrontou. Ele lançou nela um Feitiço da Memória fortíssimo para fazê-la esquecer o que descobrira. Forte demais. Ele disse que danificou permanentemente a memória dela.
— Por que ela foi bisbilhotar os negócios particulares do meu amo? — soluçou Winky. — Por que não deixou a gente em paz?
— Fale-me sobre a Copa Mundial de Quadribol — ordenou Dumbledore.
— Winky convenceu meu pai — disse Crouch, ainda com a mesma voz monótona. — Passou meses persuadindo-o. Eu não saía de casa havia anos. Eu adorava Quadribol. "Deixe o rapaz ir", dizia ela. "Ele vai usar a Capa da Invisibilidade." "Ele pode assistir. Deixe ele tomar um pouco de ar fresco uma vez.”
Ela disse que minha mãe teria gostado disso. Disse ao meu pai que minha mãe morrera para me devolver a liberdade. Não me salvara para viver preso. No fim ele concordou.
— Foi tudo cuidadosamente planejado. Meu pai subiu comigo e Winky ao camarote de honra mais cedo no dia do jogo. Winky devia dizer que estava guardando o lugar para o meu pai. Eu devia ficar sentado ali, invisível. Quando todos tivessem deixado o camarote, nós sairíamos. Winky iria parecer que estava sozinha. Ninguém jamais saberia.
— Mas Winky não sabia que eu estava bem mais forte. Estava começando a resistir à Maldição Imperius lançada por meu pai. Havia horas em que eu quase voltava a ser eu mesmo. Havia breves lapsos em que eu parecia me libertar do controle dele. Isto aconteceu lá, no camarote de honra. Foi como se eu estivesse saindo de um longo sono. Eu me vi em público, no meio de um jogo, e vi uma varinha saindo do bolso de um garoto na minha frente. Eu não tinha licença de usar uma varinha desde antes de Azkaban. Eu a roubei. Winky não viu. Ela tem medo de alturas. Ficou com o rosto tampado.
— Menino Bartô, que menino danado! — sussurrou Winky, as lágrimas escorrendo entre seus dedos.
— Então você se apoderou da varinha — disse Dumbledore — e o que foi que fez com ela?
— Voltamos à barraca. Então ouvimos os gritos. Ouvimos os Comensais da Morte. Os que nunca tinham ido para Azkaban. Os que nunca tinham sofrido pelo meu amo. Os que tinham lhe virado as costas. Não estavam presos como eu. Estavam livres para ir procurá-lo, mas não fizeram isso. Estavam simplesmente se divertindo com os trouxas. As vozes deles me acordaram. Minha mente estava mais clara do que estivera em anos. Senti raiva. Tinha a varinha. Queria atacá-los pela deslealdade que fizeram ao meu amo. Meu pai saíra da barraca, tinha ido libertar os trouxas. Winky teve medo quando me viu tão furioso. Usou seu próprio tipo de mágica para me prender a ela. Me tirou da barraca, me levou para a floresta, para longe dos Comensais da Morte. Eu tentei impedi-la. Queria voltar para o acampamento. Queria mostrar àqueles Comensais da Morte o que significava lealdade ao Lord das Trevas, e puni-los por não a terem. Usei a varinha roubada para projetar a Marca Negra no céu. Os bruxos do Ministério chegaram. Lançaram Feitiços Estuporantes para todo lado. Um dos feitiços atravessou as árvores até onde eu e Winky estávamos. O vínculo que nos unia se partiu. Nós dois caímos estuporados.
— Quando descobriram Winky, meu pai entendeu que eu devia estar por perto. Me procurou no mato em que ela fora encontrada e me descobriu caído no chão. Ele esperou até os outros funcionários do Ministério deixarem a floresta. Tornou a me sujeitar com a Maldição Imperius, e me levou para casa. Despediu Winky. Traíra a confiança dele. Me deixara arranjar uma varinha. Quase me deixara fugir.
Winky deixou escapar um grito de desespero.
— Agora havia apenas meu pai e eu, sozinhos em casa. E, então... — a cabeça de Crouch girou molemente e um sorriso demente se espalhou por seu rosto. — Meu amo veio me buscar. Apareceu lá em casa tarde da noite, nos braços do servo dele, Rabicho. Meu amo descobrira que eu continuava vivo. Tinha capturado Berta Jorkins na Albânia. Torturou-a. Ela lhe contou muita coisa. Contou sobre o Torneio Tribruxo. Contou que o antigo auror Moody ia ensinar em Hogwarts. Ele a torturou até conseguir romper o Feitiço da Memória que meu pai lançara nela. Berta contou que eu fugira de Azkaban. Contou que meu pai me mantinha prisioneiro para me impedir de procurar meu amo. Então meu amo soube que eu continuava a ser um servo fiel, talvez o mais fiel de todos. Meu amo concebeu um plano baseado nas informações que Berta lhe dera. Precisava de mim. Chegou em nossa casa por volta da meia-noite. Meu pai atendeu a porta.
O sorriso no rosto de Crouch se alargou, como se ele recordasse o momento mais doce de sua vida. Os olhos castanhos e vidrados de Winky eram visíveis entre seus dedos. Ela parecia assombrada demais para falar.
— Foi muito rápido. Meu amo colocou meu pai sob a Maldição Imperius. Agora meu pai era o prisioneiro, o controlado. Meu amo o forçou a continuar a vida como sempre, a agir como se não houvesse nada errado. E eu fui libertado. Acordei. Voltei a ser eu mesmo, vivo, como não me sentia havia anos.
— E o que foi que Lord Voldemort lhe pediu para fazer? — perguntou Dumbledore.
— Ele me perguntou se eu estava disposto a arriscar tudo por ele. Eu estava. Era o meu sonho, minha maior ambição, servi-lo, me pôr à prova. Ele me disse que precisava colocar um servo fiel em Hogwarts. Um servo que orientasse Harry Potter durante o Torneio Tribruxo sem parecer que estava fazendo isso. Um servo que vigiasse Harry Potter. Que garantisse que o garoto chegasse à Taça Tribruxo. Que transformasse a Taça em uma Chave de Portal, que levasse a primeira pessoa a tocá-la ao meu amo. Mas primeiro...
— Você precisava de Alastor Moody — disse Dumbledore. Seus olhos azuis faiscando, embora sua voz permanecesse calma.
— Rabicho e eu fizemos isso. Preparamos antes uma Poção Polissuco. Viajamos até a casa do auror. Moody resistiu. Houve uma grande confusão. Conseguimos dominá-lo a tempo. Nós o enfiamos à força no malão mágico. Tiramos alguns fios de cabelo e acrescentamos à poção. Eu a bebi e me transformei no duplo de Moody. Apanhei sua perna e seu olho. Estava pronto para enfrentar Arthur Weasley quando ele viesse resolver o caso com os trouxas que ouviram o estardalhaço. Espalhei as latas de lixo pelo quintal. Contei a Arthur Weasley que tinha ouvido intrusos em volta da casa, e que pusera as latas de lixo em movimento. Então reuni as roupas e os detectores das trevas de Moody, guardei tudo no malão e parti para Hogwarts.
— Conservei-o vivo, dominado pela Maldição Imperius. Queria poder interrogá-lo. Descobrir o passado dele, aprender seus hábitos, de modo a enganar Dumbledore. Precisava também do cabelo dele para a Poção Polissuco. Os outros ingredientes foram fáceis de encontrar. Roubei pele de ararambóia das masmorras. Quando o Professor de Poções me encontrou na sala dele, eu disse que tinha ordens para revistá-la.
— E o que aconteceu com Rabicho depois que vocês atacaram Moody?
— Rabicho voltou para cuidar do meu amo, lá em casa, e para vigiar meu pai.
— Mas o seu pai fugiu — disse Dumbledore.
— Fugiu. Depois de algum tempo ele começou a resistir à Maldição Imperius, exatamente como eu tinha feito. Havia períodos em que ele sabia o que estava acontecendo. Meu amo achou que não era mais seguro o meu pai sair de casa. Forçou-o, então, a mandar cartas para o Ministério. Fez meu pai escrever dizendo que estava doente. Mas Rabicho não cumpriu seus deveres direito. Não o vigiou o bastante. Meu pai fugiu. Meu amo adivinhou que ele estaria vindo para Hogwarts. Ia admitir que me contrabandeara para fora de Azkaban.
— Meu amo mandou me avisar da fuga do meu pai. Mandou que eu o detivesse a qualquer custo. Então esperei e fiquei vigiando. Usei o mapa que pedira emprestado a Harry Potter. O mapa que quase pusera tudo a perder.
— Mapa? — perguntou Dumbledore imediatamente. — Que mapa é esse?
— O mapa que Potter tem de Hogwarts. Potter me viu nele. Potter me viu roubando ingredientes para a Poção Polissuco da sala de Snape certa noite. Achou que eu era meu pai porque temos o mesmo nome. Apanhei o mapa de Potter naquela mesma noite. Disse a ele que meu pai odiava bruxos das trevas. Potter acreditou que eu estava atrás de Snape.
— Durante uma semana esperei meu pai aparecer em Hogwarts. Finalmente, uma noite, o mapa me indicou que ele estava entrando na propriedade. Vesti a minha Capa da Invisibilidade e desci ao encontro dele. Ele estava andando pela orla da Floresta. Então chegaram Potter e Krum. Esperei. Não podia machucar Potter, meu amo precisava dele. Potter foi correndo buscar Dumbledore. Eu estuporei Krum. Matei meu pai.
— Nããão!— gritou Winky. — Menino Bartô, menino Bartô, o que é que você está dizendo?
— Você matou seu pai — repetiu Dumbledore, no mesmo tom brando. — Que foi que você fez com o corpo?
— Levei-o para a Floresta. Cobri-o com a Capa da Invisibilidade. Tinha o mapa comigo. Acompanhei Potter entrar correndo no castelo. Ele encontrou Snape. Dumbledore se juntou aos dois. Acompanhei Potter deixar o castelo com Dumbledore. Saí da Floresta, dei a volta por trás deles e fui reencontrá-los. Disse a Dumbledore que Snape me informara aonde vir.
— Dumbledore me mandou ir procurar meu pai. Voltei para onde deixara o corpo dele. Fiquei observando o mapa. Quando todos tinham ido embora, transformei o corpo do meu pai. Transformei-o em osso... E, sempre vestindo a Capa da Invisibilidade, eu o enterrei na terra fofa diante da cabana de Hagrid.”
Fez-se um silêncio profundo, exceto pelos soluços contínuos de Winky. Então Dumbledore falou:
— E hoje à noite...
— Eu me ofereci para levar a Taça Tribruxo para o labirinto antes do jantar — sussurrou Bartô Crouch. — Transformei-a em uma Chave de Portal. O plano do meu amo deu resultado. Ele voltou ao poder e eu vou receber honrarias que ultrapassam os sonhos de qualquer bruxo.
O sorriso demente iluminou mais uma vez suas feições e sua cabeça pendeu para o ombro, enquanto Winky continuava a se lamentar e a soluçar ao seu lado.
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