CAPÍTULO DEZ
O Mapa do Maroto
Madame Pomfrey insistiu em manter Harry na ala hospitalar pelo resto do fim de semana. Ele não discutiu nem se queixou, mas não deixou jogarem no lixo os estilhaços de sua Nimbus 2000. Sabia que era uma atitude burra, sabia que a vassoura não tinha conserto, mas o sentimento era mais forte que ele; era como se tivesse perdido um dos seus melhores amigos.
Uma procissão de amigos veio visitá-lo, todos decididos a animá-lo.
Hagrid lhe mandou um buquê de flores com lagartinhas, que pareciam repolhos amarelos, e Gina Weasley, corando furiosamente, apareceu com um cartão de votos de saúde, feito por ela mesma, que cantava com voz esganiçada a não ser que Harry o guardasse fechado embaixo da fruteira. O time da Grifinória tornou a visitar o companheiro no domingo de manhã, desta vez em companhia de Olívio, que declarou a Harry (numa voz de além-túmulo) que não o responsabilizava pela derrota. Rony e Hermione só deixavam a cabeceira de Harry à noite. Mas nada que ninguém dissesse ou fizesse conseguia fazê-lo se sentir melhor, porque eles só conheciam metade das suas preocupações.
Ele não contara a ninguém que vira o Sinistro, nem a Rony nem a Hermione, porque sabia que o amigo entraria em pânico e a amiga caçoaria dele. O fato era, no entanto, que o Sinistro agora já aparecera duas vezes e ambas as aparições tinham sido seguidas por acidentes quase fatais; da primeira vez Harry quase fora atropelado pelo Nôitibus Andante; da segunda, levara uma queda da vassoura de quase quinze metros de altura. Será que o Sinistro ia atormentá-lo até a morte?
Será que ele, Harry, ia passar o resto da vida olhando por cima do ombro à procura da fera?
Além disso havia os dementadores. Harry sentia mal-estar e humilhação toda vez que pensava neles. Todos diziam que os guardas eram medonhos, mas ninguém desmaiava sempre que se aproximava deles. Ninguém mais ouvia mentalmente os ecos da morte dos pais.
Isto porque agora Harry sabia a quem pertencia a tal voz. Ouvira o que ela dizia, ouvira-a continuamente nas longas noites passadas na ala hospitalar quando ficava acordado, contemplando as listras que o luar formava no teto.
Quando os dementadores se aproximavam, ele ouvia os últimos instantes de vida de sua mãe, sua tentativa de proteger o filho da sanha de Lord Voldemort e a gargalhada do bruxo antes de matá-la... Harry dava breves cochilos, mergulhando em sonhos cheios de mãos podres e pegajosas e súplicas fossilizadas, acordando de repente para voltar a pensar na voz da mãe.
Foi um alívio voltar à zoeira e à atividade da escola principal na segunda-feira, e ser forçado a pensar em outras coisas, ainda que tivesse de aturar a implicância de Draco Malfoy. O garoto não cabia em si de alegria com a derrota da Grifinória. Retirara finalmente as bandagens e comemorava a circunstância de poder usar os dois braços novamente, fazendo espirituosas imitações de Harry caindo da vassoura. Malfoy passou a maior parte da aula seguinte de Poções, a que assistiram juntos na masmorra, fazendo imitações dos dementadores; Rony finalmente se descontrolou e atirou um enorme e gosmento coração de crocodilo em Malfoy, que o atingiu no rosto, o que fez Snape descontar cinqüenta pontos da Grifinória.
— Se Snape vier dar aula de Defesa contra as Artes das Trevas de novo, vou me mandar — anunciou Rony quando seguiam para a classe de Lupin depois do almoço. — Vê quem está lá, Mione.
A garota espiou pela porta da sala.
— Tudo bem!
O Profº. Lupin voltara ao trabalho. Sem dúvida tinha a aparência de quem estivera doente. Suas vestes velhas estavam mais frouxas e havia olheiras escuras sob seus olhos; ainda assim, ele sorriu para os garotos que ocupavam seus lugares na classe e, em seguida, desataram a se queixar do comportamento de Snape na ausência de Lupin.
— Não é justo, ele estava só substituindo o senhor, por que passou dever de casa?
— Não sabemos nada de Lobisomens...
— Dois rolos de pergaminho!
— Vocês disseram ao Profº. Snape que ainda não estudamos Lobisomens? — perguntou Lupin, franzindo ligeiramente a testa.
A balbúrdia tornou a encher a sala.
— Dissemos, mas ele respondeu que estávamos muito atrasados...
— Ele não quis ouvir..
— Dois rolos de pergaminho!
O Profº. Lupin sorriu ao ver a expressão indignada nos rostos dos alunos.
— Não se preocupem. Vou falar com o Profº. Snape. Não precisam fazer a redação.
— Ah, não! — exclamou Hermione, muito desapontada. — Já terminei a minha.
Tiveram uma aula muito gostosa. O Profº. Lupin trouxera uma caixa de vidro contendo um hinkypunk, uma criaturinha de uma perna só, que parecia feita de fiapos de fumaça, a aparência frágil e inofensiva.
— O hinkypunk atrai os viajantes para os brejos — informou o professor enquanto os garotos faziam anotações. — Vocês repararam na lanterna que ele traz pendurada na mão? Ele salta para frente... A pessoa acompanha a luz... Então...
A criatura fez um horrível barulho de sucção contra o vidro da caixa.
Quando a sineta tocou, todos guardaram o material e se dirigiram para a porta, Harry entre eles, mas...
— Espere um instante, Harry — chamou Lupin. — Gostaria de dar uma palavrinha com você.
Harry deu meia-volta e observou o professor cobrir a caixa do hinkypunk com um pano.
— Soube do que houve no jogo — disse Lupin, virando-se para sua escrivaninha e começando a guardar os livros na maleta — e sinto muito pelo acidente com a sua vassoura. Há alguma possibilidade de consertá-la?
— Não — respondeu Harry. — A árvore arrebentou-a em mil pedacinhos.
Lupin suspirou.
— Plantaram o Salgueiro Lutador no ano em que cheguei em Hogwarts. Os alunos costumavam brincar de tentar se aproximar do tronco e tocar a árvore com a mão. No fim, um garoto chamado Davi Gudgeon quase perdeu um olho e fomos proibidos de chegar perto do salgueiro. Uma vassoura não teria a menor chance.
— O senhor soube dos dementadores também? — perguntou Harry com dificuldade.
Lupin lançou um olhar rápido a Harry.
— Soube. Acho que nenhum de nós tinha visto o Profº. Dumbledore tão aborrecido. Há algum tempo, eles estão ficando inquietos... Furiosos com a recusa do diretor de deixar que entrem na propriedade... Suponho que tenham sido eles a razão da sua queda.
— Foram. — Harry hesitou e, então, a pergunta que queria fazer escapou de sua boca antes que pudesse contê-la. — Por quê? Por que eles me afetam desse jeito? Será que sou apenas....
— Não tem nada a ver com fraqueza — respondeu o professor depressa, como se tivesse lido o pensamento de Harry. — Os dementadores afetam você pior do que os outros porque existem horrores no seu passado que não existem no dos outros.
Um raio de sol de inverno entrou na sala, iluminando os cabelos grisalhos de Lupin e os traços do seu rosto jovem.
— Os dementadores estão entre as criaturas mais malignas que vagam pela Terra. Infestam os lugares mais escuros e imundos, se comprazem com a decomposição e o desespero, esgotam a paz, a esperança e a felicidade do ar à sua volta. Até os trouxas sentem a presença deles, embora não possam vê-los. Chegue muito perto de um dementador e todo bom sentimento, toda lembrança feliz serão sugados de você. Se puder, o dementador se alimentará de você o tempo suficiente para transformá-lo em um semelhante... Desalmado e mau. Não deixará nada em você exceto as piores experiências de sua vida. E o pior que aconteceu com você, Harry, é suficiente para fazer qualquer um cair da vassoura. Você não tem do que se envergonhar.
— Quando eles chegam perto de mim... — Harry fixou o olhar na mesa de Lupin, sentindo um nó na garganta —, ouço Voldemort assassinando minha mãe.
Lupin fez um movimento repentino com o braço como se fosse segurar o ombro de Harry, mas pensou melhor. Houve um momento de silêncio, depois...
— Por que é que eles tinham que ir ao jogo? — exclamou o garoto amargurado.
— Estão ficando famintos — disse Lupin tranquilamente, fechando a maleta com um estalo. — Dumbledore não permite que eles entrem na escola, então o suprimento de gente com que contavam secou... Acho que eles não conseguiram resistir à multidão em torno do campo de Quadribol. Toda a excitação... As emoções exacerbadas... É a idéia que fazem de um banquete.
— Azkaban deve ser horrível — murmurou Harry.
Lupin concordou, sério.
— A fortaleza foi construída em uma ilhota, bem longe da costa, mas não precisam de paredes nem de água para manter os prisioneiros confinados, não quando eles já estão presos dentro da própria cabeça, incapazes de um único pensamento agradável. A maioria enlouquece em poucas semanas.
— Mas Sirius Black escapou — comentou Harry lentamente. — Fugiu...
A maleta de Lupin escorregou da escrivaninha; ele teve que se abaixar depressa para apanhá-la no ar.
— É — disse se endireitando. — Black deve ter encontrado uma maneira de combatê-los. Eu não teria acreditado que isto fosse possível... Dizem que os dementadores esgotam os poderes de um bruxo que conviver um tempo demasiado longo com eles...
— O senhor fez aquele dementador no trem recuar — disse Harry de repente.
— Há... Certas defesas que se pode usar — disse Lupin. — Mas no trem havia apenas um dementador. Quanto maior o número, mais difícil é resistir a eles.
— Que defesas? — perguntou Harry em seguida. — O senhor pode me ensinar?
— Não tenho a pretensão de ser um especialista no combate a dementadores, Harry... Muito ao contrário...
— Mas se os dementadores forem a outro jogo de Quadribol, preciso saber lutar contra eles...
Lupin avaliou o rosto decidido de Harry, hesitou, depois disse:
— Bem... Está bem. Vou tentar ajudar. Mas receio que você terá de esperar até o próximo trimestre. Tenho muito que fazer antes das férias. Escolhi uma hora muito inconveniente para adoecer.
Com a promessa de receber aulas antidementadores de Lupin, o pensamento de que talvez não precisasse mais ouvir a morte da mãe, e o fato de que Corvinal esmagara Lufa-Lufa na partida de Quadribol no final de novembro, o ânimo de Harry deu uma guinada definitiva para cima. Afinal, Grifinória não fora eliminada da competição, embora o time não pudesse se dar ao luxo de perder mais uma partida. Olívio tornou a ficar possuído por uma energia obsessiva, e treinou com o time com mais empenho que nunca, na chuvinha gélida e nevoenta que persistiu até dezembro. Harry não viu nem sinal de dementador nos terrenos da escola. A fúria de Dumbledore parecia ter funcionado para mantê-los em seus postos nas entradas.
Duas semanas antes do fim do trimestre, o céu clareou de repente até atingir um branco leitoso e ofuscante, e os terrenos enlameados da escola amanheceram, certo dia, cobertos de cintilante geada. No interior do castelo, havia um rebuliço de Natal no ar. Flitwick, o professor de Feitiços, já enfeitara sua sala de aula com luzes pisca-piscas que, quando foram ver, eram fadinhas voadoras de verdade. Os alunos estavam satisfeitos discutindo planos para as férias de Natal. Tanto Rony quanto Hermione haviam decidido permanecer em Hogwarts e, embora Rony dissesse que era porque não ia conseguir aturar Percy duas semanas, e Hermione insistisse que precisava consultar a biblioteca, Harry não se deixou enganar; sabia que era para lhe fazerem companhia e se sentiu muito grato.
Para alegria de todos, exceto Harry, houve mais uma visita a Hogsmeade no último fim de semana do trimestre.
— Podemos fazer todas as nossas compras de Natal lá! — exclamou Hermione. — Mamãe e papai iriam adorar receber fios dentais de menta da Dedosdemel!
Resignado com a idéia de que seria o único aluno do terceiro ano a não ir, Harry pediu emprestado a Olívio o livro Qual Vassoura, e resolveu passar o dia lendo sobre as diferentes marcas. Ele andara montando uma vassoura da escola nos treinos do time, uma velhíssima Shooting Star, que era demasiado lenta e instável; decididamente precisava de uma vassoura nova.
Na manhã de sábado em que os colegas iriam a Hogsmeade, Harry se despediu de Rony e Hermione, embrulhados em capas e cachecóis, tornou a subir a escadaria de mármore, sozinho, e tomou o caminho da Torre da Grifinória. A neve começara a cair do lado de fora das janelas e o castelo estava muito parado e silencioso.
— Psiu... Harry!
Ele se virou, a meio caminho do corredor do terceiro andar, e viu Fred e Jorge espiando-o atrás da estátua de uma bruxa corcunda, de um olho só.
— Que é que vocês estão fazendo? — perguntou Harry, curioso.
— Vocês não vão a Hogsmeade?
— Antes de ir viemos fazer uma festinha para animar você — disse Fred, com uma piscadela misteriosa. — Venha até aqui...
O garoto indicou com a cabeça uma sala de aula vazia, à esquerda da estátua de um olho só. Harry acompanhou os gêmeos. Jorge fechou a porta sem fazer barulho e se virou, sorrindo, para Harry.
— Presente de Natal antecipado para você, Harry — anunciou.
Fred tirou alguma coisa de dentro da capa com um gesto largo e colocou-a em cima de uma carteira. Era um pedaço de pergaminho, grande, quadrado e muito gasto, sem nada escrito na superfície. Harry, desconfiando que fosse uma daquelas brincadeiras de Fred e Jorge, ficou parado olhando para o presente.
— E o que é que é isso? — perguntou.
— Isso, Harry, é o segredo do nosso sucesso — disse Jorge, dando uma palmadinha carinhosa no pergaminho.
— Dói na gente dar esse presente para você — disse Fred —, mas decidimos, na noite passada, que você precisa muito mais dele do que nós. E, de qualquer maneira, já o conhecemos de cor. É uma herança que vamos lhe deixar. Para falar a verdade, não precisamos mais dele.
— E para que eu preciso de um pedaço de pergaminho velho? — perguntou Harry.
— Um pedaço de pergaminho velho! — exclamou Fred, fechando os olhos com uma careta, como se Harry o tivesse ofendido mortalmente. — Explique a ele Jorge.
— Bem... Quando estávamos no primeiro ano, Harry... Jovens, descuidados e inocentes...
Harry abafou uma risada. Duvidava se algum dia os gêmeos teriam sido inocentes.
— Bem, mais inocentes do que somos hoje... Nos metemos numa certa confusão com Filch.
— Soltamos uma bomba de bosta no corredor e por alguma razão ele ficou aborrecido...
— Então Filch nos arrastou até a sala dele e começou a nos ameaçar com os castigos de costume...
— ... Detenção...
— ... Nos arrancar as tripas...
— ... E não pudemos deixar de reparar numa gaveta do arquivo dele em que estava escrito Confiscado e Muito Perigoso.
— Não precisam continuar... — exclamou Harry, começando a sorrir.
— Bem, que é que você teria feito? — perguntou Fred. — Jorge soltou mais uma bomba de bosta para distrair Filch, eu abri depressa a gaveta e tirei... Isto.
— Não foi tão desonesto quanto parece, sabe — comentou Jorge.
— Calculamos que Filch nunca tivesse descoberto como usar o pergaminho.
— Mas, provavelmente suspeitou o que era ou não o teria confiscado.
— E vocês sabem como usar?
— Ah, sabemos — disse Fred, rindo. — Esta jóia nos ensinou mais do que todos os professores da escola.
— Vocês estão me gozando — disse Harry, olhando para o pedaço velho e rasgado de pergaminho.
— Ah, é? — disse Jorge.
Ele apanhou a varinha, tocou o pergaminho de leve e disse:
— “Juro solenemente que não pretendo fazer nada de bom”.
Na mesma hora, linhas de tinta muito finas começaram a se espalhar como uma teia de aranha a partir do ponto em que a varinha de Jorge tocara. Elas convergiram, se cruzaram, se abriram como um leque para os quatro cantos do pergaminho; em seguida, no alto, começaram a aflorar palavras, palavras grandes, floreadas, verdes, que diziam:
Os Srs. Aluado, Rabicho, Almofadinha e Pontas, fornecedores de recursos para bruxos malfeitores, têm a honra de apresentar “O MAPA DO MAROTO”.
Era um mapa que mostrava cada detalhe dos terrenos do castelo de Hogwarts. O mais notável, contudo, eram os pontinhos mínimos de tinta que se moviam em torno do mapa, cada um com um rótulo em letra minúscula. Pasmo, Harry se curvou para examinar melhor. Um pontinho, no canto superior esquerdo, mostrava que o Profº. Dumbledore estava andando para lá e para cá em seu escritório; a gata do zelador, Madame Nor-r-ra, rondava o segundo andar; e Pirraça, o poltergeist, naquele momento saltitava pela sala de troféus. E quando os olhos de Harry percorreram os corredores que tão bem conhecia, ele notou mais uma coisa.
O mapa mostrava um conjunto de passagens em que ele nunca entrara. E muitas pareciam levar...
— ... Diretamente a Hogsmeade — disse Fred, acompanhando uma delas com o dedo. — São sete ao todo. Até agora Filch conhece essas quatro — ele as apontou —, mas temos certeza de que somente nós conhecemos estas outras. Não se preocupe com a passagem por trás do espelho no quarto andar. Nós a usamos até o inverno passado, mas já desabou, está completamente bloqueada. E achamos que ninguém jamais usou esta porque o Salgueiro Lutador foi plantado bem em cima da entrada. Mas, esta outra aqui leva diretamente ao porão da Dedosdemel. Nós já a usamos um monte de vezes. E como você talvez tenha notado, a entrada é bem ali do lado de fora da sala, na corcunda daquela velhota de um olho só.
— Aluado, Rabicho, Almofadinhas e Pontas — suspirou Jorge, dando um tapinha no cabeçalho do mapa. — Devemos tanto a eles.
— Almas nobres, que trabalharam incansavelmente para ajudar novas gerações de transgressores — disse Fred solenemente.
— Certo — acrescentou Jorge depressa. — Não se esqueça de limpar o mapa depois de usá-lo...
— ... Senão qualquer um pode ler — recomendou Fred.
— É só bater com a varinha mais uma vez e dizer "Malfeito feito!", e o pergaminho torna a ficar branco.
— Portanto, jovem Harry — disse Fred, numa incrível imitação de Percy —, trate de se comportar.
— Vejo você na Dedosdemel — despediu-se Jorge, piscando.
Os gêmeos deixaram a sala, sorrindo satisfeitos consigo mesmos.
Harry ficou ali, contemplando o mapa milagroso. Acompanhou o pontinho de tinta Madame Nor-r-ra virar à esquerda e parar para cheirar alguma coisa no chão. Se Filch realmente não conhecia... Ele não teria que passar pelos dementadores...
Mas mesmo enquanto continuava ali, transbordante de excitação, uma coisa que ouvira, certa vez, o Sr. Weasley dizer aflorou em sua lembrança.
“Nunca confie em nada que é capaz de pensar, se você não pode ver onde fica o seu cérebro”.
O mapa era um daqueles objetos mágicos perigosos sobre os quais o Sr. Weasley o prevenira... Recursos para bruxos malfeitores... Mas então, raciocinou Harry, ele só queria usar o mapa para ir a Hogsmeade, não era que quisesse roubar alguma coisa ou atacar alguém... E Fred e Jorge já o usavam havia anos, sem que nada de terrível tivesse acontecido...
Harry acompanhou com o dedo a passagem secreta até a Dedosdemel.
Depois, subitamente, como se obedecesse a uma ordem, enrolou o mapa, guardou-o nas vestes e correu para a porta da sala de aula. Abriu-a uns dedinhos. Não havia ninguém do lado de fora. Com muito cuidado, esgueirou-se da sala até as costas da estátua da bruxa de um olho só.
Que era mesmo que devia fazer? Puxou outra vez o mapa e viu, para seu espanto, que um novo boneco de tinta aparecera no pergaminho, rotulado Harry Potter.
Estava parado exatamente no mesmo lugar que o verdadeiro Harry, mais ou menos na metade do corredor do terceiro andar. Harry observou-o atentamente. Seu pequeno eu de tinta parecia estar tocando a bruxa com uma varinha mínima. O garoto na mesma hora puxou a varinha real e deu um toque na estátua. Nada aconteceu. Ele tornou a consultar o mapa. Um balão com um texto aparecera ao lado do seu boneco. Dentro do balão havia a palavra "Dissendium”.
— Dissendium! — sussurrou Harry dando uma nova batida na bruxa de pedra.
Na mesma hora, a corcunda da estátua se abriu o suficiente para admitir uma pessoa bem magra. Harry deu uma espiada rápida nos dois lados do corredor, guardou outra vez o mapa, se içou de cabeça para dentro do buraco e deu um impulso para frente.
Ele deslizou um bom pedaço, descendo o que parecia um escorrega de pedra e aterrissou na terra úmida e fria. Levantou-se, então, olhando a toda volta. Estava escuro como breu. Harry ergueu a varinha e murmurou:
— Lumus! — E pôde ver que se encontrava em uma passagem muito estreita, baixa e terrosa. Ergueu, então, o mapa, tocou-o com a ponta da varinha e disse baixinho: — Malfeito feito! — O mapa ficou imediatamente branco. Ele o dobrou cuidadosamente, enfiou-o dentro das vestes, depois, o coração batendo rápido, ao mesmo tempo excitado e apreensivo, Harry começou a andar.
A passagem virava e tornava a virar, mais parecendo uma toca de coelho gigante do que qualquer outra coisa. Harry caminhou depressa por ela, tropeçando aqui e ali no chão acidentado, segurando a varinha com firmeza à sua frente.
Levou uma eternidade, mas o garoto tinha o pensamento fixo na capacidade da Dedosdemel repor suas forças. Depois do que lhe pareceu uma hora, a passagem começou a subir. Ofegante, Harry apertou o passo, o rosto quente, os pés muito gelados.
Dez minutos mais tarde, chegou ao pé de uns degraus de pedra muito gastos, que subiam a perder de vista. Tomando cuidado para não fazer barulho, Harry começou a subir. Cem degraus, duzentos degraus, perdeu a conta, olhando para os pés... Então, sem aviso, sua cabeça bateu em alguma coisa dura.
Parecia um alçapão. Harry ficou parado ali, massageando o cocuruto da cabeça, apurando os ouvidos. Não conseguia ouvir nenhum som em cima. Muito devagarinho, empurrou o alçapão e espiou pela borda.
Deparou com um porão, cheio de caixotes e caixas. Harry subiu pelo alçapão e tornou a fechá-lo. Ele se fundiu tão perfeitamente com o soalho empoeirado que era impossível saber que estava ali. O garoto avançou lentamente até a escada de madeira que levava ao andar superior. Agora decididamente conseguia ouvir vozes, para não falar no tilintar de uma sineta e no abre e fecha de uma porta.
Pensando no que deveria fazer, Harry, de repente, ouviu uma porta se abrir muito próximo; alguém ia descer a escada.
— E traga mais uma caixa de lesmas gelatinosas, querido, eles praticamente levaram tudo... — disse uma voz feminina.
Dois pés desceram a escada. Harry pulou para trás de um enorme caixote e esperou os passos se distanciarem. Ouviu o homem deslocando caixas na parede oposta.
Talvez não tivesse outra oportunidade...
Rápida e silenciosamente, o garoto saiu abaixado do esconderijo e subiu as escadas; ao olhar para trás, viu um enorme traseiro e uma careca reluzente enfiada em uma caixa. Harry alcançou a porta no patamar da escada, escapuliu por ela e se encontrou atrás do balcão da Dedosdemel, abaixou-se, saiu quietinho de lado e por fim se levantou.
A Dedosdemel estava tão cheia de alunos de Hogwarts que ninguém olhou duas vezes para Harry. O garoto foi passando entre eles, olhando para os lados e reprimiu uma risada só de imaginar a expressão que apareceria na cara de porco do Duda se pudesse ver onde ele estava agora.
Havia prateleiras e mais prateleiras de doces com a aparência mais apetitosa que se pode imaginar. Tabletes de nugá, quadrados cor-de-rosa de sorvete de coco, caramelos cor de mel; centenas de tipos de bombons em fileiras arrumadinhas; havia uma barrica enorme de feijõezinhos de todos os sabores, Delícias gasosas — as tais bolas de sorvete de fruta que faziam levitar que Rony mencionara —, em outra parede havia os doces de "efeitos especiais": os melhores chicles de baba e bola (que enchiam a loja de bolas azulonas e se recusavam a estourar durante dias), o estranho e quebradiço fio dental de menta, minúsculos Diabinhos negros de pimenta ("sopre fogo em seus amigos!"), Ratinhos de sorvete ("ouça seus dentes baterem e rangerem!"), Sapos de creme de menta ("faça sua barriga saltar para valer!"), frágeis penas de algodão-doce e bombons explosivos.
Harry se espremeu entre os alunos do sexto ano que enchiam a loja e viu um letreiro pendurado no canto mais distante do salão (SABORES INCOMUNS). Rony e Hermione estavam bem embaixo, examinando uma bandeja de pirulitos com gosto de sangue. Harry, sorrateiramente, foi parar atrás dos dois.
— Eca, não, Harry não vai querer esses, são para vampiro, imagino — ia dizendo Hermione.
— E esses aqui? — perguntou Rony, enfiando um vidro de cachos de barata embaixo do nariz de Hermione.
— Decididamente não — disse Harry.
Rony quase deixou cair o vidro.
— Harry! — berrou Hermione. — Que é que você está fazendo aqui? Como... Foi que você...?
— Uau! — exclamou Rony, parecendo muito impressionado —, você aprendeu a aparatar!
— Claro que não aprendi. — Harry baixou a voz de modo que nenhum dos alunos de sexto ano pudesse ouvir e contou aos amigos sobre o Mapa do Maroto.
— Como é que Fred e Jorge nunca me deram esse mapa? — perguntou Rony indignado. — Eu sou irmão deles!
— Mas Harry não vai ficar com o mapa! — afirmou Hermione como se a idéia fosse ridícula. — Vai entregá-lo à Profª. Minerva, não é Harry?
— Não, não vou não! — disse Harry.
— Você é maluca? — exclamou Rony, arregalando os olhos para a garota. — Entregar uma coisa boa dessas?
— Se eu entregar, vou ter que contar onde foi que o arranjei. Filch ia saber que Fred e Jorge surrupiaram dele!
— Mas e o Sirius Black? — sibilou Hermione. — Ele poderia estar usando uma das passagens do mapa para entrar no castelo! Os professores têm que saber disso!
— Ele não pode estar entrando por uma passagem — retrucou Harry depressa. — Tem sete túneis secretos no mapa, certo? Fred e Jorge calculam que Filch conheça uns quatro. E os outros três... Um desabou, de modo que ninguém pode passar. Outro tem o Salgueiro Lutador plantado na entrada, portanto, não se pode sair. E este que eu usei para chegar aqui... Bem... É realmente difícil ver a entrada dele no porão. Então, a não ser que Black soubesse que havia uma passagem...
Harry hesitou. E se Black soubesse que havia uma passagem ali? Rony, porém, pigarreou querendo sinalizar alguma coisa e apontou para um aviso colado dentro da loja de doces.
POR ORDEM DO MINISTÉRIO DA MAGIA
Lembramos aos nossos clientes que até nova ordem, os dementadores irão patrulhar as ruas de Hogsmeade todas as noites após o pôr-do-sol. A medida visa garantir a segurança dos habitantes de Hogsmeade e será revogada quando Sirius Black for recapturado, portanto, é aconselhável que os clientes encerrem suas compras bem antes de anoitecer.
Feliz Natal.
— Estão vendo só? — falou Rony em voz baixa. — Eu gostaria de ver Black tentar entrar na Dedosdemel com dementadores pululando por todo o povoado. Em todo o caso, Hermione, os donos da Dedosdemel ouviriam se alguém arrombasse a loja, não? Eles moram no primeiro andar!
— Tá, mas... Mas... — A garota parecia estar fazendo força para encontrar outro argumento. — Olha, ainda assim Harry não devia ter vindo a Hogsmeade. Ele não tem autorização! Se alguém descobrir, ele vai ficar enrascado até as orelhas! E ainda não anoiteceu... E se Sirius Black aparecer hoje? Agora?
— Ia ter muito trabalho para encontrar Harry no meio disso aí — disse Rony indicando com a cabeça as janelas de caixilhos, pelas quais se via a nevasca rodopiando lá fora. — Vamos, Mione, é Natal. Harry merece uma folga.
Hermione mordeu o lábio, parecendo extremamente preocupada.
— Você vai me denunciar? — perguntou Harry à amiga, sorrindo.
— AI... Claro que não... Mas sinceramente, Harry...
— Viu as delícias gasosas, Harry? — perguntou Rony, puxando Harry e levando-o até a barrica em que se encontravam. — E as lesmas gelatinosas? E os picolés ácidos? Fred me deu um desses quando eu tinha sete anos, fez um furo que atravessou a minha língua. Me lembro da mamãe pegando a vassoura e baixando o pau nele. — Rony ficou mirando, pensativo, a caixa de picolés ácidos. — Você acha que Fred comeria um cacho de baratas se eu dissesse a ele que era amendoim?
Depois que Rony e Hermione pagaram por todos os doces que compraram, os três saíram da Dedosdemel para enfrentar a nevasca lá fora.
Hogsmeade parecia um cartão de Natal; as casas e lojas de telhado de colmo estavam cobertas por uma camada de neve fresca; havia coroas de azevinho nas portas e fieiras de luzes encantadas penduradas nas árvores.
Harry estremeceu; ao contrário dos amigos, ele não estava usando casaco. Os três saíram caminhando pela rua, a cabeça abaixada contra o vento, Rony e Hermione gritando por dentro dos cachecóis.
— Ali é o Correio...
— A Zonko"s fica mais adiante.
— Podíamos ir até a Casa dos Gritos...
— Vamos fazer o seguinte — sugeriu Rony com os dentes batendo —, vamos tomar uma cerveja amanteigada no Três Vassouras?
Harry estava mais do que a fim; havia um vento cortante e suas mãos estavam congelando. Então, eles atravessaram a rua e minutos depois entravam na minúscula estalagem.
A sala estava cheíssima, barulhenta, quente e enfumaçada.
Uma mulher tipo violão, com um rosto bonito, estava servindo um grupo de bruxos desordeiros no bar.
— Aquela é a Madame Rosmerta — disse Rony. — Vou pegar as bebidas, está bem? — acrescentou, corando ligeiramente.
Harry e Hermione foram até o fundo do salão, onde havia uma mesinha desocupada entre uma janela e uma bela árvore de Natal próxima à lareira. Rony voltou em cinco minutos, trazendo três canecas espumantes de cerveja amanteigada.
— Feliz Natal! — desejou ele alegremente, erguendo a caneca.
Harry bebeu com gosto. Era a coisa mais deliciosa que já provara e parecia aquecer cada pedacinho dele, de dentro para fora.
Uma brisa repentina despenteou seus cabelos. A porta do Três Vassouras tornou a se abrir. Harry olhou por cima da borda da caneca e se engasgou.
Os professores McGonagall e Flitwick tinham acabado de entrar no bar em meio a uma rajada de flocos de neve, seguidos de perto por Hagrid, que vinha absorto em uma conversa com um homem corpulento de chapéu-coco verde-limão e uma capa de risca de giz — Cornélio Fudge, Ministro da Magia.
Numa fração de segundo, Rony e Hermione, ao mesmo tempo, tinham posto as mãos na cabeça de Harry e feito o amigo escorregar do banquinho para baixo da mesa.
Pingando cerveja amanteigada e se encolhendo para sumir de vista, Harry, agarrado à caneca, espiou os pés dos professores e de Fudge caminharem até o bar, pararem e, em seguida, darem meia-volta e se dirigirem para onde ele estava.
Em algum lugar acima de sua cabeça, Hermione sussurrou:
— Mobiliarbus!
A árvore de Natal ao lado da mesa se ergueu alguns centímetros do chão, flutuou de lado e desceu com um baque suave bem diante da mesa dos garotos, escondendo-os dos professores. Espiando por entre os ramos mais baixos e densos, Harry viu quatro conjuntos de pés de cadeira se afastarem da mesa bem ao lado, depois ouviu os resmungos e suspiros dos professores e do ministro ao se sentarem.
Em seguida, ele viu mais um par de pés, usando saltos altos, turquesa, cintilantes, e ouviu uma voz de mulher.
— Uma água de Gilly pequena...
— É minha — disse a voz da Profª. Minerva.
— A jarra de quentão...
— Obrigado — disse Hagrid.
— Soda com xarope de cereja, gelo e guarda-sol...
— Hummm! — exclamou o Profº. Flitwick estalando os lábios.
— Para o senhor é o rum de groselha, ministro.
— Obrigado, Rosmerta, querida — disse a voz de Fudge. — É um prazer revê-la, devo dizer. Não quer nos acompanhar? Venha se sentar conosco...
— Bem, muito obrigada, ministro.
Harry acompanhou os saltos cintilantes se afastarem e retornarem.
Seu coração batia incomodamente na garganta. Por que não lhe ocorrera que este era o último fim de semana do trimestre também para os professores? E quanto tempo eles ficariam sentados ali? Ele precisava de tempo para voltar discretamente à Dedosdemel, se quisesse estar na escola ainda aquela noite... A perna de Hermione deu uma tremida nervosa perto dele.
— Então, o que é que o traz a esse fim de mundo, ministro? — perguntou a voz de Madame Rosmerta.
Harry viu a parte de baixo do corpo de Fudge se virar na cadeira, como se verificasse se havia alguém escutando. Depois respondeu em voz baixa:
— Quem mais se não Sirius Black? Imagino que você deve ter sabido o que houve em Hogwarts no Dia das Bruxas?
— Para falar a verdade, ouvi um boato — admitiu Madame Rosmerta.
— Você contou ao bar inteiro, Hagrid? — perguntou a Profª. Minerva, exasperada.
— O senhor acha que Black continua por aqui, ministro? — perguntou Madame Rosmerta.
— Tenho certeza — respondeu Fudge laconicamente.
— O senhor sabe que os dementadores já revistaram o meu bar duas vezes? — falou Madame Rosmerta, com uma ligeira irritação na voz. — Espantaram todos os meus fregueses... Isto é muito ruim para o comércio, ministro.
— Rosmerta, querida, gosto tanto deles quanto você — disse Fudge, constrangido. — É uma precaução necessária... Infelizmente, mas veja só... Acabei de encontrar alguns. Estão furiosos com Dumbledore porque ele não os deixa entrar nos terrenos da escola.
— É claro que não — disse a Profª. Minerva, rispidamente. — Como é que vamos ensinar com aqueles horrores por todo o lado?
— Apoiado, apoiado! — exclamou o Profº. Flitwick com voz esganiçada, os pés balançando a um palmo do chão.
— Mesmo assim — disse Fudge em tom de dúvida —, eles estão aqui para proteger vocês todos de coisa muito pior... Nós todos sabemos o que Black é capaz de fazer..
— Sabem, eu ainda acho difícil acreditar — disse Madame Rosmerta pensativamente. — De todas as pessoas que passaram para o lado das trevas, Sirius Black é o último em que eu pensaria... Quero dizer, eu me lembro dele quando era garoto em Hogwarts. Se alguém tivesse me dito, então, no que ele iria se transformar, eu teria respondido que a pessoa tinha bebido quentão demais.
— Você não conhece nem metade do que ele fez Rosmerta — disse Fudge com impaciência. — A maioria nem sabe o pior.
— Pior? — exclamou Madame Rosmerta, a voz animada de curiosidade. — O senhor quer dizer pior do que matar todos aqueles coitados?
— Isso mesmo.
— Não posso acreditar. Que poderia ser pior?
— Você diz que se lembra dele em Hogwarts, Rosmerta — murmurou a Profª. Minerva. — Você se lembra quem era o melhor amigo dele?
— Claro — disse Madame Rosmerta, com uma risadinha. — Nunca se via um sem o outro, não é mesmo? O número de vezes que os dois estiveram aqui, ah, me faziam rir o tempo todo. Uma dupla incrível, Sirius Black e Tiago Potter!
Harry deixou cair a caneca com estrépito. Rony deu-lhe um pontapé.
— Exatamente — disse a Profª. Minerva. — Black e Potter líderes de uma turminha. Os dois muito inteligentes, é claro, na verdade excepcionalmente inteligentes, mas acho que nunca tivemos uma dupla de criadores de confusões igual...
— Não sei — disse Hagrid, dando uma risadinha. — Fred e Jorge Weasley seriam páreo duro para os dois.
— Poder-se-ia até pensar que Black e Potter eram irmãos!
O Profº. Flitwick entrou na conversa.
— Inseparáveis!
— Claro que eram — comentou Fudge. — Potter confiava mais em Black do que em qualquer outro amigo. Nada mudou quando os dois terminaram a escola. Black foi o padrinho quando Tiago se casou com Lílian. Depois, eles o escolheram para padrinho de Harry. O garoto nem tem idéia disso, é claro. Vocês podem imaginar como isto o atormentaria.
— Por que Black acabou se aliando a Você-Sabe-Quem? — cochichou Madame Rosmerta.
— Foi muito pior do que isso, minha querida... — Fudge baixou a voz e continuou numa espécie de sussurro grave. — Muita gente desconhece que os Potter sabiam que Você-Sabe-Quem queria pegá-los. Dumbledore, que naturalmente trabalhava sem descanso contra Você-Sabe-Quem, tinha um bom número de espiões úteis. Um deles avisou-o e ele, na mesma hora, alertou Tiago e Lílian, Dumbledore aconselhou os dois a se esconderem. Bem, é claro que não era fácil alguém se esconder de Você-Sabe-Quem.
Dumbledore sugeriu aos dois que teriam maiores chances de escapar se apelassem para o Feitiço Fidelius.
— Como é que é isso? — perguntou Madame Rosmerta, ofegando de interesse, O Profº. Flitwick pigarreou.
— Um feitiço extremamente complexo — explicou com a sua vozinha fina —, que implica esconder o segredo, por meio da magia, em uma única pessoa viva. A informação é guardada no íntimo da pessoa escolhida, ou fiel do segredo, e torna-se impossível encontrá-la, a não ser, é claro, que o fiel do segredo resolva contar a alguém. Enquanto ele se mantiver calado, Você-Sabe-Quem poderia revistar o povoado em que Lílian e Tiago viviam durante anos sem jamais encontrá-los, mesmo que ficasse com o nariz grudado na janela da sala deles!
— Então Black era o fiel do segredo dos Potter? — sussurrou Madame Rosmerta.
— Naturalmente — respondeu a Profª. Minerva. — Tiago Potter contou a Dumbledore que Black preferiria morrer a contar onde eles estavam, que Black estava pensando em se esconder também... Mesmo assim, Dumbledore continuou preocupado. Eu me lembro que ele próprio se ofereceu para ser o fiel do segredo dos Potter.
— Ele suspeitava de Black? — exclamou Madame Rosmerta.
— Ele tinha certeza de que alguém intimo dos Potter tinha mantido Você-Sabe-Quem informado dos movimentos do casal — respondeu a Profª. Minerva sombriamente.
— De fato, ele vinha suspeitando havia algum tempo de que alguém do nosso lado virara traidor e estava passando muita informação para Você-Sabe-Quem.
— Mas Tiago Potter insistiu em usar Black ?
— Insistiu — disse Fudge com a voz carregada. — E então, pouco mais de uma semana depois de terem realizado o Feitiço Fidelius...
— Black traiu os Potter? — murmurou Madame Rosmerta.
— Traiu. Black estava cansado do papel de agente duplo, estava pronto a declarar abertamente o seu apoio a Você-Sabe-Quem, e parece que planejou fazer isso assim que os Potter morressem. Mas, como todos sabem,
Você-Sabe-Quem encontrou sua perdição no pequeno Harry Potter. Despojado de poderes, extremamente enfraquecido, ele fugiu. E isto deixou Black numa posição realmente muito difícil. Seu mestre caíra no exato momento em que ele, Black, mostrara quem de fato era, um traidor. Não teve outra escolha senão fugir...
Você-Sabe-Quem encontrou sua perdição no pequeno Harry Potter. Despojado de poderes, extremamente enfraquecido, ele fugiu. E isto deixou Black numa posição realmente muito difícil. Seu mestre caíra no exato momento em que ele, Black, mostrara quem de fato era, um traidor. Não teve outra escolha senão fugir...
— Vira-casaca imundo e podre! — exclamou Hagrid tão alto que metade do bar se calou.
— Psiu! — fez a Profª. Minerva.
— Eu o encontrei! — rosnou Hagrid, — Devo ter sido a última pessoa que viu Black antes de ele matar toda aquela gente! Fui eu que salvei Harry da casa de Lílian e Tiago depois que o casal morreu! Tirei o garoto das ruínas, coitadinho, com um grande corte na testa, e os pais mortos... E Sirius Black aparece naquela moto voadora que ele costumava usar. Nunca me ocorreu o que ele estava fazendo ali. Eu não sabia que ele era o fiel do segredo de Lílian e Tiago. Pensei que tivesse acabado de saber da notícia do ataque de Você-Sabe-Quem e vindo ver o que era possível fazer. Estava tremendo, branco. E vocês sabem o que eu fiz? EU CONSOLEI O TRAIDOR ASSASSINO! — bradou Hagrid.
— Hagrid, por favor! — pediu a Profª. Minerva. — Fale baixo!
— Como é que eu ia saber que ele não estava abalado com a morte de Lílian e Tiago? Que estava preocupado era com Você-Sabe-Quem!
Então ele disse:
— "Me dá o Harry, Hagrid. Sou o padrinho dele, vou cuidar dele”... Ah! Mas eu tinha recebido ordens de Dumbledore, e disse não, Dumbledore tinha me mandado levar Harry para a casa dos tios. Black discordou, mas no fim cedeu. Me disse, então, que eu podia pegar a moto dele para levar Harry. "Não vou precisar mais dela", falou. Eu devia ter percebido, naquela hora, que alguma coisa não estava cheirando bem. Black adorava a moto. Por que estava dando ela para mim? Por que não ia precisar mais da moto? A questão é que a moto era muito fácil de localizar. Dumbledore sabia que ele tinha sido o fiel do segredo dos Potter. Black sabia que ia ter que se mandar àquela noite, sabia que era uma questão de horas até o Ministério sair à procura dele. Mas e se eu tivesse entregado Harry a Black, hein? Aposto como ele teria jogado o garoto no mar no meio do caminho. O filho dos melhores amigos dele! Mas quando um bruxo se alia ao lado das trevas, não tem mais nada nem ninguém que tenha importância para ele...
À história de Hagrid seguiu-se um longo silêncio. Então, Madame Rosmerta falou com uma certa satisfação.
— Mas ele não conseguiu desaparecer, não foi? O Ministério da Magia o agarrou no dia seguinte!
— Ah, se ao menos isso fosse verdade — lamentou Fudge com amargura. — Não fomos nós que o encontramos. Foi o pequeno Pedro Pettigrew, outro amigo dos Potter. Com certeza, enlouquecido de pesar e sabendo que Black fora o fiel do segredo dos Potter, Pedro foi pessoalmente atrás dele.
— Pettigrew... Aquele gordinho que sempre andava atrás dos dois em Hogwarts? — perguntou Madame Rosmerta.
— Ele venerava Black e Potter como se fossem heróis — disse a Profª. Minerva. — Não estava bem à altura deles em termos de talento. Muitas vezes fui severa demais com ele. Podem imaginar agora como me... Como me arrependo disso... — Sua voz parecia a de alguém que apanhara de repente um resfriado.
— Vamos, Minerva — consolou-a Fudge, com bondade. — Pettigrew teve uma morte de herói. Testemunhas oculares, trouxas, é claro, depois limpamos a memória deles, nos contaram como Pettigrew encurralou Black. Dizem que ele soluçava: "Lílian e Tiago, Sirius! Como é que você pôde?" Então fez menção de apanhar a varinha. Bem, naturalmente, Black foi mais rápido. Fez Pettigrew em pedacinhos...
A Profª. Minerva assoou o nariz e disse com a voz embargada:
— Menino burro... Menino tolo... Nunca teve jeito para duelar... Deveria ter deixado isso para o ministério...
— E vou dizer uma coisa, se eu tivesse chegado ao Black antes de Pettigrew, não teria apelado para varinhas, eu teria despedaçado ele aos bocadinhos — rosnou Hagrid.
— Você não sabe o que está dizendo, Hagrid — disse Fudge com severidade. — Ninguém, a não ser bruxos de elite do Esquadrão de Execução das Leis da Magia, teria tido uma chance contra Black depois que ele foi encurralado. Na época, eu era ministro júnior no Departamento de Catástrofes Mágicas, e fui um dos primeiros a chegar à cena depois que Black liquidou aquelas pessoas, nunca vou me esquecer. Ainda sonho com o que vi, às vezes. Uma cratera no meio da rua, tão funda que rachou a tubulação de esgoto embaixo. Cadáveres por toda a parte. Trouxas berrando. E Black parado ali, dando gargalhadas, diante do que restava de Pettigrew... Um monte de vestes ensangüentadas e uns poucos, uns poucos fragmentos...
A voz de Fudge parou abruptamente. Ouviu-se o barulho de cinco narizes sendo assoados.
— Bem, aí tem você, Rosmerta — disse Fudge com a voz carregada. — Black foi levado por vinte policiais do Esquadrão de Execução das Leis da Magia e Pettigrew recebeu a Ordem de Merlim, Primeira Classe, o que acho que foi algum consolo para a coitada da mãe dele. Black tem estado preso em Azkaban desde então.
Madame Rosmerta deu um longo suspiro.
— É verdade que ele é doido, ministro?
— Eu gostaria de poder dizer que é — disse Fudge lentamente. — Acredito que é certo que a derrota do mestre o desequilibrou por algum tempo. O assassinato de Pettigrew e de todos aqueles trouxas foi trabalho de um homem desesperado e acuado, cruel... Sem sentido. Mas eu encontrei Black na última inspeção que fiz à Azkaban. Vocês sabem que a maioria dos prisioneiros lá ficam sentados no escuro resmungando; não dizem coisa com coisa... Mas fiquei chocado com a aparência normal de Black. Conversou comigo muito racionalmente. Me deixou nervoso. Deu a impressão de estar meramente entediado, perguntou se eu já tinha acabado de ler o meu jornal, com toda a tranqüilidade, disse que sentia falta das palavras cruzadas. Fiquei realmente espantado de ver o pouco efeito que os dementadores estavam causando nele, e, vejam, ele era um dos prisioneiros mais fortemente guardados do lugar. Dementadores à porta da cela dia e noite.
— Mas para que o senhor acha que ele fugiu? — perguntou Madame Rosmerta. — Por Deus, ministro, ele não está tentando se juntar a Você-Sabe-Quem, está?
— Eu diria que esse é o plano dele, hum, a longo prazo — disse Fudge evasivamente. — Mas temos esperança de pegar Black bem antes disso. Devo dizer que Você-Sabe-Quem sozinho e sem amigos é uma coisa... Mas se tiver de volta o seu serviçal mais dedicado, estremeço só em pensar na rapidez com que se reergueria...
Ouviu-se um leve tilintar de copo em madeira. Alguém pousara o copo.
— Sabe, Cornélio, se você vai jantar com o diretor, é melhor voltarmos para o castelo — sugeriu a Profª. Minerva.
Um por um, os pares de pés à frente de Harry retomaram o peso dos seus donos; barras de capas rodopiaram no ar e os saltos cintilantes de Madame Rosmerta desapareceram atrás do balcão do bar. A porta do Três Vassouras tornou a se abrir, deixando entrar mais uma rajada de flocos de neve e os professores desapareceram.
— Harry?
Os rostos de Rony e Hermione surgiram embaixo da mesa. Os dois o encararam, sem encontrar palavras para falar.
CAPÍTULO ONZE
A Firebolt
Harry não tinha uma idéia muito clara de como conseguira voltar ao porão da Dedosdemel, atravessar o túnel e sair mais uma vez no castelo. Só sabia que a viagem de volta parecia não ter demorado nada, e que ele mal se apercebera do que estava fazendo, porque sua cabeça continuava a latejar com a conversa que acabara de ouvir.
Por que ninguém lhe contara? Dumbledore, Hagrid, o Sr. Weasley, Cornélio Fudge... Por que ninguém jamais mencionara o fato de que seus pais tinham morrido porque o melhor amigo deles os traíra?
Rony e Hermione observavam Harry, muito nervosos, durante o jantar, sem sequer se atrever a conversar com ele sobre o que tinham ouvido, porque Percy estava sentado perto deles. Quando subiram para a concorrida sala comunal, foi para descobrir que Fred e Jorge tinham soltado meia dúzia de bombas de bosta num arroubo de animação de fim de trimestre. Harry, que não queria que os gêmeos lhe perguntassem se tinha chegado ou não a Hogsmeade, subiu sorrateira e silenciosamente para o dormitório vazio e foi direto ao seu armário de cabeceira. Empurrou os livros para um lado e não demorou nada a encontrar o que estava procurando — o álbum de fotografias encadernado em couro que Hagrid lhe dera havia dois anos, repleto de fotos mágicas de seus pais. O garoto se sentou na cama, fechou o cortinado e começou a virar as páginas, procurando, até que...
Parou numa foto do dia do casamento dos pais. Lá estava seu pai acenando para ele, sorridente, os rebeldes cabelos negros que Harry herdara apontando para todas as direções. Lá estava sua mãe, radiante de felicidade, de braço dado com o seu pai. E lá... Aquele devia ser ele. O padrinho... Harry jamais lhe dera atenção antes.
Se não tivesse sabido que era a mesma pessoa, jamais teria pensado que era Black naquela velha foto. Seu rosto não era encovado e macilento, mas bonito e risonho. Já estaria trabalhando para Voldemort quando a foto fora tirada?
Já estaria planejando as mortes das duas pessoas ao seu lado? Saberia que ia enfrentar doze anos em Azkaban, doze anos que o tornariam irreconhecível?
Mas os dementadores não o afetam, pensou Harry examinando atentamente aquele rosto bonito e risonho. Ele não tem que ouvir minha mãe gritando quando eles chegam muito perto...
Harry fechou com violência o álbum e, abaixando-se, guardou-o de novo no armário, tirou as vestes e os óculos e foi dormir, cuidando para que o cortinado o escondesse de todos.
A porta do dormitório se abriu.
— Harry? — chamou a voz de Rony, hesitante.
Mas Harry continuou quieto, fingindo que estava dormindo. Ouviu o amigo se retirar e virou de barriga para cima, os olhos muito abertos.
Um ódio que ele jamais conhecera começou a crescer dentro dele como veneno. Viu Black rindo-se dele no escuro, como se alguém tivesse colado a foto do álbum em seus olhos. Assistiu, como se estivesse vendo um filme, a Sirius Black explodir Pedro Pettigrew, (que lembrava Neville Longbottom), em mil pedaços. Ouviu (embora não tivesse a menor idéia do som que teria a voz de Black) um murmúrio baixo e excitado. "Aconteceu, meu Senhor... os Potter me escolheram para fiel do seu segredo”. E então ouviu outra voz, rindo-se histericamente, a mesma risada que Harry ouvia mentalmente sempre que os dementadores se aproximavam...
— Harry, você... Você está com uma cara horrível. O garoto só adormecera quando o dia ia raiando. Ao acordar, encontrou o dormitório vazio, deserto, se vestiu e desceu para a sala comunal, também vazia exceto pela presença de Rony, que comia sapos de creme de menta e massageava a barriga, e Hermione que espalhara os deveres de casa em cima de três mesas.
— Onde foi todo mundo? — perguntou Harry.
— Embora! Hoje é o primeiro dia das férias, está lembrado? — respondeu Rony, observando o amigo atentamente. — É quase hora do almoço; eu ia subir para acordá-lo daqui a pouquinho.
Harry afundou em uma poltrona junto à lareira. A neve continuava a cair lá fora. Bichento estava esparramado diante da lareira como um grande tapete amarelo-avermelhado.
— Realmente você não está com uma cara muito boa, sabe — disse Hermione, examinando ansiosa o rosto do garoto.
— Estou ótimo — retrucou ele.
— Harry, escuta aqui — disse Hermione trocando um olhar com Rony —, você deve estar realmente perturbado com o que ouviu ontem. Mas o importante é não fazer nenhuma bobagem.
— Como o quê?
— Como tentar ir atrás de Black — disse Rony depressa.
Harry percebeu que os dois tinham ensaiado aquela conversa enquanto ele estivera dormindo. Não respondeu nada.
— Você não vai, não é mesmo, Harry? — insistiu Hermione.
— Porque não vale a pena morrer por causa do Black — disse Rony.
Harry olhou para os amigos. Eles pareciam não ter entendido o problema.
— Vocês sabem o que eu vejo e ouço cada vez que um dementador se aproxima de mim? — Rony e Hermione sacudiram a cabeça, apreensivos. — Ouço minha mãe gritar e suplicar a Voldemort. E se alguém ouve a mãe gritar daquele jeito, pouco antes de morrer, não dá para esquecer depressa. E se descobre que alguém que ela acreditava ser amigo foi o traidor que pôs Voldemort na pista dela...
— Mas não tem nada que você possa fazer! — disse Hermione impressionada. — Os dementadores vão capturar Black e ele vai voltar a Azkaban e... E é muito bem feito para ele!
— Você ouviu o que Fudge disse. Black não é afetado por Azkaban como as pessoas normais. Não é um castigo para ele como é para os outros.
— Então o que é que você está dizendo? — perguntou Rony muito tenso. — Você quer... Matar Black ou coisa parecida?
— Não seja bobo — disse Hermione, cuja voz transparecia pânico. — Harry não quer matar ninguém, não é mesmo?
Mais uma vez Harry não respondeu. Ele não sabia o que queria fazer. Só sabia que a idéia de não fazer nada, enquanto Black continuava em liberdade, era quase insuportável.
— Malfoy sabe — disse ele de repente. — Vocês lembram do que ele me disse na aula de Poções? "Se fosse eu, ia atrás dele sozinho... Ia querer vingança.”
— Você vai seguir o conselho de Malfoy em vez do nosso? — perguntou Rony, enfurecido. — Escuta aqui... Você sabe o que a mãe do Pettigrew recebeu depois que Black acabou com o filho dela? Papai me contou... A Ordem de Merlim, Primeira Classe, e o dedo de Pettigrew em uma caixa. Foi o maior pedaço dele que conseguiram encontrar. Black é um louco, Harry, e é perigoso...
— O pai de Malfoy deve ter contado a ele — disse Harry, não dando atenção a Rony. — Fazia parte do círculo íntimo de Voldemort...
— Faz favor de dizer Você-Sabe-Quem? — exclamou Rony com raiva.
— ... Então obviamente, os Malfoy sabiam que Black estava trabalhando para Voldemort...
— ... e Malfoy adoraria ver você desintegrado em um milhão de pedaços, como Pettigrew! Caia na real, Harry. A esperança de Malfoy é que você seja morto antes de ele precisar jogar Quadribol contra você.
— Harry, por favor — pediu Hermione, os olhos agora brilhantes de lágrimas —, por favor, tenha juízo. Black fez uma coisa horrível demais, mas não corra riscos, é isso que Black quer... Ah, Harry, você vai fazer o jogo do Black se for atrás dele. Seus pais não iam querer que você se machucasse, iam? Jamais iam querer que você saísse procurando o Black!
— Eu nunca vou saber o que eles iam querer, porque, graças ao Black, nunca conversei com eles — disse Harry com rispidez.
Houve um silêncio em que Bichento se espreguiçou com desenvoltura, flexionando as garras. O bolso de Rony estremeceu.
— Escuta — disse o garoto, obviamente procurando mudar de assunto —, estamos de férias! Já é quase Natal! Vamos... Vamos descer para ver o Hagrid. Não o visitamos há uma eternidade!
— Não! — disse Hermione depressa. — Harry não pode sair do castelo, Rony...
— É, vamos — disse Harry se endireitando na poltrona —, assim posso perguntar a ele por que nunca mencionou o Black quando me contou a história dos meus pais!
Continuar a discussão sobre Sirius Black não era obviamente o que Rony tinha em mente.
— Ou poderíamos jogar uma partida de xadrez — disse ele depressa — ou de bexigas. Percy deixou um jogo...
— Não, vamos visitar Hagrid — disse Harry com firmeza.
Então os três apanharam as capas nos dormitórios e saíram pelo buraco do retrato (Levantem-se para lutar, seus vira-latas covardes!), desceram pelo castelo vazio e cruzaram as portas de carvalho.
Os garotos caminharam sem pressa pelos jardins, deixando uma vala rasa na neve faiscante e solta, as meias e as bainhas das capas foram se molhando e congelando.
A Floresta Proibida parecia que fora encantada, cada árvore se cobrira de salpicos prateados e a cabana de Hagrid lembrava um bolo com glacê.
Rony bateu, mas não teve resposta.
— Será que ele saiu? — perguntou Hermione, que tremia embaixo da capa.
Rony encostou o ouvido na porta.
— Tem um barulho esquisito — disse. — Escuta só, será o Canino?
Harry e Hermione encostaram os ouvidos na porta também. De dentro da cabana vinham uns gemidos baixos e soluçantes.
— Será que não é melhor a gente ir chamar alguém? — perguntou Rony, nervoso.
— Hagrid! — chamou Harry, dando socos na porta. — Hagrid, você está aí?
Ouviu-se um som de passos pesados, depois a porta se abriu com um rangido. Hagrid estava ali parado, com os olhos vermelhos e inchados, as lágrimas caindo pelo seu colete de couro.
— Vocês souberam? — berrou ele, e se atirou no pescoço de Harry.
Tendo Hagrid no mínimo duas vezes o tamanho de um homem normal, isso não foi brincadeira. O garoto, quase desabando sob o peso do gigante, foi salvo por Rony e Hermione, que seguraram um em cada braço de Hagrid, e o puxaram para dentro da cabana. O guarda-caça deixou-se conduzir até uma cadeira e se largou em cima da mesa, soluçando descontrolado, o rosto brilhante de lágrimas que escorriam por sua barba embaraçada.
— Hagrid, o que foi? — perguntou Hermione perplexa.
Harry reparou em uma carta de aparência oficial aberta em cima da mesa.
— Que é isso, Hagrid?
Os soluços de Hagrid redobraram, mas ele empurrou a carta para o garoto, que a apanhou e leu em voz alta:
Prezado Sr. Hagrid.
Dando prosseguimento ao nosso inquérito sobre o ataque do hipogrifo a um aluno seu, aceitamos as ponderações do Profº. Dumbledore de que o senhor não é responsável pelo lamentável incidente.
— Bem, então está tudo certo, Hagrid! — exclamou Rony, dando uma palmadinha no ombro do amigo.
Mas Hagrid continuou a soluçar, e fez sinal com uma de suas gigantescas mãos, convidando Harry a continuar a leitura da carta.
No entanto, devemos registrar a nossa preocupação quanto ao hipogrifo em pauta. Decidimos acolher a reclamação oficial do Sr. Lúcio Malfoy, e o caso será encaminhado à Comissão para Eliminação de Criaturas Perigosas. A audiência terá lugar em 20 de abril, e solicitamos que o senhor se apresente com o seu hipogrifo nos escritórios da Comissão, em Londres, nessa data.
Entrementes, o animal deverá ser mantido preso e isolado.
Atenciosamente...
Seguia-se uma lista com os nomes dos conselheiros da escola.
— Ah! — exclamou Rony. — Mas você disse que o Bicuço não é um hipogrifo bravo, Hagrid. Aposto como ele vai se safar...
— Você não conhece as gárgulas da Comissão para Eliminação de Criaturas Perigosas! — respondeu Hagrid com a voz engasgada, enxugando os olhos na manga. — Eles têm má vontade com as criaturas interessantes!
Um som repentino vindo de um canto da cabana fez Harry, Rony e Hermione se virarem depressa. Bicuço, o hipogrifo, estava deitado a um canto, mastigando alguma coisa que fazia escorrer sangue por todo o soalho.
— Eu não podia deixar ele amarrado lá fora na neve! — explicou Hagrid, sufocado. — Sozinho! No Natal.
Harry, Rony e Hermione se entreolharam. Nunca tinham concordado com Hagrid sobre o que o guarda-caça chamava de "criaturas interessantes” e outras pessoas chamavam de "monstros aterrorizantes". Por outro lado, não parecia haver nenhuma maldade especifica em Bicuço. De fato, pelos padrões normais de Hagrid, o bicho era sem dúvida engraçadinho.
— Você terá que preparar uma boa defesa, Hagrid — falou Hermione, sentando-se e pondo a mão no braço maciço do amigo. — Tenho certeza de que você pode provar que Bicuço é seguro.
— Não vai fazer nenhuma diferença! — soluçou Hagrid. — Aqueles demônios da Eliminação, eles são controlados por Lúcio Malfoy! Têm medo dele! E se eu perder o caso, Bicuço...
Hagrid passou o dedo rapidamente pela garganta, depois deixou escapar um lamento, e caiu para frente, deitando a cabeça nos braços.
— E Dumbledore, Hagrid? — perguntou Harry.
— Ele já fez mais do que o suficiente por mim — gemeu Hagrid. — Já tem muito com que se ocupar só para segurar os dementadores fora do castelo e o Sirius Black rondando...
Rony e Hermione olharam depressa para Harry como se esperassem que o garoto fosse começar a criticar Hagrid por não ter contado a verdade sobre Black. Mas Harry não teve coragem de perguntar nada, não naquele momento em que estava vendo o amigo tão infeliz e amedrontado.
— Escuta aqui, Hagrid — disse Harry —, você não pode desistir. Hermione tem razão, você só precisa é de uma boa defesa. Pode nos chamar como testemunhas...
— Tenho certeza de que já li um caso de alguém que provocou um hipogrifo — disse Hermione, pensativa — e o bicho foi inocentado. Vou procurar para você Hagrid, e verificar exatamente o que aconteceu.
Hagrid chorou ainda mais alto. Harry e Hermione olharam para Rony, pedindo ajuda.
— Hum... E se eu fizesse uma xícara de chá para nós? — ofereceu-se o garoto.
Harry olhou para ele, espantado.
— É o que a minha mãe faz sempre que alguém está chateado — murmurou Rony, encolhendo os ombros.
Finalmente, depois de muitas reafirmações de ajuda, e uma caneca de chá fumegante diante dele, Hagrid assoou o nariz com um lenço do tamanho de uma toalha de mesa e disse:
— Vocês têm razão. Não posso me entregar assim. Tenho que me controlar...
Canino, o cão de caçar javalis, saiu timidamente debaixo da mesa e descansou a cabeça no joelho do dono.
— Não tenho andado muito bem ultimamente — disse Hagrid, acariciando Canino com uma das mãos e enxugando o rosto com a outra. — Preocupado com o Bicuço e com a turma que não está gostando das minhas aulas...
— Nós gostamos! — mentiu Hermione na mesma hora.
— É, elas são ótimas! — acrescentou Rony, cruzando os dedos embaixo da mesa. — É... Como é que vão os vermes?
— Mortos — disse Hagrid sombriamente. — Alface demais.
— Ah, não! — exclamou Rony, com um trejeito de riso na boca.
— E esses dementadores fazendo eu me sentir péssimo e tudo o mais — disse Hagrid com um súbito estremecimento. — Tenho que passar por eles todas as vezes que quero beber alguma coisa no Três Vassouras. É como se eu estivesse de volta a Azkaban...
Ele se calou e tomou um pouco de chá. Harry, Rony e Hermione o observaram prendendo a respiração. Nunca tinham ouvido Hagrid falar de sua breve estada em Azkaban. Depois de uma pausa, Hermione perguntou timidamente:
— Lá é muito ruim, Hagrid?
— Vocês não fazem idéia — disse ele com a voz contida. — Nunca estive em nenhum lugar assim. Pensei que ia endoidar. Ficava lembrando de coisas horríveis... O dia em que fui expulso de Hogwarts... O dia em que meu pai morreu... O dia em que tive de mandar Norberto embora...
Seus olhos se encheram de lágrimas. Norberto era o bebê dragão que Hagrid ganhara certa vez em um jogo de cartas.
— A pessoa não consegue mais se lembrar de quem é depois de algum tempo. E começa a achar que não vale a pena viver. Eu tinha esperança de morrer durante o sono... Quando me soltaram, foi como se eu estivesse renascendo, tudo voltou como uma avalanche, foi a melhor sensação do mundo. E vejam bem, os dementadores não gostaram nada de me deixar sair.
— Mas você era inocente! — exclamou Hermione.
Hagrid riu pelo nariz.
— Você acha que eles se importam com isso? Que nada. Desde que tenham umas centenas de seres humanos trancafiados com eles, para poder sugar toda a felicidade deles, não estão nem aí se alguém é ou não é culpado.
Hagrid ficou calado por um instante, olhando para o chá.
Depois disse em voz baixa:
— Pensei em deixar Bicuço ir embora... Tentar fazê-lo fugir.. Mas como é que a gente explica para um hipogrifo que ele tem que se esconder? E... E tenho medo de desrespeitar a lei... — Ele ergueu os olhos para os garotos, as lágrimas outra vez escorrendo pelo rosto. — Não quero nunca mais na vida voltar para Azkaban.
A ida à cabana de Hagrid, embora não tivesse sido divertida, em todo o caso, produzira o efeito que Rony e Hermione esperavam. Ainda que Harry não tivesse de modo algum esquecido Black, não iria poder ficar pensando o tempo todo em vingança se quisesse ajudar Hagrid a vencer a causa contra a Comissão para Eliminação de Criaturas Perigosas. Ele, Rony e Hermione foram, no dia seguinte, à biblioteca, e voltaram ao vazio salão comunal, carregados de livros que poderiam ajudar a preparar a defesa para o Bicuço. Os três se sentaram diante do fogo forte que havia na lareira e folhearam lentamente as páginas de livros empoeirados sobre casos famosos de feras que saíram para roubar ou atacar gente, falando-se, ocasionalmente, quando deparavam com alguma coisa que servisse.
— Aqui tem uma coisa... Houve um caso em 1722... Mas o hipogrifo foi condenado, eca, olhem só o que fizeram com ele, que coisa horrível...
— Esse aqui pode ajudar, olhem... Um Manticora atacou alguém ferozmente em 1296, e deixaram o bicho livre... Ah... Não, foi só porque todos estavam com medo de se aproximar dele...
Nesse meio tempo, tinham sido armadas no resto do castelo as magníficas decorações de Natal, apesar de poucos alunos terem permanecido na escola para apreciá-las.
Grossas serpentinas de folhas e frutos de azevinho foram penduradas pelos corredores, luzes misteriosas brilhavam dentro de cada armadura, e o Salão Principal tinha as doze árvores de Natal de sempre, fulgurantes de estrelas douradas. Um cheiro forte e gostoso de comida invadia os corredores e, na altura da noite de Natal, estava tão forte que até Perebas, no bolso de Rony, botou o nariz de fora para cheirar, esperançoso, o ar.
Na manhã de Natal, Harry foi acordado com Rony atirando um travesseiro nele.
— Os Presentes!
Harry apanhou os óculos e colocou-os no rosto, tentando enxergar, na penumbra, os pés da cama, onde aparecera um montinho de pacotes. Rony já estava rasgando o papel que embrulhava os dele.
— Mais uma suéter de mamãe... Outra vez marrom-avermelhada... Veja se você também ganhou uma.
Harry ganhara. A Sra. Weasley lhe mandara uma suéter vermelha com o leão da Grifinória no peito, uma dúzia de tortas de frutas secas e nozes, um bolo de Natal e uma caixa com crocantes de nozes. Quando empurrou tudo isso para um lado, ele viu um pacote fino e longo por baixo.
— Que é isso? — perguntou Rony, espiando, enquanto segurava nas mãos um par de meias marrom-avermelhadas que acabara de abrir.
— Não sei...
Harry rasgou o pacote e prendeu a respiração ao ver a magnífica e reluzente vassoura que rolara sobre sua cama. Rony largou as meias e pulou da cama dele para olhar mais de perto.
— Eu não acredito — disse com a voz rouca.
Era uma Firebolt, idêntica à vassoura de sonho que Harry tinha ido ver todas as manhãs no Beco Diagonal. O cabo brilhou quando ele a ergueu. Sentiu a vassoura vibrar e a soltou; ela ficou flutuando no ar, sem apoio, na altura exata para ele montá-la.
Os olhos de Harry correram da placa de ouro com o número do registro para a superfície do cabo, dali para as lascas de bétula perfeitamente lisas e aerodinâmicas que formavam a cauda.
— Quem lhe mandou essa vassoura? — perguntou Rony em voz baixa.
— Procure aí o cartão — disse Harry.
Rony rasgou o resto do papel de embrulho da Firebolt.
— Nada! Caramba, quem gastaria tanto dinheiro com você?
— Bem — disse Harry atordoado —, aposto que não foram os Dursley.
— Aposto que foi Dumbledore — disse Rony, agora rodeando a Firebolt, apreciando cada centímetro de sua glória. — Ele lhe mandou a Capa da Invisibilidade anonimamente...
— Mas era do meu pai — respondeu Harry. — Dumbledore só estava passando a capa para mim. Ele não gastaria centenas de galeões comigo. Não pode sair dando coisas assim para alunos...
— Por isso mesmo é que não ia dizer que foi ele! — concluiu Rony. — Para um debilóide feito o Malfoy não dizer que é favoritismo. — Ei, Harry... — Rony deu uma grande gargalhada. — Malfoy! Espera até ele ver você montado nisso! Vai ficar doente de inveja! É uma vassoura de padrão internacional, ah, isso é!
— Não consigo acreditar — murmurou Harry, alisando a Firebolt, enquanto Rony afundava na cama dele, rindo de se acabar só de pensar no Malfoy. — Quem...?
— Eu sei — disse Rony se controlando. — Eu sei quem poderia ter sido... O Lupin.
— Quê? — disse Harry, agora começando a rir também. — Lupin? Olha, se ele tivesse tanto ouro assim, poderia comprar umas vestes novas.
— É, mas ele gosta de você. E estava ausente quando a sua Nimbus se arrebentou, e talvez tenha ouvido falar do acidente e resolvido visitar o Beco Diagonal e comprar a vassoura para você...
— Que é que você quer dizer com estava ausente? — perguntou Harry. — Ele estava doente quando eu joguei aquela partida.
— Bem, ele não estava na ala hospitalar — disse Rony. — Eu estava lá limpando comadres, cumprindo aquela detenção que o Snape me deu, se lembra?
Harry franziu a testa para Rony.
— Não posso imaginar Lupin comprando um presente desses.
— Do que é que vocês estão rindo?
Hermione acabara de entrar, vestindo um robe e segurando Bichento, que estava com a cara de extremo mau humor e um fio de lantejoulas em volta do pescoço.
— Não entra aqui com ele! — disse Rony, apanhando Perebas depressa das profundezas de sua cama e guardando-o no bolso do pijama. Mas Hermione não ouviu. Largou Bichento na cama vazia de Símas e grudou os olhos, boquiaberta, na Firebolt.
— Ah, Harry! Quem lhe mandou isso?
— Não tenho a menor idéia. Não tinha cartão nem nada.
Para sua surpresa, Hermione não pareceu nem excitada nem intrigada com a informação. Pelo contrário, ficou desapontada e mordeu o lábio.
— Que é que você tem? — perguntou Rony.
— Não sei — respondeu Hermione lentamente —, mas é meio esquisito, não é? Quero dizer, essa é uma vassoura muito boa, não é?
Rony suspirou, exasperado.
— É a melhor vassoura que existe no mundo, Hermione.
— Então deve ter sido realmente cara...
— Provavelmente custou mais do que todas as vassouras da Sonserina, juntas — disse Rony alegremente.
— Bem... Quem iria mandar a Harry uma coisa tão cara e nem ao menos dizer que mandou? — perguntou Hermione.
— Quem quer saber disso? — retrucou Rony, impaciente. — Escuta aqui, Harry, posso dar uma voltinha? Posso?
— Acho que ninguém devia montar essa vassoura por enquanto! — disse Hermione com a voz esganiçada.
Harry e Rony encararam a garota.
— Que é que você acha que Harry vai fazer com ela... Varrer o chão?
Mas antes que Hermione pudesse responder, Bichento saltou da cama de Simas direto para o peito de Rony.
— TIRE-O-DAQUI! — berrou Rony, ao mesmo tempo em que as garras de Bichento rasgaram seu pijama e Perebas tentou uma fuga desesperada por cima do seu ombro. Rony agarrou Perebas pelo rabo e mirou em Bichento um pontapé mal calculado que acabou acertando o malão aos pés da cama de Harry, derrubou-o, e fez Rony pular pelo quarto uivando de dor.
O pêlo de Bichento de repente ficou em pé. Um assobio alto e fino começou a invadir o quarto. O bisbilhoscópio de bolso saltara de dentro das meias velhas do tio Válter e saíra rodopiando e cintilando pelo chão.
— Eu tinha me esquecido dele! — exclamou Harry, que se abaixou e recolheu o bisbilhoscópio. — Nunca uso estas meias se posso evitar...
O pequeno pião girava e assobiava na palma da mão do garoto. Bichento sibilava e bufava para ele.
— É melhor você levar esse gato daqui, Hermione — disse Rony furioso, sentando-se na cama de Harry e massageando o dedão do pé. — Será que dá para você guardar essa coisa? — acrescentou ele para Harry quando Hermione ia se retirando do quarto. Os olhos amarelos de Bichento continuavam fixos nele, cheios de malícia.
Harry tornou a enfiar o bisbilhoscópio nas meias e atirou-o de volta ao malão. Tudo que se ouvia agora eram os gemidos de dor e raiva que Rony abafava. Perebas estava aninhado nas mãos do dono. Já fazia tempo que Harry o vira fora do bolso do amigo e teve a desagradável surpresa de observar que Perebas, antigamente tão gordo, estava agora magérrimo; e também tinha perdido pêlos em alguns pontos do corpo.
— Ele não está com uma aparência muito boa, não é? — comentou Harry.
— É estresse! — respondeu Rony. — Ele até estaria bem se aquela bola idiota de pêlos o deixasse em paz.
Mas Harry, se lembrando que a mulher na loja de Animais Mágicos dissera que os ratos só viviam três anos, não pôde deixar de sentir que, a não ser que Perebas tivesse poderes jamais revelados, ele estava chegando ao fim da vida. E, apesar das queixas freqüentes do amigo de que o rato estava chato e inútil, ele tinha certeza de que Rony ficaria muito infeliz se o bicho morresse.
O espírito de Natal estava decididamente em baixa no salão comunal da Grifinória àquela manhã. Hermione prendera Bichento no dormitório das meninas, mas estava furiosa com Rony por ter tentado chutá-lo; Rony continuava fumegando de raiva com a nova tentativa que o gato fizera de comer seu rato. Harry desistiu de tentar fazer os dois se falarem e se ocupou em examinar a Firebolt, que trouxera com ele para a sala. Por alguma razão isto pareceu aborrecer Hermione também;
Ela não fez comentário algum, mas não parava de lançar olhares carrancudos à vassoura, como se esta também tivesse criticado Bichento.
À hora do almoço eles desceram para o Salão Principal e descobriram que as mesas das casas tinham sido encostadas nas paredes outra vez e que uma única mesa fora posta para doze pessoas no meio do salão. Os professores Dumbledore, Minerva MeGonagall, Snape, Sprout e Flitwick estavam sentados à mesa, bem como Filch, o zelador, que tirara o avental marrom de uso diário e estava enfatiotado com uma casaca muito velha de aspecto mofado. Havia apenas mais três alunos, dois novatos extremamente nervosos e um garoto mal-humorado da Sonserina.
— Feliz Natal! — desejou Dumbledore quando Harry, Rony e Hermione se aproximaram da mesa. — Como éramos tão poucos, me pareceu uma tolice usar as mesas das casas... Sentem-se, sentem-se!
Harry, Rony e Hermione se sentaram lado a lado na ponta da mesa.
— Balas de estalo! — disse Dumbledore entusiasmado, oferecendo a ponta de um tubo prateado a Snape, que o pegou com relutância e puxou. Com um estampido, a bala se rompeu e surgiu um grande chapéu cônico de bruxo encimado por um urubu empalhado.
Harry, lembrando-se do bicho-papão, procurou os olhos de Rony e os dois sorriram; a boca de Snape se comprimiu e ele empurrou o chapéu para Dumbledore, que o trocou pelo próprio chapéu de bruxo na mesma hora.
— Podem avançar! — convidou ele aos presentes, sorrindo para todos.
Quando Harry estava se servindo de batatas assadas, as portas do salão se abriram. Era a Profª. Sibila Trelawney, deslizando em direção à mesa como se andasse sobre rodas. Tinha posto um vestido verde de paetês em homenagem à ocasião, o que a fazia parecer mais que nunca uma libélula enorme e cintilante.
— Sibila, mas que surpresa agradável! — saudou-a Dumbledore, levantando-se.
— Estive consultando a minha bola de cristal, diretor — disse a professora com a voz mais etérea e distante do mundo —, e para meu espanto, me vi abandonando o meu almoço solitário para vir me reunir a vocês. Quem sou eu para recusar uma inspiração do destino? Na mesma hora me apressei a deixar minha torre e peço que me perdoem o atraso...
— É claro — disse Dumbledore com os olhos cintilantes. Deixe-me apanhar uma cadeira para você...
E, dizendo isso, usou a varinha para trazer, pelo ar, uma cadeira que girou alguns segundos e pousou com um baque entre os professores Snape e Minerva.
A Profª. Sibila, porém, não se sentou; seus enormes olhos começaram a passear pela mesa e ela subitamente deixou escapar um gritinho.
— Não me atrevo, diretor! Se eu me sentar, seremos treze! Nada poderia ser mais azarado! Não vamos esquecer que quando treze comem juntos, o primeiro a se levantar será o primeiro a morrer!
— Vamos correr o risco, Sibila — disse a Profª. Minerva, impaciente. — Por favor, sente, o peru está esfriando.
Sibila hesitou, depois se acomodou na cadeira vazia, os olhos fechados e a boca contraída, como se estivesse à espera de um raio atingir a mesa. Minerva enfiou uma grande colher na terrina mais próxima.
— Tripas, Sibila?
A professora fingiu não ouvir. Reabriu os olhos, correu-os ao redor da mesa, mais uma vez, e perguntou:
— Mas onde está o nosso caro Profº. Lupin?
— Receio que o coitado esteja doente outra vez — disse Dumbledore, fazendo um gesto para que todos começassem a se servir. — Pouca sorte que isso fosse acontecer no dia de Natal.
— Mas com certeza você já sabia disso, não, Sibila? — disse a Profª. Minerva com as sobrancelhas erguidas.
Sibila lançou a Minerva um olhar gelado.
— Claro que sabia, Minerva — disse com a voz controlada. — Mas a pessoa não deve fazer alarde de tudo que sabe. Muitas vezes finjo que não possuo Visão Interior para não deixar os outros nervosos.
— Isto explica muita coisa — disse a outra com azedume.
A voz da Profª. Sibila subitamente se tornou bem menos etérea.
— Se você quer saber, Minerva, vi que o coitado do Profº. Lupin não vai estar conosco por muito tempo. E ele próprio parece saber que seu tempo é curto. Decididamente fugiu quando eu me ofereci para consultar a bola de cristal para ele...
— Imagine só — comentou Minerva secamente.
— Tenho minhas dúvidas — disse Dumbledore, com a voz alegre, mas ligeiramente mais alta, o que pôs um ponto final na conversa das duas — de que o Profº. Lupin corra algum perigo iminente. Severo, você preparou a poção para ele outra vez?
— Preparei, diretor — respondeu Snape.
— Ótimo. Então logo ele deverá estar de pé... Derek, você já se serviu dessas salsichas apimentadas? Estão excelentes.
O garoto do primeiro ano ficou vermelhíssimo quando Dumbledore se dirigiu a ele, e apanhou a travessa de salsichas com as mãos trêmulas.
A Profª. Sibila se comportou quase normalmente até o finzinho do almoço de Natal, duas horas depois. Empapuçados com a comida e ainda usando os chapéus da festa, Harry e Rony se levantaram primeiro da mesa e ela deu um grito agudo.
— Meus queridos! Qual dos dois se levantou da cadeira primeiro? Qual?
— Não sei — respondeu Rony olhando preocupado para Harry.
— Duvido que vá fazer muita diferença — disse a Profª. Minerva com frieza —, a não ser que o tarado da machadinha esteja esperando aí fora para matar o primeiro que sair para o saguão.
Até Rony riu. Sibila pareceu muitíssimo ofendida.
— Vem com a gente? — perguntou Harry a Hermione.
— Não — respondeu a garota. — Quero falar uma coisa com a Profª. McGonagall.
— Provavelmente vai tentar ver se pode assistir a mais aulas — bocejou Rony quando se encaminhavam para o saguão de entrada, onde não encontraram nenhum louco da machadinha.
Quando chegaram ao buraco do retrato, encontraram Sir Cadogan desfrutando um almoço de Natal com dois frades, vários ex-diretores de Hogwarts e seu gordo pônei. O cavaleiro levantou a viseira e brindou aos dois garotos com uma jarra de quentão.
— Feliz... Hic... Natal! Senha!
— Cão desprezível — disse Rony.
— E o mesmo para o senhor, meu senhor! — berrou Sir Cadogan quando o quadro se afastou para admitir os garotos.
Harry foi diretamente ao dormitório, apanhou a Firebolt e o Estojo para Manutenção de Vassouras que Hermione lhe dera de presente de aniversário, levou-os para baixo e tentou encontrar o que fazer com a vassoura; mas não havia lascas levantadas para aparar e o cabo ainda estava tão reluzente que não tinha sentido lhe dar polimento. Ele e Rony ficaram ali admirando a vassoura de todos os ângulos até que o buraco do retrato se abriu e Hermione entrou, acompanhada da Profª. Minerva.
Embora Minerva McGonagall fosse diretora da Grifinória, Harry só a vira antes na sala comunal uma vez, e para dar um aviso muito sério.
Ele e Rony a olharam, os dois segurando a Firebolt. Hermione contornou o lugar em que eles estavam, se sentou, apanhou o livro mais próximo e escondeu o rosto nele.
— Então é isso? — perguntou a professora com o seu olhar penetrante, aproximando-se da lareira para examinar a Firebolt. — A Srta. Granger acabou de me informar que alguém lhe mandou uma vassoura, Potter.
Harry e Rony se viraram para olhar Hermione. Surpreenderam sua testa corando por cima do livro, que ela segurava de cabeça para baixo.
— Posso? — perguntou McGonagall, mas não esperou resposta para tirar a vassoura das mãos dos garotos. Examinou-a atentamente, do cabo às lascas. — Hum. E não havia nenhum bilhete, nenhum cartão, Potter? Nenhuma mensagem de nenhum tipo?
— Não — disse Harry sem compreender.
— Entendo... Bem, receio que tenha de levar a vassoura, Potter.
— Q... Quê? — exclamou Harry, ficando em pé. — Por quê?
— Teremos que verificar se não está enfeitiçada. Naturalmente eu não sou especialista nesse assunto, mas imagino que Madame Hooch e o Profº. Flitwick possam desmontá-la...
— Desmontá-la? — repetiu Rony, como se a professora fosse maluca.
— Não deve levar mais do que umas semanas. Você a receberá de volta se tivermos certeza de que está limpa.
— A vassoura não tem nada errado! — exclamou Harry, a voz ligeiramente trêmula. — Francamente, professora..
— Você não pode saber, Potter — disse a professora com bondade —, pelo menos até ter voado nela, e receio que isto esteja fora de questão até nos certificarmos de que ninguém a alterou. Eu o manterei informado.
A Profª. McGonagall deu meia-volta levando a Firebolt, e atravessou o buraco do retrato, que se fechou em seguida. Harry ficou observando a professora partir, a latinha de cera de polimento ainda na mão. Rony, porém, se voltou contra Hermione.
— Para que você foi correndo contar à Profª. Minerva?
Hermione largou o livro de lado. Seu rosto continuava vermelho, mas ela se levantou e enfrentou Rony, desafiando-o.
— Porque achei, e a Profª. McGonagall concorda comigo, que provavelmente a vassoura foi mandada a Harry por Sirius Black!
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