Harry
Potter
E O PRISIONEIRO DE AZKABAN
Joanne K. Rowling
Tradução: Lia WYLER
Título original: HARRY POTTER and the Prisoner of
Azkaban
Para Jíli Prewett e Ame Kiely as avós do Swing.
SUMÁRIO
Capítulo
Um — O Correio-Coruja
Capítulo
Dois — O Grande Erro de Tia Guida
Capítulo
Três — O Nôitibus Andante
Capítulo
Quatro — O Caldeirão Furado
Capítulo
Cinco — O Dementador
Capítulo
Seis — Garras e Folhas de Chá
Capítulo
Sete — O Bicho-Papão no Armário
Capítulo
Oito — A Fuga da Mulher Gorda
Capítulo
Nove — A Amarga Derrota
Capítulo
Dez — O Mapa do Maroto
Capítulo
Onze — A Firebolt
Capítulo
Doze — O Patrono
Capítulo
Treze — Grifinória Versus Corvinal
Capítulo
Catorze — O Ressentimento de Snape
Capítulo
Quinze — A Final do Campeonato de Quadribol
Capítulo
Dezesseis — A Predição da Profª. Trelawney
Capítulo
Dezessete — Gato, Rato e Cão
Capítulo
Dezoito — Aluado, Rabicho, Almofadinhas e Pontas
Capítulo
Dezenove — O Servo de Lord Voldemort
Capítulo
Vinte — O Beijo do Dementador
Capítulo
Vinte e Um — O Segredo de Hermione
Capítulo
Vinte e Dois — Novo Correio-Coruja
CAPÍTULO
UM
O
Correio-Coruja
Harry
Potter era um menino bastante fora do comum em muitas coisas. Para começar, ele
detestava as férias de verão mais do que qualquer outra época do ano. Depois,
ele realmente queria fazer seus deveres de casa, mas era obrigado a fazê-los
escondido, na calada da noite. E, além de tudo, também era bruxo.
Era
quase meia-noite e Harry estava deitado de bruços na cama, as cobertas puxadas
por cima da cabeça como uma barraca, uma lanterna em uma das mãos e um grande
livro encadernado em couro (História da Magia de Batilda Bagshot), aberto e
apoiado no travesseiro. Harry correu a ponta da caneta de pena de águia pela
página, franzindo a testa, à procura de alguma coisa que o ajudasse a escrever
sua redação, "A queima de bruxas no século XIV foi totalmente
despropositada — discuta".
A
caneta pousou no alto de um parágrafo que pareceu a Harry promissor. Ele
empurrou os óculos redondos para a ponta do nariz, aproximou a lanterna do
livro e leu:
Os que não são bruxos (mais comumente
conhecidos pelo nome de (trouxas) tinham muito medo da magia na época Medieval,
mas não tinham muita capacidade para reconhecê-la. Nas raras ocasiões
em que apanhavam um bruxo ou uma bruxa de verdade, a sentença de
queimá-los na fogueira não produzia o menor efeito. O bruxo,
ou bruxa, executava um Feitiço para Congelar Chamas e depois fingia
gritar de dor, enquanto sentia uma cocegazinha suave e prazerosa. De
fato, Wendelin a Esquisita gostava tanto de ser queimada na fogueira
que se deixou apanhar nada menos que quarenta e sete vezes, sob
vários disfarces.
Harry
prendeu a caneta entre os dentes e passou a mão embaixo do travesseiro à
procura do tinteiro e de um rolo de pergaminho.
Devagar
e com muito cuidado, retirou a tampa do tinteiro, molhou a pena e começou
a escrever, parando de vez em quando para escutar, porque se algum dos
Dursley, a caminho do banheiro, ouvisse sua pena arranhando o
pergaminho, ele provavelmente ia acabar trancafiado no armário embaixo da
escada pelo resto do verão.
A
família Dursley, que morava na Rua dos Alfeneiros, 4, era o motivo pelo
qual Harry jamais aproveitava as férias de verão. Tio Válter, tia Petúnia
e o filho deles, Duda, eram os únicos parentes vivos de Harry. Eram
trouxas e tinham uma atitude muito medieval com relação à magia. Os
pais de Harry, já falecidos, que tinham sido bruxos, nunca eram
mencionados sob o teto dos Dursley. Durante anos, tia Petúnia e tio Válter
tinham alimentado esperanças de que, se oprimissem Harry o
máximo possível, seriam capazes de acabar com a magia que houvesse nele.
Para sua fúria, tinham fracassado. Agora, viviam aterrorizados que
alguém pudesse descobrir que Harry passara a maior parte dos últimos
dois anos na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. O máximo que podiam
fazer, porém, era trancar os livros de feitiços, a varinha, o
caldeirão e a vassoura de Harry no início das férias de verão e proibir
que o menino falasse com os vizinhos.
A
separação dos seus livros de feitiços tinha sido um verdadeiro problema
para Harry, porque os professores em Hogwarts tinham passado muitos
deveres para as férias. Uma redação, particularmente espinhosa, sobre
poções redutoras fora pedida pelo professor de quem Harry menos gostava, o
Profº. Snape, que ficaria encantado de ter uma desculpa para
castigá-lo com um mês de detenção. Por isso Harry tinha aproveitado uma
oportunidade que surgira na primeira semana de férias. Quando
tio Válter, tia Petúnia e Duda foram ao jardim admirar o novo carro da companhia
a serviço do tio Válter (em altas vozes para que toda a rua o visse),
Harry desceu silenciosamente as escadas, arrombou a fechadura do armário
sob a escada, apanhou alguns livros e os escondeu em seu quarto. Desde que
não deixasse manchas de tinta nos lençóis os Dursley não
precisariam saber que ele estava estudando magia à noite.
Harry
tomava muito cuidado para evitar problemas com seus tios no momento, pois
eles já estavam bastante mal-humorados com o sobrinho, só porque o menino
recebera um telefonema de de um coleguinha bruxo uma semana depois de
entrar em férias.
Rony
Weasley, que era um dos melhores amigos de Harry em Hogwarts, descendia de
uma família em que todos eram bruxos.
Isto
significava que ele sabia um montão de coisas que Harry desconhecia, mas
Rony jamais usara um telefone antes. E, por azar, fora o tio Válter que
atendera a ligação.
—
Válter Dursley.
Harry
que, por acaso, se achava na sala àquela hora, gelou ao ouvir a voz do
amigo responder.
—
ALÔ! ALÔ! ESTÁ ME OUVINDO? QUERIA... FALAR COM... O... HARRY... POTTER!
Rony
gritou com tanta força que tio Válter deu um salto e afastou o fone a mais
de um palmo da orelha com uma expressão em que se misturavam a fúria e o
susto.
—
QUEM É QUE ESTÁ FALANDO? — berrou ele em direção ao bocal. — QUEM É VOCÉ?
—
RONY... WEASLEY! — berrou Rony em resposta, como se ele e tio Válter
estivessem falando de extremidades opostas de um campo de futebol.
—
SOU... UM AMIGO... DE... HARRY... DA ESCOLA...
Os
olhinhos de tio Válter se viraram para Harry, que estava pregado no chão.
—
NÃO TEM NENHUM HARRY POTTER AQUI! — vociferou ele, agora segurando o fone
com o braço esticado, como se receasse que o aparelho pudesse explodir. —
NÃO SEI DE QUE ESCOLA VOCÊ ESTÁ FALANDO! NUNCA MAIS TORNE A LIGAR PARA CÁ!
FIQUE LONGE DA MINHA FAMÍLIA!
E
atirou o fone no gancho como se estivesse se livrando de uma aranha
venenosa.
A
briga que se seguiu foi uma das piores da vida de Harry.
—
COMO É QUE VOCÊ SE ATREVE A DAR ESTE NÚMERO PARA GENTE COMO... GENTE COMO
VOCÊ! — berrara tio Válter, salpicando Harry de cuspe.
Rony
obviamente percebera que metera Harry em uma encrenca, porque não
telefonou mais. A outra grande amiga de Harry em Hogwarts, Hermione
Granger, tampouco o procurara. O menino suspeitava que Rony tinha avisado
à amiga para não telefonar, o que era uma pena, porque Hermione, a bruxa
mais inteligente da turma deles, tinha pais trouxas, sabia usar o
telefone perfeitamente bem e provavelmente teria o bom senso de não dizer
que freqüentava Hogwarts.
Com
isso, Harry não ouvira uma única palavra de nenhum dos seus amigos de
bruxaria durante cinco longas semanas, e este verão estava saindo quase
tão ruim quanto o anterior. Havia apenas uma coisinha que melhorara —
depois de jurar que não iria usar sua coruja para remeter cartas aos
amigos, Harry tivera permissão de soltar Edwiges, à noite. Tio Válter
concordara com isso diante da barulheira que o bicho aprontava quando
ficava preso na gaiola o tempo todo.
Harry
terminou de escrever sobre Wendelin a Esquisita e parou mais uma vez para
escutar. O silêncio da casa às escuras só era interrompido pelos
roncos sonoros e distantes do seu enorme primo, Duda.
Deve
ser muito tarde, pensou Harry. Seus olhos comichavam de cansaço. Talvez
terminasse a redação na noite seguinte...
Ele
repôs a tampa do tinteiro; puxou uma fronha velha debaixo da cama; guardou
dentro a lanterna, a História da magia, a redação, a caneta e a tinta;
Levantou-se da cama e escondeu tudo sob uma tábua solta do soalho debaixo
da cama.
Em seguida, pôs-se em pé, esticou-se e verificou a hora no
despertador luminoso sobre a mesa-de-cabeceira.
Era
uma hora da manhã. Harry sentiu uma contração engraçada na barriga. Fizera
treze anos de idade havia uma hora e não tinha se dado conta disso.
Mas
outra coisa fora do comum em Harry é que ele não ligava nem um pouco para
os seus aniversários. Nunca recebera um cartão de aniversário na vida. Os
Dursley não tinham dado a mínima atenção aos dois últimos e ele não tinha
razão alguma para supor que fossem se lembrar deste agora.
Harry
atravessou o quarto escuro, passou pela espaçosa gaiola vazia de Edwiges e
foi abrir a janela. Debruçou-se no peitoril, achando gostoso o ar
fresco da noite que batia em seu rosto depois de ter passado tanto tempo
debaixo das cobertas. Fazia duas noites que Edwiges andava fora. Mas Harry
não estava preocupado — a coruja já ficara fora tanto tempo assim
antes. Mas o garoto desejou que ela voltasse logo —, era a única criatura
na casa que não se esquivava quando o via.
Harry,
embora continuasse pequeno e magricela para sua idade, crescera alguns
centímetros desde o ano anterior. Seus cabelos muito pretos, porém,
continuavam como sempre tinham sido — teimosamente despenteados, por mais
que ele fizesse. Os olhos por trás das lentes eram verde vivo, e na testa
havia, claramente visível através dos cabelos, uma cicatriz fina, em forma
de raio.
De
todas as coisas fora do comum em Harry, essa cicatriz era a mais
extraordinária de todas. Não era, como tinham fingido os Dursley durante dez
anos, uma lembrança do acidente de carro que matara seus pais, porque
Lílian e Tiago Potter não tinham morrido em um acidente de carro. Tinham
sido assassinados, assassinados pelo bruxo das trevas mais temido do
mundo nos últimos cem anos, Lord Voldemort. Harry escapara desse mesmo atentado
com uma simples cicatriz na testa, no lugar em que o feitiço do
bruxo, em vez de matá-lo, tinha se voltado contra o próprio feiticeiro.
Quase morto, Voldemort fugira...
Mas
Harry voltara a defrontar com ele outra vez em Hogwarts. Ao se
recordar do último encontro, ali parado à janela escura, Harry teve
de admitir que era uma sorte ter chegado ao seu décimo terceiro
aniversário vivo.
Examinou
o céu estrelado à procura de um sinal de Edwiges, voando ao seu encontro
talvez com um rato morto pendurado no bico, contando receber elogios.
Mas ao olhar distraidamente por cima dos telhados, Harry demorou
alguns segundos para perceber o que estava vendo.
Recortado
contra a lua dourada, e sempre crescendo, vinha um bicho estranhamente
torto voando em sua direção. Harry ficou muito quieto esperando o
bicho descer. Por uma fração de segundo ele hesitou, a mão no trinco da
janela, pensando se devia fechá-la. Mas, nessa hora o bicho esquisito
sobrevoou um lampião da Rua dos Alfeneiros e Harry identificando o que era,
saltou para o lado.
Pela
janela entraram três corujas, duas delas segurando uma terceira que
parecia desmaiada. Pousaram com um ruído fofo na cama do menino e a coruja
do meio, que era grande e cinzenta, tombou para o lado, imóvel. Trazia um
grande pacote amarrado às pernas.
Harry
reconheceu a coruja desmaiada na mesma hora — seu nome era Errol e
pertencia à família Weasley. O menino correu para a cama, desamarrou os
barbantes que envolviam as pernas de Errol, soltou o pacote e, em seguida,
levou a coruja para a gaiola de Edwiges. Errol abriu um olho lacrimejante,
deu um pio fraquinho de agradecimento e desatou a beber água em
grandes sorvos.
Harry
se virou para as corujas restantes. Uma delas, a fêmea grande, branca como
a neve, era a sua Edwiges. Ela também trazia um pacote e parecia muito
satisfeita consigo mesma. Deu uma bicadinha carinhosa em Harry quando ele
soltou sua carga, depois saiu voando pelo quarto para se juntar a Errol.
Harry
não reconheceu a terceira coruja, um belo espécime pardo, mas soube
imediatamente de onde viera, porque além de trazer o terceiro pacote, ela
trazia uma carta com o escudo de Hogwarts.
Quando Harry
acabou de aliviá-la de sua carga, ela sacudiu as penas, cheia de si, abriu
as asas e saiu voando pelo céu noturno.
O
menino sentou-se na cama e apanhou o pacote de Errol, rasgou o papel pardo
e encontrou um presente embrulhado em ouro, primeiro cartão de
aniversário de sua vida. Com os dedos trêmulos, ele abriu o envelope.
Caíram dois papéis — uma carta e um recorte de jornal.
O
recorte fora visivelmente tirado do jornal dos bruxos, o Profeta Diário,
porque as pessoas nas fotos em preto e branco estavam se mexendo. Harry
apanhou o recorte, alisou-o e leu.
FUNCIONÁRIO DO MINISTÉRIO DA
MAGIA
GANHA GRANDE PRÉMIO
Arthur Weasley chefe da Seção de
Controle do Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas no Ministério da Magia,
ganhou o Grande Prêmio Anual da Loteria do Profeta Diário.
A Sra. Weasley, encantada, declarou ao
Profeta Diário:
"Vamos gastar o ouro em uma
viagem de férias ao Egito, onde nosso filho mais velho, Gui, trabalha para
o Banco Gringotes como desfazedor de feitiços.”
A família Weasley vai passar um mês no
Egito, de onde voltará no início do ano letivo em Hogwarts, escola
que cinco dos seus filhos ainda freqüentam.
Harry
examinou a foto em movimento, e um sorriso espalhou-se em seu rosto ao ver
os nove Weasley acenando freneticamente para ele, diante de uma enorme
pirâmide. A Sra. Weasley, pequena e gorducha, o Sr. Weasley, alto e um
pouco careca, os seis filhos e filha, todos (embora a foto em preto e
branco não mostrasse com flamejantes cabelos vermelhos). Bem no meio da
foto se achava Rony, alto e desengonçado com o seu rato de
estimação, Perebas, no ombro e o braço passado pelas costas da irmã, Gina.
Harry não conseguia pensar em ninguém que merecesse mais ganhar um
monte de ouro do que os Weasley, que eram gente muito fina e extremamente
pobre. Ele apanhou a carta de Rony e a desdobrou.
Caro Harry,
Feliz aniversário!
Olhe, estou muito arrependido daquele
telefonema. Espero que os trouxas não tenham engrossado com você.
Perguntei ao papai e ele acha que eu não devia ter gritado.
O Egito é incrível. Gui nos levou para
ver os túmulos e você não ia acreditar nos feitiços que os velhos
bruxos egípcios lançavam neles. Mamãe não quis deixar a Gina ver o
último. Só continha esqueletos mutantes de trouxas que violaram o túmulo e
acabaram com duas cabeças e outras esquisitices.
Nem consegui acreditar quando o papai
ganhou a Loteria do Profeta Diário. Setecentos galeões! A maior parte foi
gasta nesta viagem, mas eles vão me comprar uma varinha nova para o
próximo ano letivo.
Harry
lembrava-se bem demais do dia em que a velha varinha de Rony se partira.
Acontecera quando o carro em que os dois voaram para Hogwarts batera de
encontro a uma árvore nos jardins da escola.
Estaremos de volta uma semana antes do
ano letivo começar e vamos a Londres comprar minha varinha e os livros da
escola.
Alguma chance de nos encontrarmos lá?
Não deixe os trouxas arrasarem você!
Faça uma força para ir a
Londres, Rony.
P.S. Percy agora é
monitor-chefe. Recebeu a carta de nomeação na semana passada.
Harry
tornou a admirar a foto. Percy, que estava no sétimo e último ano em
Hogwarts, parecia muito cheio de si. Prendera o distintivo de monitor
chefe no fez que usava num ângulo elegante sobre os cabelos bem
penteados, seus óculos de aros de tartaruga faiscavam ao sol do Egito.
Harry
voltou então sua atenção para o presente e o desembrulhou.
Dentro
havia um objeto que parecia um pequenino pião de vidro. Debaixo, mais um
bilhete de Rony.
Harry — Isto é um
"bisbilhoscópio" de bolso. Dizem que quando tem alguma coisa
suspeita por perto, ele acende e gira.
Gui falou que é porcaria que vendem a
bruxos turistas e que não é confiável porque ontem, durante o jantar, ficou acendendo
o tempo todo. Mas ele não percebeu que Fred e Jorge tinham posto besouros
na sopa dele.
Tchau,
Rony.
Harry
pôs o bisbilhoscópio em cima da mesa-de-cabeceira, onde o pião ficou
parado, equilibrado sobre a ponta, refletindo os ponteiros luminosos
do despertador. O menino admirou-o feliz por alguns segundos, então
apanhou o pacote que Edwiges lhe trouxera.
Dentro
deste também havia um presente embrulhado, um cartão e uma carta, desta
vez de Hermione.
Caro Harry,
Rony me escreveu contando o telefonema
que deu para o seu tio Válter. Espero que você esteja bem.
Estou de férias na França neste
momento e não sabia como ia mandar o meu presente para você — e se eles
abrissem o pacote na alfândega?—, mas então a Edwiges apareceu! Acho
que ela queria garantir que você recebesse alguma coisa no seu
aniversário, para variar comprei o seu presente pelo reembolso coruja; vi um
anúncio no Profeta Diário (mandei entregar o jornal no meu endereço de
férias; é tão bom continuar em dia com o que está acontecendo no mundo dos
bruxos).
Você viu a foto de Rony com a
família que saiu no jornal na semana passada? Aposto que ele está
aprendendo um monte de coisas. Estou com inveja — os bruxos do
Egito antigo são fascinantes.
Aqui também tem histórias de bruxaria
locais interessantes.
Reescrevi todo o meu trabalho de
História da Magia para incluir algumas coisas que descobri.
Espero que não fique grande
demais — são dois rolos de pergaminho a mais do que o Profº. Binns pediu.
Rony diz que vai a Londres na última semana de férias. Você também
vai poder ir? Será que sua tia e seu tio vão deixar? Espero realmente que
possa. Se não, a gente se vê no Expresso de Hogwarts no dia 1º de
setembro!
Afetuosamente,
Hermione.
P.S. Rony contou que Percy virou
monitor-chefe. Aposto como ele está realmente satisfeito. Quem não
parece ter gostado é o Rony.
Harry
deu risadas enquanto punha a carta de Hermione de lado e apanhava
o presente. Era muito pesado. Conhecendo a amiga, ele teve certeza de que
seria um livrão cheio de feitiços complicados, mas não era. Seu
coração deu um enorme salto quando ele rasgou o papel de embrulho e
viu um belo estojo de couro preto, com dizeres em letras prateadas: Estojo
para manutenção de vassouras.
—
Uau, Hermione! — exclamou Harry baixinho, abrindo o estojo para ver
dentro.
Havia
um frasco grande de líquido para polir cabos, uma tesoura prateada e
reluzente para aparar cerdas, uma pequena bússola para prender na vassoura
em viagens longas e um manual “Faça a manutenção da sua vassoura”.
À
exceção dos amigos, o que Harry mais sentia falta de Hogwarts era o
Quadribol, o esporte mais popular do mundo mágico —
extremamente arriscado, muito excitante, que se jogava montado em uma
vassoura. Harry, por acaso, era um ótimo jogador de Quadribol: fora o
menino mais novo do século a ser escolhido para um time da casa em Hogwarts. Uma das
coisas que Harry mais prezava na vida era sua vassoura de corrida, uma
Nimbus 2000.
Harry
pôs o estojo de couro de lado e apanhou o último embrulho.
Reconheceu
os garranchos no papel pardo do embrulho na mesma hora: eram de Hagrid, o
guarda-caça de Hogwarts. Ele rasgou o papel de embrulho externo e viu um
pedacinho de alguma coisa em couro verde, mas antes que conseguisse
desfazê-lo direito, o embrulho estremeceu de um modo estranho e o que
havia dentro se fechou com um estalo — como se a coisa tivesse mandíbulas.
Harry
congelou. Sabia que Hagrid jamais lhe mandaria uma coisa perigosa de
propósito, mas, por outro lado, seu amigo não tinha a visão de uma pessoa
normal sobre o que era perigoso. Todos sabiam que Hagrid já fizera amizade
com aranhas gigantescas, mas nocivas, com cães de três cabeças dados
por gente que ele encontrara em bares, e contrabandeara ovos de
dragão, um bicho ilegal, para dentro da cabana em que morava.
Harry
cutucou o embrulho, nervoso. A coisa tornou a se fechar com ruído, O
garoto apanhou o abajur na mesa-de-cabeceira, agarrou-o com firmeza com
uma das mãos e ergueu-o acima da própria cabeça, pronto para desferir
uma pancada. Então agarrou o resto do papel de embrulho com a outra mão
e puxou.
E
a coisa caiu — um livro. Harry só teve tempo de reparar na bela capa,
adornada com um título dourado, “O Livro Monstruoso dos Monstros”, antes
do livro virar de lombada e começar a correr pela cama como um caranguejo
esquisito.
—
Ah, ah — gemeu Harry.
O
livro caiu da cama com um barulho metálico e arrastou-se rápido pelo
quarto. O menino o seguiu furtivamente. O livro foi se esconder no espaço
escuro embaixo da escrivaninha. Rezando para os Dursley não terem
acordado, Harry ficou de quatro e tentou apanhá-lo.
—
Ai!
O
livro se fechou sobre sua mão e se afastou do menino se sacudindo e
andando adernado sobre as capas.
Harry
saiu correndo, ainda agachado, e se atirou para frente conseguindo achatar
o livro. Tio Válter soltou um grunhido sonolento e alto no quarto ao lado.
Edwiges
e Errol observaram com interesse quando Harry abraçou com força o livro
que se debatia, correu até a cômoda e pegou um cinto, com que o amarrou
firmemente.
O
livro monstruoso estremeceu de raiva, mas não conseguiu mais se agitar e
morder, então Harry atirou-o na cama e apanhou o cartão de Hagrid.
Caro Harry,
Feliz aniversário.
Achei que isto pudesse lhe ser útil no
ano que vem.
Não vou dizer mais nada aqui. Conto
quando a gente se encontrar.
Espero que os trouxas estejam tratando
você bem.
Tudo de bom,
Hagrid.
Pareceu
a Harry um mau agouro que Hagrid pudesse achar que um livro que morde
tivesse utilidade futura, mas pôs o cartão do amigo ao lado do de Rony e
Hermione, sorrindo mais satisfeito do que nunca. Agora só sobrava a carta
de Hogwarts.
Reparando
que era bem mais grossa do que de costume, Harry abriu o envelope, puxou a
primeira página do pergaminho de dentro e leu:
Prezado Sr. Potter,
Queira registrar que o novo ano letivo
começará em 1º de setembro. O Expresso de Hogwarts partirá da estação de
King's Cross, plataforma 9 e ½, às onze horas.
Os alunos de terceiro ano têm
permissão para visitar a aldeia de Hogsmeade em determinados fins de
semana. Assim, queira entregar a autorização anexa ao seu pai ou
guardião para que a assine.
Estamos anexando, nesta oportunidade,
a lista de livros para o próximo ano.
Atenciosamente,
Profª. McGonagall
Vice-Diretora.
Harry
tirou do envelope o formulário de autorização para ir a Hogsmeade e leu-o,
mas já não sorria. Seria maravilhoso visitar Hogsmeade nos fins de semana;
ele sabia que era um povoado só de bruxos, em que nunca estivera. Mas como
é que ia convencer o tio Válter ou a tia Petúnia a assinar o formulário?
Ele
olhou para o despertador. Eram agora duas horas da manhã.
Decidindo
que se preocuparia com o formulário de Hogsmeade quando acordasse, Harry
voltou para a cama e se esticou para riscar mais um dia no
calendário que fizera para contar o tempo que faltava para regressar a
Hogwarts.
Tirou
então os óculos e se deitou, de olhos abertos, de frente para os três
cartões de aniversário.
Mesmo
sendo muito fora do comum, naquele momento Harry Potter se sentiu como
todo mundo: feliz, pela primeira vez na vida, porque era o dia do seu
aniversário.
CAPÍTULO
DOIS
O
grande erro de tia Guida
Harry
desceu para o café na manhã seguinte e já encontrou os três
Dursley sentados à mesa. Estavam assistindo a uma televisão novinha em
folha, um presente de boas-vindas para as férias de verão em casa de
Duda, que andara se queixando, em várias vozes, sobre a grande distância
entre a geladeira e a televisão da sala. Duda passara a maior parte
do verão na cozinha, seus miúdos olhinhos de porco fixos na telinha e sua
papada em cinco camadas balançando enquanto ele comia sem parar.
Harry
sentou-se entre Duda e tio Válter, um homem grande e socado, com pescoço
de menos e bigodes de mais. Longe de desejarem a Harry um feliz
aniversário, os Dursley não deram qualquer sinal de que tinham reparado em
sua entrada na cozinha, mas o menino estava mais do que acostumado com
isso para se importar. Serviu-se de uma fatia de torrada e em seguida
olhou para o repórter na televisão, que já ia adiantado na transmissão de
uma notícia sobre um fugitivo da prisão.
“Alertamos
os nossos telespectadores de que Black está armado e é extremamente
perigoso. Se alguém o avistar deverá ligar para o número do plantão de
emergência imediatamente.”
—
Nem precisa dizer quem ele é — riu-se tio Válter, espiando o prisioneiro
por cima do jornal. — Olhem só o estado dele, a imundice do desleixado!
Olhem o cabelo dele!
E
lançou um olhar de esguelha, maldoso, para Harry, cujos
cabelos despenteados sempre tinham sido uma fonte de grande aborrecimento
para o tio. Comparado ao homem da televisão, porém, cujo rosto ossudo
era emoldurado por um emaranhado que lhe chegava aos cotovelos, Harry se
sentiu, na verdade, muito bem penteado.
O
repórter reaparecera.
"O
Ministério da Agricultura e da Pesca irá anunciar hoje...”
—
Espere aí! — berrou tio Válter, olhando furioso para o repórter, — Você
não disse de onde esse maníaco fugiu! De que adiantou o alerta? O
louco pode estar passando na minha rua neste exato momento!
Tia
Petúnia, que era ossuda e tinha cara de cavalo, virou-se depressa e espiou
com atenção pela janela da cozinha. Harry sabia que a tia simplesmente
adoraria poder ligar para o telefone do plantão de emergência. Era a
mulher mais bisbilhoteira do mundo e passava a maior parte da vida
espionando os vizinhos sem graça, que nunca faziam nada errado.
—
Quando é que eles vão aprender — exclamou tio Válter, batendo na mesa com
o punho grande e arroxeado — que a forca é a única solução para gente
assim?
—
É verdade — concordou tia Petúnia, que ainda procurava ver alguma coisa
por entre a trepadeira do vizinho.
Tio
Válter terminou de beber a xícara de chá, deu uma olhada no relógio de
pulso e acrescentou:
—
É melhor eu ir andando, Petúnia. O trem de Guida chega às dez.
Harry,
cujos pensamentos andavam no andar de cima com o Estojo para Manutenção de
Vassouras, foi trazido de volta à terra com um tranco desagradável.
—
Tia Guida? — o garoto deixou escapar. — É... Ela não está vindo para cá,
está?
Tia
Guida era irmã de tio Válter. Embora não fosse um parente consangüíneo de
Harry (cuja mãe fora irmã de tia Petúnia), a vida inteira ele tinha sido
obrigado a chamá-la de "tia". Tia Guida morava no campo, em uma
casa com um grande jardim, onde ela criava buldogues. Raramente se
hospedava na Rua dos Alfeneiros, porque não conseguia suportar a idéia de
se separar dos seus preciosos cachorros, mas cada uma de suas visitas
permanecia horrivelmente nítida na cabeça de Harry.
Na
festa do quinto aniversário de Duda, tia Guida tinha dado umas bengaladas
nas canelas de Harry para impedi-lo de vencer o primo em uma brincadeira.
Alguns anos mais tarde, ela aparecera no Natal trazendo um robô
computadorizado para Duda e uma caixa de biscoitos de cachorro para Harry.
Na última visita, um ano antes do garoto entrar para Hogwarts, ele
pisara sem querer o rabo do cachorro favorito da tia. Estripador
perseguira Harry até o jardim e o acuara em cima de uma árvore, mas
tia Guida se recusara a recolher o cachorro até depois da meia-noite. A
lembrança desse incidente ainda produzia lágrimas de riso nos olhos
de Duda.
—
Guida vai passar uma semana aqui — rosnou tio Válter — e enquanto estamos
nesse assunto — ele apontou um dedo gordo e ameaçador para Harry —
precisamos acertar algumas coisas antes de eu sair para apanhá-la.
Duda
fez ar de riso e desviou o olhar da televisão. Assistir a Harry ser
maltratado pelo pai era sua diversão favorita.
—
Em primeiro lugar — rosnou tio Válter —, você vai falar com bons modos
quando se dirigir a Guida.
—
Tudo bem — disse Harry com amargura —, se ela fizer o mesmo quando se
dirigir a mim.
—
Em segundo lugar — continuou o tio, fingindo não ter ouvido a resposta de
Harry —, como Guida não sabe nada da sua anormalidade, não quero
nenhuma... Nenhuma gracinha enquanto ela estiver aqui. Você vai se comportar,
está me entendendo?
—
Eu me comporto se ela se comportar — retrucou Harry entre dentes.
—
E em terceiro lugar — disse tio Válter, seus olhinhos maldosos agora
simples fendas na enorme cara púrpura — dissemos a Guida que você
freqüenta o Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis.
—
Quê?— berrou Harry.
—
E você vai sustentar essa história, moleque, ou vai se dar mal — cuspiu
tio Válter.
Harry
ficou sentado ali, o rosto branco e furioso, encarando o tio Válter, sem
conseguir acreditar no que ouvia. Tia Guida vinha fazer uma visita de
uma semana — era o pior presente de aniversário que os Dursley já tinham
lhe dado, incluindo nessa conta o par de meias velhas do tio.
—
Bom, Petúnia — disse tio Válter, levantando-se com esforço —, vou indo
para a estação, então. Quer me acompanhar para dar um passeio, Dudoca?
—
Não — respondeu o menino, cuja atenção se voltara para a televisão agora
que o pai acabara de ameaçar Harry.
—
O Dudinha tem que ficar elegante para receber a titia — disse tia Petúnia,
alisando os cabelos louros e espessos do filho. — Mamãe comprou para ele
uma linda gravata-borboleta.
Tio
Válter deu uma palmadinha no ombrão de porco de Duda.
—
Vejo vocês daqui a pouco, então — disse ele, e saiu da cozinha.
Harry
que estivera sentado numa espécie de transe de horror, teve uma idéia
repentina. Abandonando a torrada, ele se levantou depressa e acompanhou o
tio até a saída.
Tio
Válter estava vestindo o paletó que usava no carro.
—
Eu não vou levar você — rosnou ele ao se virar e ver Harry observando-o.
—
Como se eu quisesse ir — disse Harry friamente. — Quero lhe perguntar uma
coisa.
O
tio mirou-o desconfiado.
—
Os alunos do terceiro ano em
Hog... Na minha escola às vezes têm permissão para
visitar o povoado próximo — disse Harry.
—
E daí? — retrucou o tio, tirando as chaves do carro de um gancho próximo à
porta.
—
Preciso que o senhor assine o formulário de autorização — disse Harry
depressa.
—
E por que eu iria fazer isso? — falou o tio com desdém.
—
Bom — respondeu Harry, escolhendo cuidadosamente as palavras — vai ser
duro fingir para tia Guida que eu freqüento o Saint não sei das quantas...
E Harry ficou satisfeito de ouvir uma inconfundível nota de pânico em sua
voz.
—
Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis! — berrou.
—
Exatamente — disse Harry, encarando com toda a calma o rosto púrpura do
tio. — É muita coisa para eu me lembrar. Tenho que parecer
convincente, não é mesmo? E se eu, sem querer, deixar escapar alguma
coisa?
—
Vou fazer picadinho de você, não é mesmo? — rugiu o tio, avançando para o
sobrinho com o punho levantado. Mas Harry agüentou firme.
—
Fazer picadinho de mim não vai ajudar tia Guida a esquecer o que eu
poderia contar a ela — disse em tom de ameaça.
Tio
Válter parou, o punho ainda levantado, a cara de uma feia cor
marrom-arroxeada.
—
Mas se o senhor assinar o meu formulário de autorização — apressou- se
Harry a acrescentar —, juro que vou me lembrar da escola que o senhor diz
que freqüento, e vou me comportar como um trou... Como se fosse normal e
todo o resto.
Harry
percebeu que o tio estava considerando a proposta, mesmo que seus dentes
estivessem arreganhados e uma veia latejasse em sua têmpora.
—
Certo — disse por fim, bruscamente. — Vou vigiar o seu comportamento muito
de perto durante a visita de Guida. Se, quando terminar, você tiver andado
na linha e sustentado a história, eu assino a droga do formulário.
E,
dando meia-volta, abriu a porta e bateu-a com tanta força que uma das
vidraças no alto se soltou.
Harry
não voltou à cozinha. Subiu as escadas e foi para o quarto.
Se
ia se comportar como um trouxa de verdade, era melhor começar já.
Devagar
e com tristeza, reuniu seus presentes e cartões de aniversário e
escondeu-os debaixo da tábua solta do soalho com os deveres de casa.
Depois, foi até a gaiola de Edwiges. Errol parecia ter-se recuperado; ele
e Edwiges estavam dormindo, com a cabeça enfiada embaixo da asa. Harry
suspirou e cutucou as corujas; para acordá-las.
—
Edwiges — disse deprimido —, você vai ter que dar o fora por uma semana.
Vá com Errol. Rony cuidará de você. Vou escrever um bilhete para ele
explicando.
E
não me olhe assim — os grandes olhos âmbar de Edwiges se encheram
de censura —, não é minha culpa. É o único jeito que tenho de conseguir
uma autorização para visitar Hogsmeade com Rony e Hermione.
Dez
minutos depois, Errol e Edwiges (que levava um bilhete para Rony amarrado
na perna) saíram voando pela janela e desapareceram de vista. Harry, agora
se sentindo completamente infeliz, guardou a gaiola vazia dentro do
armário.
Mas
não teve muito tempo para se entristecer. Não demorou quase nada e tia
Petúnia já estava gritando lá embaixo para Harry descer e se preparar para
dar as boas-vindas à hóspede.
—
Faça alguma coisa com o seu cabelo! — disse tia Petúnia bruscamente quando
o sobrinho chegou embaixo.
Harry
não via sentido em tentar fazer seu cabelo ficar penteado.
Tia Guida
adorava criticá-lo, por isso, quanto mais desarrumado, mais satisfeita ela
iria ficar.
Demasiado
cedo, ouviu-se um ruído de pneu triturando areia quando o carro de tio
Válter entrou de marcha a ré pelo caminho da garagem, depois,
batidas de portas e passos no jardim.
—
Atenda a porta! — sibilou tia Petúnia para Harry.
Com
uma sensação de grande tristeza e depressão na boca do estômago, Harry
abriu a porta.
Na
soleira encontrava-se tia Guida. Era muito parecida com o tio Válter;
corpulenta, alta, socada, a cara púrpura, tinha até bigode, embora não tão
peludo quanto o do irmão. Em uma das mãos ela trazia uma enorme mala,
e, aninhado sob a outra, um buldogue velho e mal-humorado.
—
Onde está o meu Dudoca? — bradou tia Guida. — Onde está o meu sobrinho
fofo?
Duda
veio gingando em direção ao hall, os cabelos louros emplastrados na cabeça
gorda, uma gravata-borboleta quase invisível sob a papada quíntupla.
Tia Guida largou a mala na barriga de Harry, deixando-o sem ar,
agarrou Duda num abraço apertado com o braço livre e plantou-lhe uma
beijoca na bochecha.
Harry
sabia perfeitamente bem que Duda só agüentava os abraços da tia porque era
bem pago para isso, e não deu outra, quando os dois se separaram, Duda
levava uma nota novinha de vinte libras apertada na mão gorda.
—
Petúnia! — exclamou tia Guida, passando por Harry como se ele fosse um
cabide de chapéus. As duas se beijaram, ou melhor, tia Guida deu uma
queixada na bochecha ossuda de tia Petúnia.
Tio
Válter entrou nesse momento, sorrindo jovialmente e fechou a porta.
—
Chá, Guida? — ofereceu. — E o que é que o Estripador vai tomar?
—
Estripador pode beber um pouco de chá no meu pires —
respondeu tia Guida enquanto seguiam todos para a cozinha, deixando
Harry sozinho no hall com a mala.
Mas
o menino não ia se queixar; qualquer desculpa para ficar longe da tia era
bem-vinda, por isso começou a carregar a pesada mala para o quarto
de hóspedes, demorando o máximo que pôde.
No
momento em que voltou à cozinha, tia Guida já fora servida de chá e bolo
de frutas e Estripador lambia alguma coisa, fazendo muito barulho, a um
canto.
Harry
viu tia Petúnia fazer uma ligeira careta ao ver gotas de chá e
baba pontilharem o seu chão limpo. Ela detestava animais.
—
Quem ficou cuidando dos outros cachorros, Guida? — perguntou tio Válter.
—
Ah, deixei o coronel Fubster tratando deles — ribombou em resposta Guida.
— Ele entrou para a reforma agora e é bom ter alguma coisa para fazer. Mas
não pude deixar o coitado do Estripador, tão velho. Ele fica doente de tristeza quando
viajo.
Estripador
recomeçou a rosnar quando Harry se sentou. Isto atraiu a atenção de tia
Guida para Harry, pela primeira vez.
—
Então! — vociferou ela. — Ainda está por aqui?
—
Estou — respondeu o menino.
—
Não diga "estou" nesse tom ingrato — rosnou tia Guida. — É uma
grande bondade Válter e Petúnia acolherem você. Eu não teria feito o
mesmo. Eu o teria mandado direto para um orfanato se alguém largasse você
na minha porta.
Harry
estava doido para responder que preferia viver em um orfanato do que com
os Dursley, mas a lembrança do formulário de Hogsmeade fez com que se
calasse.
Ele
se esforçou para dar um sorriso constrangido.
—
Não me venha com sorrisinhos! — trovejou tia Guida. — Estou vendo que não
melhorou nada desde a última vez que o vi. Tive esperanças que a escola lhe
desse educação à força, se fosse preciso. — Ela tomou um grande gole de
chá, limpou o bigode e continuou:
—
Aonde mesmo que você o está mandando Válter?
—
St. Brutus — respondeu o tio prontamente. — É uma instituição de primeira
classe para casos irrecuperáveis.
—
Entendo. Eles usam a vara em
St. Brutus ? — vociferou ela do lado oposto da mesa.
Tio
Válter fez um breve aceno de cabeça por trás de tia Guida.
—
Usam — respondeu Harry. Depois, sentindo que devia fazer a coisa
bem-feita, acrescentou: — o tempo todo.
—
Ótimo — aprovou tia Guida. — Eu não aceito essa conversa fiada de não
bater em gente que merece. Uma boa surra de vara resolve noventa e nove
casos em cem. Você
já apanhou muitas vezes?
—
Ah, já — respondeu Harry —, um monte de vezes.
Tia
Guida apertou os olhos.
—
Não gosto do seu tom, moleque. Se você consegue falar das surras que leva
com esse tom displicente, obviamente não estão lhe batendo com a força que
deviam. Petúnia, se eu fosse você escreveria à escola. Deixaria claro que
os tios aprovavam o uso de força extrema no caso desse moleque.
Talvez
tio Válter estivesse preocupado que Harry pudesse esquecer o acordo que
tinham feito; o caso é que ele mudou o assunto bruscamente.
—
Ouviu o noticiário hoje de manhã, Guida? E aquele prisioneiro que fugiu,
hein?
Enquanto
tia Guida começava a se fazer em casa, Harry se surpreendeu pensando quase
com saudade na vida na Rua dos Alfeneiros, nº. 4 sem ela.
Tio
Válter e tia Petúnia em geral encorajavam Harry a ficar fora do caminho
deles, o que o menino fazia com a maior satisfação. Tia Guida, por outro
lado, queria Harry debaixo dos seus olhos o tempo todo, para poder fazer,
com aquele vozeirão, sugestões para melhorá-lo. Adorava comparar Harry
a Duda, e tinha o maior prazer de comprar presentes caros para Duda
enquanto olhava feio para Harry, como se o desafiasse a perguntar por que
não recebera um presente também. Além disso, ela não parava de soltar
piadas de mau gosto sobre as razões de Harry ser uma pessoa tão
deficiente.
—
Você não deve se culpar pelo que os meninos são hoje, Válter —
comentou ela durante o almoço do terceiro dia. — Se existe alguma
coisa podre por dentro, não há nada que ninguém possa fazer.
Harry
tentou se concentrar na comida, mas suas mãos tremiam e seu rosto começou
a arder de raiva. Lembre-se do formulário, disse a si mesmo. “Pense
em Hogsmeade. Não diga nada. Não se levante...”
Tia
Guida esticou a mão para a taça de vinho.
—
Isso é uma das regras básicas da criação, disse ela. — A gente vê isso o
tempo todo com os cachorros. Se tem alguma coisa errada com uma
cadela, vai ter alguma coisa errada com o filhote...
Naquele
momento, a taça de vinho que tia Guida segurava explodiu em sua mão. Cacos
de vidro voaram para todo lado e ela gaguejou e piscou, a caraça vermelha
pingando.
—
Guida! — guinchou tia Petúnia. — Guida, você está bem?
—
Não se preocupe — resmungou tia Guida, enxugando o rosto com o guardanapo.
— Devo ter segurado a taça com muita força. Fiz a mesma coisa na
casa do coronel Fubster no outro dia. Não precisa se preocupar,
Petúnia, tenho a mão pesada...
Mas
tia Petúnia e tio Válter olharam desconfiados para Harry. Por isso o menino
resolveu que era melhor não comer a sobremesa e se retirar da mesa o mais
depressa que pudesse.
No
corredor, apoiou-sena parede e respirou profundamente. Fazia muito tempo
desde a última vez que se descontrolara e fizera uma coisa explodir. Não
podia deixar que isso acontecesse de novo, O formulário de Hogsmeade não
era a única coisa em jogo — se ele continuasse a agir assim, ia se
encrencar com o Ministério da Magia.
Harry
ainda era um bruxo menor de idade, portanto, pela lei dos bruxos, ele era
proibido de fazer mágica fora da escola. A ficha dele não era muito limpa.
Ainda no verão anterior recebera uma carta oficial em que o avisavam muito claramente
que se o Ministério tomasse conhecimento de qualquer magia ocorrida na Rua
dos Alfeneiros, ele seria expulso de Hogwarts.
Harry
ouviu os Dursley se levantarem da mesa e correu escada acima para sair do
caminho.
Harry
conseguiu sobreviver os três dias seguintes forçando-se a pensar no manual
de Faça a Manutenção da sua Vassoura sempre que tia Guida implicava com
ele. A coisa funcionou muito bem, embora seu olhar parecesse vidrado,
porque tia Guida começou a ventilar a opinião de que ele era mentalmente
deficiente.
Finalmente,
um finalmente muito demorado, chegou a última noite da estada de
tia Guida. Tia Petúnia preparou um jantar caprichado e tio Válter
abriu várias garrafas de vinho. Eles conseguiram terminar a sopa e o
salmão sem mencionar nem uma vez os defeitos de Harry; quando comiam a
torta merengue de limão, tio Válter deu um cansaço em todo mundo
com uma longa conversa sobre Crunnings, sua empresa de brocas; depois tia
Petúnia preparou o café e o marido apanhou uma garrafa de conhaque.
—
Posso lhe oferecer essa tentação, Guida?
Tia
Guida já bebera muito vinho. Sua cara enorme estava muito vermelha.
—
Só um pouquinho, então — disse ela rindo. — Um pouquinho mais... Mais...
Aí, perfeito.
Duda
estava comendo o quarto pedaço de torta. Tia Petúnia bebericava café com o
dedo mindinho esticado. Harry realmente queria desaparecer e ir para o
quarto, mas deparou com os olhinhos zangados do tio Válter e viu que teria
de agüentar até o fim.
—
Aah — exclamou tia Guida, estalando os lábios e pousando o cálice de
conhaque. — Um senhor jantar, Petúnia. Normalmente só como uma coisinha
rápida à noite, com uma dúzia de cachorros para cuidar.. — Ela soltou um
gostoso arroto e deu umas palmadinhas na grande barriga coberta de
tweed. — Me desculpem. Mas gosto de ver um menino de tamanho saudável
— continuou ela, dando uma piscadela para Duda. — Você vai ter tamanho de
homem, Dudoca, como seu pai. Sim, senhor, acho que vou querer mais um
pouquinho de conhaque, Válter... Agora esse outro ai...
Ela
virou a cabeça para indicar Harry que sentiu um aperto no estômago. O
manual pensou depressa.
—
Esse aí tem um jeito ruim e mirrado. A gente vê isso nos cachorros. Pedi
ao coronel Fubster para afogar um no ano passado. Era um ratinho. Fraco.
Subnutrido.
Harry
tentou se lembrar da página doze do seu livro Feitiço para Reverter
Feitiços Persistentes.
—
A coisa toda está ligada ao sangue, como eu ia dizendo ainda outro dia. O
sangue ruim acaba aflorando. Mas, não estou dizendo nada contra a sua
família, Petúnia — ela deu umas pancadinhas na mão ossuda da cunhada com
sua mão que mais parecia uma pá —, mas sua irmã não era flor que se
cheirasse. Isso acontece nas melhores famílias. Depois, fugiu com aquele
imprestável e aí está o resultado bem diante dos olhos da gente.
Harry
olhava fixamente para o próprio prato, sentindo uma zoeira engraçada nos
ouvidos. “Segure sua vassoura pela cauda com firmeza”, pensou. Mas
não conseguiu se lembrar do que vinha depois. A voz de tia Guida
parecia perfurá-lo como se fosse uma das brocas do tio Válter.
—
Esse Potter — continuou tia Guida bem alto, agarrando a garrafa e
derramando mais conhaque no copo e na toalha da mesa —, você nunca me
contou o que ele fazia.
Tio
Válter e tia Petúnia tinham uma expressão extremamente tensa. Duda chegara
a levantar os olhos da torta para olhar os pais, boquiaberto.
—
Ele... Não trabalhava — disse tio Válter, sem chegar a olhar de todo para
Harry. — Desempregado.
—
Era o que eu esperava — disse tia Guida, bebendo um enorme gole de
conhaque e limpando o queixo na manga. — Um parasita
preguiçoso, imprestável, sem eira nem beira que...
—
Não era não — exclamou Harry inesperadamente. Todos à mesa ficaram muito
quietos. Harry tremia da cabeça aos pés.
Nunca
sentira tanta raiva na vida.
—
MAIS CONHAQUE! — bradou tio Válter, que empalidecera sensivelmente. Ele
esvaziou a garrafa no cálice de tia Guida. — Você, moleque — rosnou
para Harry. — Vá se deitar, ande...
—
Não, Válter — soluçou tia Guida, erguendo a mão, os olhinhos injetados e
fixos em Harry. — Continue, moleque, continue. Tem orgulho dos seus
pais, é? Eles saem por aí e se matam num acidente de carro (imagino
que bêbados)...
—
Eles não morreram num acidente de carro! — protestou Harry, que percebeu
que se levantara.
—
Morreram num acidente de carro, sim, seu mentiroso infeliz, e jogaram você
nos ombros de parentes decentes e trabalhadores! — gritou tia Guida,
inchando de fúria. — Você é um ingrato, insolente e...
Mas
repentinamente ela se calou. Por um instante pareceu que tinham-lhe
faltado palavras. Parecia estar inchando, engasgada de tanta raiva... Mas
não parou de inchar. Sua cara enorme e vermelha começou a crescer, os
olhos miúdos saltaram das órbitas, e a boca se esticou tanto que a impedia
de falar — no segundo seguinte vários botões simplesmente saltaram do seu
paletó de tweed e ricochetearam nas paredes —, ela inflou como um balão
monstruoso, a barriga transbordou o cós da saia, os dedos engrossaram
como salames...
—
GUIDA! — berraram tio Válter e tia Petúnia juntos quando o corpo dela
começou a se erguer da cadeira em direção ao teto. Estava completamente
redonda agora, como uma enorme bóia com olhinhos porcinos, e as mãos e os
pés se projetaram estranhamente do corpo que flutuava no ar, dando
estalinhos apopléticos. Estripador entrou derrapando na sala, latindo
enlouquecido.
—
NÃÃÃÃÃÃÃO!
Tio
Válter agarrou Guida por um pé e tentou puxá-la para baixo, mas quase foi
erguido do chão também. Um segundo depois, Estripador avançou, e de um
salto abocanhou a perna do tio Válter.
Harry
se precipitou, para fora da sala de jantar antes que alguém pudesse
impedi-lo, e correu para o armário sob a escada. A porta do armário se
abriu magicamente quando ele se aproximou. Em segundos, o garoto tinha
arrastado o seu malão para a porta da rua. Subiu aos saltos a escada e se
atirou embaixo da cama, levantando a tábua solta do soalho, agarrou a
fronha cheia de livros e presentes de aniversário. Arrastou-se para
fora, passou a mão na gaiola vazia de Edwiges, correu de volta ao lugar em
que deixara o malão, na hora em que tio Válter irrompia da sala de
jantar, com a perna da calça em tiras ensangüentadas.
—
VOLTE AQUI! — urrou. — VOLTE AQUI E FAÇA-A VOLTAR AO NORMAL!
Mas
uma raiva que não media conseqüências se apoderara de Harry. Ele deu um
chute no malão para abri-lo, puxou a varinha e apontou-a para o tio
Válter.
—
Ela mereceu — disse ofegante. — Ela mereceu o que aconteceu. E o senhor
fique longe de mim.
Depois,
tateou às costas à procura do trinco da porta.
—
Vou-me embora. Para mim já chega.
E
no momento seguinte Harry estava na rua escura e silenciosa, puxando o
malão pesado, a gaiola de Edwiges debaixo do braço.
CAPÍTULO
TRÊS
O
Nôitibus Andante
Harry
já estava bem distante quando se largou em cima de um muro baixo na Rua
Magnólia, uma rua curva de prédios geminados, ofegante com o esforço de
arrastar o malão. Sentou-se muito quieto, ainda espumando de raiva,
escutando o galope desenfreado do seu coração.
Mas
depois de uns dez minutos sozinho na rua escura, uma nova emoção se
apoderou dele: o pânico. De qualquer maneira que considerasse o caso, ele
nunca se vira em situação pior. Estava perdido, sozinho, no escuro mundo
dos trouxas, absolutamente sem ter aonde ir. E o pior era que acabara
de executar um feitiço sério, o que significava que quase certamente
seria expulso de Hogwarts. Violara tão flagrantemente o decreto que
limitava o uso da magia por menores, que se surpreendeu que os
representantes do Ministério da Magia não tivessem caído em cima dele ali
mesmo.
Harry
estremeceu e olhou para os dois lados da Rua Magnólia. O que ia lhe
acontecer? Seria preso ou simplesmente banido do mundo dos bruxos? Ele
pensou em Rony e em Hermione, e seu coração ficou ainda mais apertado.
Harry tinha certeza de que, fosse criminoso ou não, Rony e Hermione iriam
querer ajudá-lo agora, mas os dois estavam no exterior e, com Edwiges
ausente, ele não tinha meios de entrar em contato com os amigos.
E
tampouco tinha dinheiro dos trouxas. Havia um ourinho na carteira que
guardara no fundo do malão, mas o resto da fortuna que seus pais tinham
lhe deixado estava depositado em um cofre do banco dos bruxos em Londres,
o Gringotes. Ele jamais conseguiria arrastar o malão até Londres. A não
ser que...
Ele
olhou para a varinha que ainda mantinha segura na mão.
Se
já fora expulso (seu coração agora batia dolorosamente depressa), um pouco
mais de magia não iria fazer mal algum. Tinha a Capa da Invisibilidade que
herdara do pai — e se encantasse o malão para torná-lo leve como uma pena,
o amarrasse à vassoura e voasse até Londres? Então poderia retirar o resto
do seu dinheiro do cofre e... Começar uma vida de proscrito. Era uma
perspectiva terrível, mas não podia ficar sentado naquele muro para
sempre, ou ia acabar tendo que explicar à polícia dos trouxas o que
estava fazendo ali, na calada da noite, com um malão cheio de livros de
bruxaria e uma vassoura.
Harry
tornou a abrir o malão e empurrou as coisas para um lado à procura da Capa
da Invisibilidade — mas antes de apanhá-la, endireitou o corpo de repente
e olhou mais uma vez a toda a volta.
Um
formigamento estranho na nuca o fizera sentir que estava sendo observado,
mas a rua parecia deserta e não havia luz nos grandes prédios quadrados.
Ele
tornou a se curvar para o malão, mas quase imediatamente se endireitou, a
mão apertando a varinha. Não ouvira, sentira uma coisa: alguém ou alguma
coisa estava parado no estreito vão entre a garagem e a grade atrás dele.
Harry apertou os olhos para enxergar melhor a passagem escura. Se ao
menos aquilo se mexesse, então ele saberia se era apenas um gato sem
dono ou... Outra coisa qualquer.
—
Lumus — murmurou Harry, e apareceu uma luz na ponta de sua varinha,
que quase o cegou. Ele levantou a varinha acima da cabeça e as paredes
incrustadas de seixos do nº. 2, de repente, faiscaram; a porta da garagem
reluziu e entre as duas Harry viu, com muita clareza, os contornos maciços
de alguma coisa muito grande com olhos enormes e brilhantes.
Harry
recuou. Suas pernas bateram no malão e ele tropeçou. A varinha voou de sua
mão quando ele abriu os braços para amortecer a queda, e aterrissou
com toda a força na sarjeta.
Ouviu-se
um estampido ensurdecedor e Harry ergueu as mãos para proteger os olhos da
luz repentina e ofuscante...
Com
um grito, ele rolou para cima da calçada bem em tempo. Um segundo
depois, dois faróis altos e dois gigantescos pneus pararam cantando
exatamente no lugar em
que Harry estivera caído. As duas coisas pertenciam, Harry
viu quando ergueu a cabeça, a um ônibus de três andares, roxo berrante,
que se materializara do nada.
Letras
douradas no pára-brisa informavam: O Nôitibus Andante.
Por
uma fração de segundo, Harry ficou imaginando se o tombo o teria deixado
abobado. Então, um condutor de uniforme roxo saltou do ônibus para
anunciar em altas vozes aos ventos da noite:
—
Bem-vindo ao ônibus Nôitibus Andante, o transporte de emergência para
bruxos e bruxas perdidos. Basta esticar a mão da varinha, subir a bordo e
podemos levá-lo aonde quiser. Meu nome é Stanislau Shunpike, Lalau, e
serei seu condutor por esta noi...
Lalau
parou abruptamente. Acabara de avistar Harry que continuava sentado no
chão. O menino recuperou a varinha e ficou de pé como pôde.
Aproximando-se, viu
que Lalau era apenas alguns anos mais velho que ele, tinha dezoito
ou dezenove anos no máximo, grandes orelhas de abano e uma grande quantidade de
espinhas.
—
Que é que você estava fazendo aqui? — perguntou Lalau, pondo de lado sua
pose profissional.
—
Caí — respondeu Harry
—
E por que foi que você caiu? — caçoou Lalau.
—
Não caí de propósito — respondeu Harry, incomodado. Uma perna de seu jeans
se rasgara e a mão que ele estendera para aliviar a queda estava
sangrando. De repente ele se lembrou por que caíra e se virou depressa
para o lado para ver a passagem entre a garagem e a cerca. Os faróis do
Nôitibus agora a inundavam de luz e ela estava vazia.
—
Que é que você está olhando? — perguntou Lalau.
—
Havia uma coisa grande e escura — respondeu Harry, apontando hesitante
para a abertura. — Parecia um cachorro... Mas enorme...
Harry
olhou para Lalau, cuja boca estava entreaberta. Com um certo
constrangimento, Harry viu o seu olhar se deter na cicatriz de sua testa.
—
Que é que é isso na sua testa? — perguntou Lalau de repente.
—
Nada — apressou-se a dizer Harry, achatando os cabelos em cima da
cicatriz. Se os funcionários do Ministério da Magia estivessem à sua
procura, ele não ia facilitar a vida deles.
—
Qual é o seu nome? — insistiu Lalau.
—
Neville Longbottom — respondeu Harry com o primeiro nome que lhe veio à
cabeça. — Então... Este ônibus — emendou ele depressa na esperança de
desviar a atenção do rapaz —, você disse que vai a qualquer lugar?
—
Isso aí — respondeu Lalau orgulhoso —, qualquer lugar que você queira
desde que seja em terra. É imprestável debaixo da água. Aqui — disse ele
outra vez desconfiado —, você fez sinal para a gente parar, não fez?
Esticou a mão da varinha, não esticou?
—
Claro — confirmou Harry depressa. — Escuta aqui, quanto custaria me levar
até Londres?
—
Onze sicles, mas por catorze você ganha chocolate quente e por quinze um
saco de água quente e uma escova de dentes da cor que você quiser.
Harry
remexeu outra vez no malão, tirou a bolsa de dinheiro, e empurrou um
ourinho na mão de Lalau. Ele e o rapaz então ergueram o malão, com a
gaiola de Edwiges equilibrada na tampa, e subiram no ônibus.
Não
havia lugares para a pessoa sentar; em vez disso havia meia dúzia de
estrados de latão ao longo das janelas protegidas por cortinas.
Ao
lado de cada cama, ardiam velas em suportes, que iluminavam as paredes
revestidas de painéis de madeira. Na traseira do ônibus, uma bruxa miúda
usando touca de dormir murmurou:
—
Agora não, obrigada, estou fazendo uma conserva de lesmas. — E voltou a
adormecer.
—
Você fica com essa aí — cochichou Lalau, empurrando o malão de Harry para
baixo da cama logo atrás do motorista, que se achava sentado em uma
cadeira de braços diante do volante. — Este é o nosso motorista, Ernesto
Prang. Este aqui é o Neville Longbottom, Ernesto.
Ernesto
Prang, um bruxo idoso que usava óculos de grossas lentes, cumprimentou com
um aceno de cabeça o novo passageiro, que tornou a achatar
nervosamente a franja contra a testa e se sentou na cama.
—
Pode mandar ver, Ernesto — disse Lalau, sentando-se na cadeira ao lado do
motorista.
Ouviu-se
mais um estampido assustador e, no instante seguinte, Harry se sentiu
achatado contra a cama, atirado para trás pela
velocidade do Nôitibus. Endireitando-se, o menino espiou pela
janela escura e viu que agora deslizavam suavemente por uma rua
completamente diferente. Lalau observava o rosto surpreso de Harry achando
muita graça.
—
Era aqui que a gente estava antes de você fazer sinal para o ônibus parar
— disse ele. — Onde é que nós estamos, Ernesto? Em algum lugar do
País de Gales?
—
Hum-hum — respondeu o motorista
—
Como é que os trouxas não ouvem o ônibus? — perguntou Harry.
—
Os trouxas! — exclamou Lalau com desdém. — E eles lá escutam direito? E
também não enxergam direito. Nunca reparam em nada, não é mesmo?
—
É melhor ir acordar Madame Marsh, Lalau — disse Ernesto. — Vamos entrar em
Abergavenny dentro de um minuto.
Lalau
passou pela cama de Harry e desapareceu por uma estreita escada de
madeira. Harry continuou a espiar pela janela, sentindo-se mais nervoso a
cada hora.
Ernesto
não parecia ter dominado o uso do volante, O Nôitibus a toda hora subia na
calçada, mas não batia em nada; os fios dos lampiões, as caixas de correio
e as latas de lixo saltavam fora do caminho quando o ônibus se aproximava
e tornavam à posição anterior depois de ele passar Lalau voltou do
primeiro andar, seguido de uma bruxa meio esverdeada e embrulhada em uma
capa de viagem.
—
Chegamos, Madame Marsh — exclamou Lalau alegremente, enquanto Ernesto
metia o pé no freio e as camas deslizavam bem uns trinta centímetros para
a dianteira do ônibus. Madame Marsh cobriu a boca com um lenço e desceu as
escadas, titubeante. Lalau atirou a mala para ela e bateu as portas do
ônibus; ouviu-se novo estampido, e o veículo saiu roncando por uma
estradinha do interior, fazendo as árvores saltarem de banda.
Harry
não teria conseguido dormir mesmo se estivesse viajando em um ônibus que
não produzisse tantos estampidos e saltasse um quilômetro e meio de cada
vez, seu estômago deu muitas voltas quando ele tornou a refletir no que
iria lhe acontecer, e se os Dursley já teriam conseguido tirar tia Guida
do teto.
Lalau
abrira um exemplar do Profeta Diário e agora o lia mordendo a língua. Um
homem de rosto encovado, e cabelos longos e embaraçados piscou
devagarinho para Harry em uma grande foto na primeira página.
Pareceu-lhe estranhamente familiar.
—
Esse homem! — exclamou Harry, esquecendo-se por um momento dos próprios
problemas. — Ele apareceu no noticiário dos trouxas!
Lalau
virou para a primeira página e deu uma risadinha.
—
Sirius Black — disse, confirmando com a cabeça. — Claro que apareceu no
noticiário dos trouxas, Neville, por onde você tem andado? — E deu uma
risadinha de superioridade ao ver o olhar vidrado no rosto de Harry;
rasgou a primeira página e entregou-a ao garoto.
—
Você devia ler mais jornal.
Harry
ergueu a página diante da luz e leu:
BLACK AINDA FORAGIDO
Sirius Black, provavelmente o
condenado de pior fama já preso na fortaleza de Azkaban, continua a
escapar da polícia, confirmou hoje o Ministério da Magia.
— Estamos fazendo todo o possível para
recapturar Black — disse o Ministro da Magia, Cornélio Fudge. Ouvido esta
manhã. — E pedimos à comunidade mágica que se mantenha calma.
Fudge tem sido criticado por alguns
membros da Federação Internacional de Bruxos por ter comunicado a crise ao
Primeiro-Ministro dos Trouxas.
— Bem, na realidade, eu tinha que
fazer isso ou vocês não sabem? — comentou Fudge irritado. — Black é doido. É um
perigo para qualquer pessoa que o aborreça, seja bruxo ou trouxa. — O
Primeiro-Ministro me garantiu que não revelará a verdadeira identidade de
Black. E vamos admitir quem iria acreditar se ele revelasse?”
Enquanto os trouxas foram informados
apenas de que Black está armado (com uma espécie de varinha de metal que
os bruxos usam para se matar uns aos outros), a comunidade mágica
vive no temor de um massacre como o que ocorreu há doze anos, quando Black
matou treze pessoas com um único feitiço.
Harry
olhou bem dentro dos olhos sombrios de Sirius Black, a única parte do
rosto encovado que parecia ter vida. O menino jamais encontrara
um vampiro, mas vira fotos nas aulas de Defesa Contra as Artes das
Trevas, e Black, com a pele branca como cera, se parecia muito com um.
—
Carinha sinistro, não é mesmo? — comentou Lalau, que estivera observando
Harry enquanto lia.
—
Ele matou treze pessoas? — admirou-se Harry, devolvendo a página a Lalau.
— Com um feitiço?
—
É isso aí, bem na frente de testemunhas e tudo. Em plena luz do dia. Armou
uma confusão do caramba não foi, Ernesto?
—
Hum-hum — confirmou Ernesto sombriamente.
Lalau
girou a cadeira de braços, cruzou as mãos às costas, a fim de olhar
melhor para Harry.
— Black foi um
grande partidário de Você-Sabe-Quem — disse ele.
— De
quem, do Voldemort? — disse Harry sem pensar.
Até as
espinhas de Lalau ficaram brancas; Ernesto deu tal golpe de direção que uma
casa de fazenda inteira teve que saltar para o lado para fugir do ônibus.
— Você
ficou maluco? — gritou Lalau. — Pra que foi que você foi dizer o nome dele?
—
Desculpe — apressou-se a dizer Harry. — Desculpe, eu... me esqueci...
— Se
esqueceu! — exclamou Lalau com a voz fraca. — Caramba, meu coração até
desembestou...
—
Então... então Black era partidário de Você-Sabe-Quem? — repetiu Harry como se
pedisse desculpas.
— E é —
confirmou Lalau, ainda esfregando o peito. – É, é isso aí. Dizem que era muito
chegado ao Você-Sabe-Quem... Em todo o caso, quando o pequeno Harry Potter
levou a melhor sobre Você-Sabe-Quem...
Harry,
nervoso, achatou a franja na testa outra vez.
— ...
Todos os partidários de Você-Sabe-Quem foram caçados, não foi assim, Ernesto? A
maioria deles sacou que estava tudo acabado, Você-Sabe-Quem tinha desaparecido
e o pessoal ficou na moita. Mas o Sirius Black, não. Ouvi dizer que ele achou
que ia ser o vice quando Você-Sabe-Quem assumisse o poder. Em todo o caso, eles
cercaram Black no meio de uma rua cheia de trouxas e o cara puxou a varinha e
explodiu metade da rua, atingiu um bruxo e mais uma dúzia de trouxas que
estavam no caminho. Uma coisa horrorosa! E sabe o que foi que o Black fez
depois? — Lalau continuou num sussurro teatral.
— Quê? —
perguntou Harry.
— Deu uma
gargalhada. Ficou ali parado dando gargalhadas. E quando chegaram os reforços
do Ministério da Magia, ele acompanhou os caras sem a menor reação, rindo de se
acabar. Porque ele é maluco, não é, Ernesto? Ele não é maluco?
— Se ele
ainda não era quando foi para Azkaban, agora é — comentou Ernesto com sua voz
arrastada. — Eu preferia estourar os miolos a pisar naquele lugar. Mas acho que
é bem feito... Depois do que ele aprontou...
— Tiveram uma trabalheira para abafar o caso, não foi,
Ernesto? — disse Lalau. — Ele mandou a rua antiga para o espaço e matou todos aqueles trouxas. Que foi mesmo que
falaram que tinha acontecido, Ernesto?
—
Explosão de gás — resmungou Ernesto.
—
E agora ele anda solto por aí — continuou Lalau, examinando mais uma vez a
cara encovada de Black na foto do jornal. — Ninguém nunca fugiu de Azkaban
antes, não é mesmo, Ernesto? Não sei como foi que ele fez isso. É de
apavorar, hein? E olha só, não acho que ele tivesse muita chance contra
aqueles guardas de Azkaban, hein, Ernesto? — Ernesto sentiu um arrepio repentino.
—
Vamos mudar de assunto, Lalau. Esses guardas de Azkaban me dão até dor de
barriga.
Lalau
largou o jornal com relutância e Harry se encostou na janela do Nôitibus,
sentindo-se pior que nunca. Não podia deixar de imaginar o que Lalau
iria contar aos passageiros nas próximas noites... "Você soube o
que aconteceu com aquele Harry Potter? Mandou a tia pelos ares! Ele viajou
aqui no Nôitibus com a gente, não foi mesmo, Ernesto? Estava tentando
se mandar...”
Ele.
Harry Potter, tinha infringido as leis dos bruxos igualzinho ao Sirius
Black. Fazer tia Guida virar balão seria suficiente para ir parar em
Azkaban?
Harry
não sabia nada sobre a prisão dos bruxos, embora todo mundo que ele já
ouvira falar daquele lugar o fizesse no mesmo tom de medo. Hagrid, o guarda-caça
de Hogwarts, passara dois meses lá ainda no ano passado. Harry
jamais esqueceria a expressão de terror no rosto do amigo quando lhe
disseram aonde ia, e Hagrid era uma das pessoas mais corajosas que
Harry conhecia.
O
Nôitibus corria pela escuridão, espalhando para todo o lado moitas de
plantas, latas de lixo, cabines telefônicas e árvores, e Harry
continuava deitado, inquieto e infeliz, em sua cama de penas. Passado
algum tempo, Lalau se lembrou de que Harry pagara pelo chocolate quente,
mas derramou-o no travesseiro do garoto quando o ônibus passou
bruscamente de Anglesca para Aberdeen.
Um
a um, bruxos e bruxas de roupa de dormir e chinelos desceram dos andares
superiores e desembarcaram do ônibus. Todos pareciam satisfeitos de
descer.
Finalmente,
Harry foi o único passageiro que restou.
—
Muito bem, então, Neville — disse Lalau, batendo palmas —, que lugar
de Londres você vai ficar?
—
No Beco Diagonal — respondeu Harry.
—
É pra já. Segura firme aí...
BANGUE.
E
na mesma hora o Nôitibus estava correndo pela Rua Charing Cross como uma
trovoada. Harry se sentou e ficou observando os edifícios e bancos se
espremerem para sair do caminho do veículo. O céu estava um pouquinho mais
claro.
Ele
tentaria passar despercebido por umas duas horas, iria ao Gringotes no
instante em que o banco abrisse, depois iria embora — para onde, ele não
sabia muito bem.
Ernesto
fincou o pé no freio e o Nôitibus parou derrapando diante de um bar
pequeno e de aparência malcuidada, o Caldeirão Furado, nos fundos do qual
havia a porta mágica para o Beco Diagonal.
—
Obrigado — disse Harry a Ernesto.
Ele
desceu os degraus com um pulo e ajudou Lalau a descer o malão e a gaiola
de Edwiges para a calçada.
—
Bem — disse Harry. — Então, tchau!
Mas
Lalau não estava prestando atenção. Ainda parado à porta do ônibus,
arregalava os olhos para a entrada sombria do Caldeirão Furado.
—
Ah, aí está você, Harry — exclamou uma voz.
Antes
que Harry pudesse se virar, sentiu uma mão segurá-lo pelo ombro. Ao mesmo
tempo, Lalau gritou:
—
Caramba! Ernesto corre aqui! Corre aqui!
Harry
ergueu a cabeça para o dono da mão em seu ombro e teve a sensação de que
um balde de gelo estava virando dentro do seu estômago — desembarcara
diante de Cornélio Fudge, o Ministro da Magia em pessoa.
Lalau
saltou para a calçada, ao lado deles.
—
Que nome foi que o senhor chamou Neville, ministro? — perguntou ele
excitado.
Fudge,
um homenzinho gorducho, vestindo uma longa capa de risca de giz, parecia
enregelado e exausto.
—
Neville? — repetiu ele, franzindo a testa. — Este é Harry Potter.
—
Eu sabia! — gritou Lalau radiante. — Ernesto! Ernesto! É o Harry Potter!
Estou olhando para a cicatriz dele!
—
Bem — disse Fudge, irritado —, muito bem, fico satisfeito que o
Nôitibus tenha apanhado o Harry, mas ele e eu precisamos entrar no Caldeirão
Furado agora...
Fudge
aumentou a pressão no ombro de Harry, e o menino sentiu que estava sendo
conduzido para o interior do bar. Um vulto curvo segurando uma lanterna
apareceu à porta atrás do balcão. Era Tom, o dono encarquilhado e sem
dentes do bar-hospedaria.
—
O senhor o encontrou, ministro! — exclamou Tom. — Quer alguma
coisa para beber? Cerveja? Conhaque?
—
Talvez um bule de chá — disse Fudge, que continuava segurando Harry.
Ouviram-se
passos que arranhavam o chão e gente ofegante atrás deles, e Lalau e
Ernesto apareceram, carregando o malão de Harry e a gaiola de Edwiges,
olhando para os lados, excitados.
—
Por que é que você não nos disse quem era, hein, Neville? — disse Lalau
sorrindo, radiante, para Harry, enquanto o cara de coruja do Ernesto
espiava muito interessado por cima do ombro do ajudante.
—
E uma sala reservada, por favor, Tom — pediu Fudge enfaticamente.
—
Tchau — disse Harry, infeliz, a Lalau e Ernesto, enquanto Tom encaminhava
Fudge, com um gesto, para um corredor que se abria atrás do bar.
—
Tchau, Neville! — disse Lalau se retirando.
Fudge
conduziu Harry por um corredor estreito, acompanhando a lanterna de Tom,
até uma saleta. Tom estalou os dedos, um fogo se materializou na
lareira, e, fazendo uma reverência, ele se retirou do aposento.
—
Sente-se, Harry — começou Fudge, indicando a poltrona junto à lareira.
Harry
obedeceu, sentindo arrepios percorrerem seus braços apesar da lareira
acesa. Fudge despiu a capa de risca de giz, atirou-a a um lado, depois
suspendeu as calças do seu terno verde-garrafa e se sentou em frente a
Harry.
—
Eu sou Cornélio Fudge, Harry. Ministro
da Magia.
Harry
já sabia disso, é claro; vira Fudge antes, mas como estava usando a Capa
da Invisibilidade do pai na ocasião, Fudge não devia saber disso.
Tom,
o dono do bar-hospedaria reapareceu, com um avental por cima do camisão de
dormir, trazendo uma bandeja com chá e pãezinhos de minuto. Pousou a
bandeja entre Fudge e Harry e saiu, fechando a porta ao passar.
—
Muito bem, Harry — disse Fudge, servindo o chá —, não me importo de
confessar que você nos deixou preocupadíssimos. Fugir da casa dos seus
tios desse jeito! Eu já tinha até começado a pensar... Mas você está são
e salvo, e isto é o que importa.
Fudge
passou manteiga em um pãozinho e empurrou o prato para Harry.
—
Coma, Harry, sua cara é de quem não está se agüentando em pé.
Agora... Você vai ficar satisfeito em saber que cuidamos do
infeliz acidente com a Srta. Guida Dursley. Dois funcionários do
Departamento de Reversão de Feitiços Acidentais foram mandados à Rua
dos Alfeneiros há algumas horas. A Srta. Dursley foi esvaziada e sua memória
alterada. Ela não lembra mais nada do acidente. E isto é tudo, não houve
danos.
Fudge
sorriu para Harry por cima da borda da xícara de chá, como faria um tio
examinando um sobrinho querido. Harry, que não conseguia acreditar no que
estava ouvindo, abriu a boca para falar, não conseguiu pensar em nada
para dizer, e tornou a fechá-la.
—
Ah, você está preocupado com a reação dos seus tios? Bom, não vou negar que eles estão muitíssimo
aborrecidos, Harry, mas se dispuseram a recebê-lo de volta no próximo
verão, desde que você passe em Hogwarts as férias do Natal e da Páscoa.
A
língua de Harry se soltou.
—
Eu sempre passo em Hogwarts as férias do Natal e da Páscoa, e não quero
nunca mais voltar à Rua dos Alfeneiros.
—
Vamos, vamos, tenho certeza de que você vai pensar diferente depois que se
acalmar — disse Fudge em tom preocupado. — Afinal, eles são sua
família, e tenho certeza de que... Bem lá no fundo, vocês se querem bem.
Não
ocorreu a Harry corrigir Fudge. Continuava esperando ouvir o que ia lhe
acontecer em seguida.
—
Então agora só falta — disse Fudge, passando manteiga em um segundo
pãozinho — decidir onde é que você vai passar as duas últimas semanas de
férias. Sugiro que alugue um quarto aqui no Caldeirão Furado e...
—
Espera aí — falou Harry sem pensar. — E o meu castigo?
Fudge
piscou os olhos.
—
Castigo?
—
Eu desobedeci à lei! — disse Harry. — O decreto que proíbe o uso da magia
aos menores!
—
Ah, meu caro menino, nós não vamos castigá-lo por uma coisinha à toa como
essa! — exclamou Fudge, agitando o pãozinho com impaciência. — Foi
um acidente! Nós não mandamos ninguém para Azkaban por fazer a tia virar
um balão!
Mas
isto não batia com os contatos que Harry tivera anteriormente com o
Ministério da Magia.
—
No ano passado, recebi uma notificação oficial só porque um elfo doméstico
largou um pudim no chão da casa do meu tio! — disse ele a Fudge,
franzindo a testa. — O Ministério da Magia disse que eu seria expulso de Hogwarts se
acontecesse mais um caso de magia por lá!
A
não ser que os olhos de Harry o enganassem, Fudge de repente parecia pouco
à vontade.
—
As circunstâncias mudam, Harry... Temos que levar em consideração... No
clima atual... Com certeza você não quer ser expulso?
—
Claro que não — disse Harry.
—
Bom, então, por que toda essa agitação? — riu-se Fudge. — Agora coma mais um
pãozinho, enquanto vou ver se tem um quarto para você.
Fudge
saiu da saleta e Harry ficou observando-o se retirar.
Havia
alguma coisa muito estranha acontecendo ali. Por que Fudge viera esperá-lo
no Caldeirão Furado, se não ia castigá-lo pelo que fizera? E agora,
pensando bem, com certeza não era normal um Ministro da Magia se
envolver pessoalmente com casos de magia praticada por menores!
Fudge
voltou acompanhado de Tom, o dono do bar-hospedaria.
—
O quarto onze está livre, Harry — anunciou Fudge. — Acho que você vai
ficar muito bem instalado nele. Mas tem uma coisa, e estou certo de que
vai compreender... Não quero você passeando pela Londres dos trouxas,
certo? Fique no Beco Diagonal. E tem que voltar todos os dias antes
do escurecer. Tenho certeza de que vai compreender. Tom vai ficar de
olho em você por mim.
—
Tudo bem — disse Harry lentamente —, mas por quê...?
—
Não queremos perdê-lo outra vez, não é mesmo? — disse Fudge com uma risada
calorosa. — Não, não... É melhor sabermos onde é que você anda... Quero
dizer...
Fudge
pigarreou alto e apanhou a capa de risca de giz.
—
Bom, vou andando, muito que fazer, sabe...
—
Já teve alguma sorte com o Black? — perguntou Harry.
Os
dedos de Fudge escorregaram no fecho de prata da capa.
—
Que foi que disse? Ah, você ouviu falar... Bem, não, ainda não, mas é só
uma questão de tempo. Os guardas de Azkaban até hoje não falharam... E
nunca os vi tão furiosos. Fudge estremeceu ligeiramente. — Então, vou
dizendo até logo.
Ele
estendeu a mão, e Harry, ao apertá-la, teve uma idéia repentina.
—
Ah... Ministro? Posso perguntar uma coisa?
—
Com toda certeza — disse Fudge com um sorriso.
—
Bom, em Hogwarts os alunos do terceiro ano podem visitar Hogsmeade, mas os
meus tios não assinaram o formulário de autorização. O senhor
acha que poderia?
Fudge
pareceu constrangido.
—
Ah — respondeu. — Não, não, sinto muito, Harry, mas não sou seu pai nem
seu guardião...
—
Mas o senhor é o Ministro da Magia — disse Harry, ansioso. — Se o senhor
me desse autorização...
—
Não, sinto muito, Harry, mas regras são regras — disse Fudge sem
entusiasmo. — Talvez você possa visitar Hogsmeade no ano que vem. De fato,
acho melhor você nem ir... É... Bem, vou andando. Aproveite a sua estada
aqui, Harry.
E
com um último sorriso e um aperto de mão; Fudge deixou a saleta. Tom,
então, adiantou-se sorridente para Harry.
—
Se o senhor quiser me acompanhar, Sr. Potter. Já levei suas coisas para
cima...
Harry
o seguiu por uma bela escada de madeira até uma porta com uma placa de
latão de número onze, que Tom destrancou e abriu para ele.
Dentro
havia uma cama muito confortável, uma mobília de carvalho muito lustroso,
uma lareira em que o fogo crepirava alegremente e, encarrapitada no alto
do armário...
—
Edwiges! — exclamou Harry.
A
coruja muito branca deu estalinhos com o bico e voou para o braço de
Harry.
—
Coruja muito inteligente a sua — disse Tom rindo. — Chegou uns cinco
minutos depois do senhor. Se precisar de alguma coisa, Sr. Potter, por
favor, é só pedir.
Ele
fez outra reverência e saiu.
Harry
ficou sentado na cama durante muito tempo, acariciando, distraído, as
penas de Edwiges. O céu visto pela janela foi mudando rapidamente de um
azul escuro e aveludado para um cinzento metálico e frio, depois,
lentamente, para um rosa salpicado de ouro. Harry mal conseguia acreditar
que abandonara a Rua dos Alfeneiros havia apenas algumas horas, que
não fora expulso e que, agora, tinha diante de si duas semanas inteiras
sem os Dursley.
—
Foi uma noite muito estranha, Edwiges — bocejou ele.
E
sem nem ao menos tirar os óculos, ele se largou em cima do travesseiro e
adormeceu.
CAPÍTULO
QUATRO
O
Caldeirão Furado
Harry
levou vários dias para se acostumar àquela estranha liberdade nova.
Nunca
antes ele pudera se levantar quando quisesse nem comer o que lhe desse
vontade. Podia até ir aonde desejasse, desde que não saísse do Beco
Diagonal, e como essa longa rua de pedras era repleta das lojas de magia
mais fascinantes do mundo, Harry não sentia desejo algum de
romper a palavra dada a Fudge e voltar ao mundo dos trouxas.
Todas
as manhãs ele tomava o café no Caldeirão Furado, onde gostava de observar
os outros hóspedes: bruxas do interior, franzinas e engraçadas, que
vinham passar o dia fazendo compras; bruxos de aspecto venerável
discutindo o último artigo do Transfiguração
Hoje; bruxos de ar amalucado; anões de voz roufenha; e, uma vez,
alguém, que tinha a aparência suspeita de uma bruxa malvada, pedira um
prato de fígado cru, o rosto semi-escondido por uma carapuça de lã.
Depois
do café Harry saía para o pátio dos fundos, puxava a varinha, batia no
terceiro tijolo a contar da esquerda, acima do latão de lixo, e se
afastava enquanto se abria na parede o arco para o Beco Diagonal.
O
garoto passou os dias longos e ensolarados explorando as lojas e comendo à
sombra dos guarda-sóis de cores vivas à porta dos cafés, em que os seus
companheiros de refeição mostravam uns aos outros as compras que tinham
feito ("é um lunascópio, meu
amigo — é o fim dessa história de mexer com tabelas lunares, me
entende?") ou então discutiam o caso de Sirius Black ("pessoalmente, não vou deixar nenhum dos
meus filhos sair sozinho até que ele esteja outra vez em Azkaban").
Harry
não precisava mais fazer os deveres de casa debaixo das cobertas, à
luz de uma lanterna; agora podia se sentar à luz do sol, na calçada da
Sorveteria Florean Fortescue, terminar suas redações e até contar com a
ajuda ocasional do próprio Florean, que, além de conhecer a fundo as
queimas de bruxas em fogueiras, ainda oferecia a Harry, a cada meia
hora, sundaes de graça.
Depois
de ter reabastecido a carteira com galeões de ouro, sicles de prata e
nuques de bronze retirados do seu cofre no Gringotes, Harry precisava
se controlar muito para não gastar tudo de uma vez. Precisava se
lembrar o tempo todo de que ainda lhe faltavam cinco anos de escola e
que se sentiria mal em pedir dinheiro aos Dursley para comprar livros
de bruxaria, e se segurou para não comprar um belo conjunto de bexigas de
ouro maciço (um jogo de bruxos parecido com o de bolas de gude, em
que as bolas espirram um líquido fedorento na cara do outro
jogador quando ele perde um ponto). Harry se sentiu tentadíssimo, também,
por um modelo perfeito de uma galáxia em movimento, dentro
de um grande globo de vidro, e que teria significado que
ele jamais precisaria assistir a uma aula de astronomia na vida. Mas a
coisa que mais testou a força de vontade de Harry apareceu em sua loja preferida,
a Artigos de Qualidade para Quadribol, uma semana depois do menino ter
chegado ao Caldeirão Furado.
Curioso
para saber a razão do ajuntamento diante da loja, Harry foi entrando
com jeitinho e se espremendo entre as bruxas e bruxos até conseguir
ver um tablado recentemente erguido, em que haviam montado a vassoura
mais deslumbrante que ele já vira na vida.
—
Acabou de ser lançada... Um protótipo — comentava um bruxo de queixo
quadrado para o companheiro.
—
É a vassoura mais rápida do mundo, não é, papai? — perguntou a vozinha
aguda de um menino mais novo do que Harry, que se pendurava no braço do
pai.
—
O time internacional da Irlanda acabou de mandar um pedido para sete
desses vassourões! — informou o proprietário da loja aos presentes. — E o
time é o favorito para a Copa Mundial!
Uma
bruxa corpulenta, na frente de Harry, se mexeu e o menino pôde ler o
cartaz ao lado da vassoura:
FIREBOLT
Fabricada com tecnologia de ponta, a Firebolt
possui um cabo de freixo, superfino e aerodinâmico, acabamento com
resistência de diamante e número de registro entalhado na madeira. As
cerdas da cauda, em lascas de bétula selecionadas à mão, foram afiladas
até atingirem a perfeição aerodinâmica, dotando a Firebolt de equilíbrio
insuperável e precisão absoluta. A Firebolt atinge 240km/Hora em dez
segundos e possui um freio encantado de irrefreável ação. Cotação a
pedido.
Cotação
a pedido... Harry nem queria pensar quanto ouro a Firebolt custaria.
Jamais desejara tanto alguma coisa em toda a sua vida — mas jamais
perdera uma partida de Quadribol com a sua Nimbus 2000, e qual era a
vantagem de esvaziar seu cofre no Gringotes para comprar uma
Firebolt, quando já possuía uma excelente vassoura?
Harry
não pediu a cotação, mas voltou, quase todos os dias depois disso, só
para admirar a Firebolt.
Havia,
no entanto, coisas que Harry precisava comprar.
Ele
foi à Botica para reabastecer seu estoque de ingredientes para poções
e, como agora suas vestes escolares estavam vários centímetros
mais curtas nos braços e nas pernas, ele visitou a Madame Malkin
— Roupas para Todas as Ocasiões e comprou novos uniformes.
E,
o mais importante, tinha que comprar os novos livros para o ano
letivo, que incluiriam duas novas matérias: Trato das Criaturas Mágicas e
Adivinhação.
Harry
teve uma surpresa quando parou para olhar a vitrine da livraria. Em
vez da decoração habitual com livros de feitiçaria gravados a ouro,
do tamanho de lajotas, havia uma grande gaiola de ferro com uns cem
exemplares de O Livro Monstruoso dos Monstros. Páginas arrancadas voavam
para todo o lado, enquanto os livros se agrediam e se atracavam em
furiosas lutas livres e mordidas agressivas.
Harry
puxou a lista de livros do bolso e consultou-a pela primeira vez.
O
Livro Monstruoso dos Monstros estava arrolado como o livro-texto para a
matéria Trato das Criaturas Mágicas.
Agora
ele compreendia por que Hagrid dissera que o livro futuramente
seria útil. Sentiu alívio; andara imaginando se o amigo ia querer
ajuda para cuidar de um novo bicho de estimação apavorante.
Quando
Harry entrou na Floreios e Borrões, o gerente veio correndo ao seu
encontro.
—
Hogwarts? — perguntou o homem sem rodeios. — Veio comprar os seus
livros?
—
Vim. Preciso...
—
Saia do caminho — disse o gerente empurrando Harry para o lado com
impaciência. Em seguida, puxou um par de luvas muito grossas, apanhou
um bengalão nodoso e rumou para a porta da gaiola em que estavam os
exemplares de O Livro Monstruoso dos Monstros.
—
Espere aí — disse Harry depressa —, já tenho um desses.
—
Já? — Uma expressão de imenso alívio espalhou-se pelo rosto do gerente. —
Graças a Deus. Já fui mordido cinco vezes esta manhã...
Um
barulho alto de papel rasgado cortou o ar; dois livros
monstruosos tinham agarrado um terceiro e começavam a destruí-lo.
—
Parem com isso! Parem com isso! — exclamou o gerente, enfiando a bengala
pelas grades e separando os livros à força. — Nunca mais vou ter essas
coisas em estoque, nunca mais! Tem sido uma loucura! Pensei que já
tínhamos visto o pior quando compramos duzentos exemplares de O livro
Invisível da Invisibilidade, custaram uma fortuna e nunca achamos os
livros... Bem... Tem mais alguma coisa em que possa lhe servir?
—
Tem — disse Harry, consultando a lista de livros —, preciso
de Esclarecendo o Futuro, de Cassandra Vablatsky.
—
Ah, vai começar a estudar Adivinhação? — perguntou o gerente descalçando
as luvas e conduzindo Harry ao fundo da loja, onde havia um canto
reservado para esse assunto. Em uma mesinha estavam empilhados livros
como Prevendo o imprevisível; Proteja-se Contra Choques e Bolas rachadas;
Quando a Sorte se Transforma em Azar.
—
Aqui está — disse o gerente, que subira em um escadote para apanhar
um livro grosso, encadernado de preto. — Esclarecendo o Futuro. Um bom
guia para todos os métodos básicos de adivinhação do futuro, quiromancia,
bolas de cristal, tripas de aves...
Mas
Harry não estava escutando. Seu olhar havia pousado em outro livro,
que fazia parte de um arranjo em outra mesinha: Presságios de morte: O que
fazer quando se sabe que vai acontecer o pior.
—
Ah, eu não leria isso se fosse você — disse o gerente de passagem,
procurando ver o que Harry estava olhando. — Você vai começar a ver
presságios de morte por todo lado. Só isso já é suficiente para matar a
pessoa de medo.
Mas
Harry continuou a encarar a capa do livro; tinha um cão preto do tamanho
de um urso, com olhos brilhantes, que lhe parecia estranhamente
familiar...
O
gerente pôs nas mãos de Harry o livro Esclarecendo o Futuro.
—
Mais alguma coisa? — perguntou.
—
Sim — respondeu Harry, desviando o olhar dos olhos do cão e consultando,
meio atordoado, a lista. — Ah... Preciso de Transfiguração para o
Curso Médio e de O Livro Padrão de Feitiços, 3º série.
Harry
saiu da Floreios e Borrões dez minutos depois, com os livros debaixo do
braço, e tomou o rumo do Caldeirão Furado sem reparar aonde ia, esbarrando
em várias pessoas.
Subiu
as escadas fazendo barulho, entrou em seu quarto e despejou os livros em
cima da cama. Alguém estivera ali limpando o quarto; as janelas abertas
deixavam entrar o sol. Harry ouviu os ônibus passarem lá embaixo, na rua
dos trouxas que ele não via, e o som dos transeuntes invisíveis no Beco
Diagonal. Viu de relance o seu reflexo no espelho acima da pia.
—
Não pode ter sido um presságio de morte — disse à sua imagem em tom de
desafio. — Eu estava entrando em pânico quando vi aquela coisa na Rua
Magnólia... Provavelmente era apenas um cão sem dono...
Ele
ergueu a mão automaticamente e tentou achatar os cabelos.
—
Você está empenhado em uma batalha perdida, meu querido — disse sua imagem
com a voz rouca.
À
medida que os dias se passavam, Harry começou a procurar por todo
lugar aonde ia um sinal de Rony ou de Hermione. Muitos alunos de
Hogwarts vinham ao Beco Diagonal agora, com a proximidade do ano
letivo. Harry encontrou Simas Finnigan e Dino Thomas, companheiros da
Grifinória, na Artigos de Qualidade para Quadribol, onde eles também
haviam parado para namorar a Firebolt; encontrou também o verdadeiro
Neville Longbottom, um menino de rosto redondo e muito desmemoriado, à
porta da Floreios e Borrões. Harry não parou para conversar; Neville
parecia ter extraviado a lista de livros e estava levando um carão da avó,
uma senhora de aparência colossal.
Harry
desejou que a senhora jamais descobrisse que ele fingira ser Neville
quando estava fugindo do Ministério da Magia.
Harry
acordou no último dia de férias, com o pensamento de que finalmente iria
se encontrar com Rony e Hermione no dia seguinte, no Expresso de Hogwarts.
Levantou-se, se vestiu e saiu para dar uma última espiada na Firebolt, e
estava pensando onde iria almoçar, quando alguém gritou seu nome e ele se
virou.
—
Harry! HARRY!
E
ali estavam eles, os dois, sentados na calçada da Sorveteria Florean
Fortescue. Rony parecendo incrivelmente sardento, Hermione
muito bronzeada, os dois acenando para ele freneticamente.
—
Finalmente! — exclamou Rony, rindo-se enquanto o amigo se sentava. — Fomos
ao Caldeirão Furado, mas disseram que você tinha saído, fomos à Floreios e
Borrões, à Madame Malkin e...
—
Comprei todo o meu material escolar na semana passada — explicou Harry. —
E como é que vocês sabiam que eu estava hospedado no Caldeirão Furado?
—
Papai — disse Rony com simplicidade.
O
Sr Weasley, que trabalhava no Ministério da Magia, é claro que soubera da
história toda que acontecera com a tia Guida.
—
É verdade que você transformou a sua tia em um balão? — perguntou Hermione
num tom muito sério.
—
Eu não tive intenção — respondeu Harry, enquanto Rony rolava de rir.—
Simplesmente... Perdi o controle.
—
Não tem a menor graça, Rony. — disse Hermione rispidamente. — Francamente,
fico admirada que Harry não tenha sido expulso.
—
Eu também — admitiu Harry. — E nem expulso, pensei que ia ser preso. — E
olhou para Rony. — Seu pai não sabe por que Fudge não me castigou, sabe?
—
Provavelmente porque era você, não é? — Rony sacudiu os ombros ainda
rindo. — O famoso Harry Potter e tudo o mais. Eu nem gostaria de ver o
que o Ministério faria comigo se eu transformasse minha tia em balão. Mas não se
esqueça, eles teriam que me desenterrar primeiro, porque mamãe já teria me
matado antes. Em todo o caso, pode
perguntar ao papai hoje à noite. Estamos hospedados no Caldeirão Furado,
também! Assim você pode ir para a estação de King"s Cross conosco
amanhã! Hermione também está lá!
A
garota confirmou com a cabeça, radiante.
-Mamãe
e papai me deixaram lá hoje de manhã com todas as minhas coisas de
Hogwarts.
—
Fantástico! — exclamou Harry feliz. — Então você já comprou os livros e
todo o resto?
—
Olhe só para isso — disse Rony, tirando uma caixa comprida e fina de
uma sacola e abrindo-a. — Uma varinha nova em folha. Trinta e
cinco centímetros e meio, salgueiro, contendo um fio de cauda de
unicórnio. E compramos todos os nossos livros... — Ele apontou para uma
grande saca embaixo da cadeira. — E aqueles livros monstruosos, hein? O
balconista quase chorou quando dissemos que queríamos dois.
—
E isso tudo o que é, Mione? — perguntou Harry, apontando não para uma, mas
para três sacas estufadas na cadeira junto à amiga.
—
Bem, é que vou fazer mais matérias novas do que vocês, não é? Comprei os
livros de Aritmancia, de Trato das Criaturas Mágicas, de Adivinhação,
de Estudo das Runas Antigas, de Estudo dos Trouxas...
—
Para que é que você vai fazer Estudo dos Trouxas? — perguntou Rony,
revirando os olhos para Harry. — Você nasceu trouxa! Sua mãe e seu pai são
trouxas! Você já sabe tudo sobre trouxas!
—
Mas vai ser fascinante estudar os trouxas do ponto de vista dos bruxos —
disse Hermione muito séria.
—
Você está planejando comer ou dormir este ano, Mione? — perguntou Harry,
enquanto Rony dava risadinhas abafadas. A garota não ligou para os dois.
—
Ainda tenho dez galeões — disse ela examinando a bolsa.
—
É meu aniversário em setembro, e mamãe e papai me deram um dinheiro para
eu comprar um presente de aniversário antecipado.
—
Que tal um bom livro? — perguntou Rony inocentemente.
—
Não, acho que não — disse Hermione controlando-se. — O que eu quero mesmo
é uma coruja. Quero dizer, Harry tem a Edwiges e você tem o Errol...
—
Não tenho, não — respondeu Rony. — Errol é uma coruja de família. Meu
mesmo só tenho o Perebas. — E tirou o rato de estimação do bolso. —
Quero mandar examinar ele — acrescentou, pousando Perebas na mesa a que
estavam sentados. — Acho que o Egito não fez bem a ele.
Perebas
estava mais magro do que de costume, e seus bigodes pareciam decididamente
caídos.
—
Tem uma loja para criaturas mágicas ali. — disse Harry, que agora conhecia
o Beco Diagonal como a palma da mão. — Você podia ver se eles têm
algum produto para o Perebas, e Mione podia comprar a coruja.
Assim
dizendo, eles pagaram os sorvetes e atravessaram a rua para ir a Animais
Mágicos.
Não
havia muito espaço dentro da loja. Cada centímetro das paredes estava
escondido por gaiolas. Era malcheirosa e barulhenta porque os ocupantes
das gaiolas guinchavam, gritavam, palravam, sibilavam. A bruxa ao balcão
estava ocupada ensinando a um bruxo como cuidar de um tritão com dois
rabos, por isso Harry, Rony e Hermione aguardaram, examinando as gaiolas.
Havia
dois enormes sapos roxos que engoliam, com um ruído aquoso, um banquete de
moscas-varejeiras mortas. Uma tartaruga gigante, o casco incrustado de
pedras preciosas, cintilava junto à janela. Lesmas venenosas, cor de
laranja, subiam lentamente pela parede do seu aquário, e um coelho branco
e gordo não parava de se transformar em cartola de cetim e novamente
em coelho, com um grande estalo. Havia ainda gatos de todas as cores, uma
gaiola barulhenta de corvos, uma cesta de engraçadas bolas de pêlo creme
que zuniam alto, e, em cima do balcão, um galoião de ratos negros e
luzidios que brincavam de dar saltos se apoiando nos longos rabos lisos.
O
bruxo do tritão de dois rabos saiu e Rony se aproximou do balcão.
—
É o meu rato — disse à bruxa. — Ele tem andado meio indisposto desde que
voltamos do Egito.
—
Põe ele aqui no balcão — pediu a bruxa, tirando do bolso um par de pesados
óculos de armação preta.
Rony
catou Perebas do bolso interno e depositou-o ao lado da gaiola dos seus
companheiros de espécie, que pararam os saltitos e correram para as grades
para ver melhor.
Como
todo o resto que Rony possuía, Perebas, o rato, era de segunda mão
(pertencera ao irmão de Rony, Percy) e era um pouco maltratado. Ao lado
dos reluzentes ratos na gaiola, ele parecia particularmente lastimável.
—
Hum — fez a bruxa, levantando Perebas. — Que idade tem esse rato?
—
Não sei — respondeu Rony. — Ele é bem velho. Foi do meu irmão.
—
Que poderes ele tem? — perguntou a bruxa, examinando Perebas atentamente.
—
Ah... — A verdade é que Perebas jamais revelara o menor vestígio de
poderes interessantes, o olhar da bruxa se deslocou da orelha esquerda e
esfiapada de Perebas para a pata dianteira, que tinha um dedinho a menos,
e deu um muxoxo alto.
—
Este aqui já sofreu muito na vida — disse ela.
—
Já estava assim quando Percy me deu — respondeu Rony se defendendo.
—
Não se pode esperar que um rato comum ou rato de jardim como esse viva
mais do que uns três anos — disse a bruxa. — Agora se o senhor estiver
procurando alguma coisa mais resistente, talvez goste de um desses...
Ela
indicou os ratos negros, que imediatamente recomeçaram a saltar. Rony
resmungou:
—
Exibidos.
—
Bem, se o senhor não quiser outro, pode experimentar um tônico para ratos
— disse a bruxa, levando a mão embaixo do balcão e apanhando um frasquinho
vermelho.
—
Está bem. Quanto...
Rony
se encolheu quando uma coisa enorme e laranja saiu voando do teto da
gaiola mais alta e aterrissou na cabeça dele, e em seguida avançou e bufou
com violência para Perebas.
—
NÃO BICHENTO, NÃO! — gritou a bruxa, mas Perebas escapuliu entre as suas
mãos como uma barra de sabão molhado, aterrissou de pernas abertas no chão
e disparou para a porta.
—
Perebas! — berrou Rony, correndo atrás do rato; Harry seguiu-o.
Os
dois levaram quase dez minutos para recuperar Perebas, que se refugiara
embaixo de um latão de lixo à porta da Artigos de Qualidade para Quadribol.
Rony tornou a enfiar o rato trêmulo no bolso e se endireitou, massageando
os cabelos.
—
Que foi aquilo?
—
Ou um gato muito grande ou um tigre muito pequeno — disse Harry.
—
Aonde foi a Mione?
—
Provavelmente comprando a coruja.
Eles
refizeram o caminho pela rua apinhada de gente até a Animais Mágicos.
Quando iam chegando, viram Hermione sair, mas ela não trazia coruja
alguma. Seus braços envolviam com firmeza um enorme gato laranja.
—
Você comprou aquele monstro? — perguntou Rony, boquiaberto.
—
Ele é lindo, não é? — disse Hermione radiante.
Era
uma questão de opinião, pensou Harry. A pelagem do gato era espessa e
fofa, mas ele decididamente tinha pernas arqueadas e uma cara de poucos
amigos, estranhamente amassada, como se tivesse batido de frente numa
parede de tijolos. Agora que Perebas não estava à vista, porém, o gato
ronronava satisfeito nos braços de Hermione.
—
Mione, essa coisa quase me escalpelou! — reclamou Rony.
—
Foi sem querer, não foi, Bichento? — perguntou Hermione.
—
E o que vai ser do Perebas? — disse o menino apontando para o calombo no
bolso do peito. — Ele precisa de descanso e sossego! Como é que vai
ter isso com esse bicho por perto?
—
Isto me lembra que você esqueceu o seu tônico para ratos — disse Hermione,
batendo o frasco vermelho na mão de Rony. — E pare de se preocupar,
Bichento vai dormir no meu dormitório e Perebas no seu, qual é o problema?
Coitado do Bichento, a bruxa disse que ele está na loja há séculos;
ninguém quis o gato.
—
Por que será? — perguntou Rony com sarcasmo, a caminho do Caldeirão
Furado.
Encontraram
o Sr. Weasley sentado no bar, lendo o Profeta Diário.
—
Harry! — exclamou ele, erguendo a cabeça e sorrindo. — Como vai?
—
Bem, obrigado — respondeu o garoto enquanto ele, Rony e Hermione se
reuniam ao Sr. Weasley com todas as compras que tinham feito.
O
Sr. Weasley pôs o jornal de lado e Harry viu a foto de Sirius Black, agora
muito sua conhecida, encarando-o.
—
Então eles ainda não pegaram o homem? — perguntou.
—
Não — respondeu o Sr. Weasley, parecendo muito sério. — O Ministério nos
tirou do nosso trabalho normal para tentar encontrá-lo, mas até agora não
tivemos sorte.
—
Nós receberíamos uma recompensa se o apanhássemos? — perguntou Rony. —
Seria bom ganhar mais um dinheirinho...
—
Não seja ridículo, Rony — disse o Sr. Weasley, que a um olhar mais atento
parecia muito tenso. — Black não vai ser apanhado por um bruxo de
treze anos. Os guardas de Azkaban é que vão levá-lo de volta, escreva
o que digo.
Naquele
momento a Sra. Weasley entrou no bar, carregada de sacas e acompanhada
pelos gêmeos, Fred e Jorge, que iam começar o quinto ano em Hogwarts;
Percy, o recém eleito monitor-chefe; e Gina, a caçula e única menina da
família.
Gina,
que sempre teve um xodó por Harry, pareceu ainda mais constrangida do que
de costume, talvez porque o menino lhe salvara a vida no ano anterior,
em Hogwarts. Ela ficou muito corada e murmurou um "olá", sem olhar para Harry. Percy, porém, estendeu
a mão solenemente como se ele e o colega jamais tivessem se
encontrado e disse:
—
Harry. Que prazer em vê-lo.
—
Olá, Percy — respondeu Harry, tentando conter o riso.
—
Você está bem, espero? — continuou Percy pomposo, durante o aperto de
mãos. Parecia até que estava sendo apresentado ao prefeito.
—
Muito bem, obrigado...
—
Harry! — exclamou Fred, empurrando Percy com os cotovelos e fazendo uma
grande reverência. — É simplesmente esplêndido encontrá-lo, meu caro...
—
Maravilhoso — disse Jorge, empurrando Fred para o lado e, por sua vez,
apertando a mão de Harry. — Absolutamente maravilhoso.
—
Agora chega — interrompeu-os a Sra. Weasley.
—
Mãe! — exclamou Fred como se tivesse acabado de avistá-la, apertando-lhe a
mão também: — É realmente formidável encontrá-la...
—
Eu já disse que chega — disse a Sra. Weasley, descansando as compras em
uma cadeira vazia. — Olá, Harry, querido. Suponho que tenha sabido das
nossas eletrizantes novidades? — Ela apontou para o distintivo de prata
novinho em folha no peito de Percy. — É o segundo monitor-chefe na
família! -exclamou, inchada de orgulho.
—
E o último — resmungou Fred para si mesmo.
—
Não duvido nada — disse a Sra. Weasley, franzindo a testa de repente. —
Estou reparando que até hoje vocês dois não foram promovidos a monitores.
—
E para que é que nós queremos ser monitores? — perguntou Jorge, parecendo
se indignar até com a própria idéia. — Isso tiraria toda a graça da vida.
Gina
abafou o riso.
—
Vocês deviam dar um exemplo melhor para sua irmã! — ralhou a Sra.
Weasley.
—
Gina tem outros irmãos para lhe dar exemplo, mãe — disse Percy com
altivez. — Vou mudar de roupa para o jantar...
Ele
desapareceu e Jorge deixou escapar um suspiro.
—
Bem que a gente tentou trancar ele numa pirâmide — disse a Harry. — Mas a
mamãe flagrou a gente no ato.
O
jantar àquela noite foi muito agradável. Tom, o dono do bar-hospedaria, juntou
três mesas na sala, e os sete Weasley, Harry e Hermione traçaram cinco
pratos maravilhosos.
—
Como vamos para a estação de King"s Cross amanhã, papai? — perguntou Fred
quando enfiavam a colher em um suntuoso pudim de chocolate.
—
O Ministério vai mandar dois carros — disse o Sr. Weasley. Todos ergueram os
olhos para ele.
—
Por quê? — perguntou Percy, curioso.
—
Por sua causa, Percy — disse Jorge, sério. — E vão botar bandeirinhas em
cima dos capôs, com as letras TC...
—
... Significando Tremendo Chefão — completou Fred.
Todos,
à exceção de Percy e da Sra. Weasley, deram risadinhas baixando o rosto
para os pudins.
—
Por que é que o Ministério vai mandar carros, pai? — Percy repetiu a
pergunta, num tom muito digno.
—
Bem, como não temos mais nenhum — disse o Sr. Weasley —, e como trabalho
lá, eles vão me fazer esse favor...
Sua
voz era displicente, mas Harry não pôde deixar de notar que as orelhas do
Sr. Weasley tinham ficado vermelhas, iguais às de Rony quando o
pressionavam.
—
E ainda bem — disse a Sra. Weasley, animada. — Vocês fazem idéia de quanta
bagagem têm juntos? Que bela figura vocês fariam no metrô dos trouxas...
Todo mundo já está de mala pronta ou não?
—
Rony ainda não guardou todas as coisas novas no malão — disse Percy, com
voz de sofredor. — Largou tudo em cima da minha cama.
—
É melhor você subir e guardar tudo direito, Rony porque não vamos ter
tempo amanhã cedo — disse a Sra. Weasley alto, para o filho sentado mais
longe. Rony amarrou a cara para Percy.
Depois
do jantar todos se sentiram satisfeitos e cheios de sono.
Um
a um foram subindo para os quartos para verificar as coisas para o
dia seguinte. Rony e Percy estavam hospedados no quarto ao lado de Harry.
Ele acabara de fechar e trancar seu malão quando ouviu vozes zangadas
através da parede, e foi ver o que estava acontecendo.
A
porta do quarto doze estava entreaberta e Percy gritava:
—
Estava aqui, em cima da mesa-de-cabeceira, eu o tirei para polir...
—
Eu não peguei, está bem? — berrava Rony em resposta.
—
Que está acontecendo? — perguntou Harry.
—
Meu distintivo de monitor-chefe sumiu — respondeu Percy virando-se
irritado para Harry.
—
E o tônico para ratos de Perebas também — falou Rony, jogando as coisas
para fora do malão para procurá-lo. — Acho que deixei o frasco no bar...
—
Você não vai a lugar nenhum até achar o meu distintivo — berrou Percy.
—
Eu vou buscar o remédio do Perebas. Já fiz a mala — disse Harry a Rony, e
desceu.
Harry
estava no corredor a meio caminho do bar, agora mal iluminado, quando
ouviu outras duas vozes zangadas que vinham da sala. Um segundo depois,
ele as reconheceu como sendo as do Sr. e da Sra. Weasley. Hesitou, sem
querer que eles soubessem que os ouvira discutindo, mas a menção do seu
nome o fez parar, e, num segundo momento, se aproximar da porta da
sala.
—
... Não faz sentido não contar a ele — o Sr. Weasley dizia, veemente. — O
garoto tem o direito de saber. Tentei dizer isso a Fudge, mas ele
insiste em tratar
Harry como criança. O menino já tem treze anos e...
—
Arthur, a verdade iria aterrorizar Harry! — disse a Sra. Weasley com a voz
esganiçada. — Você quer mesmo mandar Harry de volta à escola com
essa ameaça pairando sobre a cabeça dele? Pelo amor de Deus, ele está
feliz sem saber de nada!
—
Não quero fazê-lo infeliz, quero deixá-lo de sobreaviso! — retrucou o Sr.
Weasley. — Você sabe como são o Harry e o Rony andando por aí sozinhos, já
foram parar na Floresta Proibida duas vezes! Mas Harry não pode fazer isto
este ano! Quando penso o que poderia ter acontecido a ele na noite em que
fugiu de casa! Se o Nôitibus não o tivesse apanhado, aposto que ele
estaria morto antes do Ministério encontrá-lo.
—
Mas ele não está morto, está são e salvo, então qual é o sentido...
—
Molly, dizem que Sirius Black é doido, e talvez seja, mas ele foi
suficientemente esperto para fugir de Azkaban, e isto é uma coisa que
todos supõem que seja impossível. Já faz três semanas e nem sinal dele, e
não dou a mínima para o que Fudge vive declarando ao Profeta Diário,
estamos tão próximos de apanhar Black quanto estamos de inventar uma
varinha que funcione sozinha. A única coisa de que temos certeza é que
Black está atrás de...
—
Mas Harry está perfeitamente seguro em Hogwarts.
—
Achávamos que Azkaban era perfeitamente segura. Se Black foi capaz de sair
de Azkaban, então é capaz de entrar em Hogwarts.
—
Mas ninguém tem realmente certeza de que Black esteja atrás de Harry...
Ouviu-se
um baque seco na mesa e Harry não teve dúvida de que o Sr. Weasley tinha
dado um soco na mesa.
—
Molly, quantas vezes preciso lhe dizer a mesma coisa? A imprensa não
noticiou porque Fudge não queria que houvesse escândalo, mas Fudge foi
até Azkaban na noite em
que Black fugiu. Os guardas lhe disseram que
Black andava falando durante o sono havia algum tempo. Sempre as
mesmas palavras: "Ele está em Hogwarts... Ele
está em Hogwarts." Black é desequilibrado, Molly, e quer ver
Harry morto. Se você quer saber, ele acha que se matar Harry vai trazer
Você-Sabe-Quem de volta ao poder. Black perdeu tudo naquela noite em que Harry deteve
Você-Sabe-Quem, e passou doze anos sozinho em Azkaban pensando nisso..
Fez-se
silêncio. Harry chegou mais perto da porta, desesperado para ouvir mais.
—
Bem, Arthur, você deve fazer o que acha que é certo. Mas está se
esquecendo de Alvo Dumbledore. Acho que nada poderá fazer mal a Harry em
Hogwarts enquanto Dumbledore for o diretor. Suponho que ele esteja sabendo
de tudo isso.
—
Claro que sabe. Tivemos que lhe perguntar se se importava que os guardas
de Azkaban tomassem posição junto às entradas da escola. Ele não ficou
muito satisfeito, mas concordou.
—
Não ficou satisfeito? Por que não ficaria satisfeito, se os guardas estão
lá para agarrar o Black?
—
Dumbledore não gosta dos guardas de Azkaban — disse o Sr. Weasley deprimido. —
Nem eu, se você quer saber... Mas estar lidando com um bruxo como Black,
por vezes a gente tem que se aliar com gente que se prefere evitar. Se
eles salvarem Harry... Então nunca mais direi uma palavra contra eles — disse o
Sr. Weasley cansado. — Já está tarde, Molly, é melhor subirmos...
Harry
ouviu as cadeiras serem mexidas. O mais silenciosamente que pôde, correu
pelo corredor até o bar e desapareceu de vista. A porta da sala se
abriu, e alguns segundos depois o ruído de passos lhe informou que o Sr. e
a Sra. Weasley estavam subindo as escadas.
O
frasco de tônico para ratos estava debaixo da mesa à qual o grupo se
sentara mais cedo. Harry esperou até a porta do quarto do Sr. e da Sra.
Weasley se fechar, depois tornou a subir levando o vidro.
Encontrou
Fred e Jorge agachados nas sombras do patamar, rindo a mais não poder de
ouvir Percy desmontar o quarto que ocupava com Rony, à procura do
distintivo.
—
Está conosco — sussurrou Fred a Harry — Andamos dando uma melhorada nele.
No
distintivo agora se lia Tremendo Chefão.
Harry
forçou uma risada, foi entregar a Rony o frasco de tônico para ratos,
depois se trancou em seu quarto e foi se deitar.
Então
Sirius Black estava atrás dele. Isto explicava tudo. Fudge ter sido
indulgente porque ficara aliviadíssimo de encontrá-lo vivo.
Fizera
Harry prometer não sair do Beco Diagonal onde havia um grande número de
bruxos para vigiá-lo. E ia mandar dois carros do Ministério para levá-los
à estação no dia seguinte, de modo que os Weasley pudessem cuidar de
Harry até ele embarcar no trem.
Harry
ficou deitado ouvindo a gritaria abafada no quarto vizinho e imaginando
por que não se sentia mais apavorado. Sirius Black matara treze pessoas
com uma maldição;
O
Sr. e a Sra. Weasley obviamente pensavam que Harry entraria em pânico se
soubesse da verdade. Mas, por acaso, Harry concordava inteiramente com o
Sr, Weasley que o lugar mais seguro da terra era aquele em que Alvo Dumbledore acontecesse
de estar. As pessoas não diziam sempre que Dumbledore era a única pessoa
de quem Lord Voldemort já tivera medo? Com certeza Black, sendo o braço
direito de Voldemort, não teria também igual medo do diretor?
E
agora havia os guardas de Azkaban de quem todos não paravam de falar. Eles
pareciam deixar as pessoas paralisadas de pavor e, se
estavam de prontidão a toda volta da escola, as chances de Black
entrar lá pareciam muito remotas.
Não,
considerando tudo, a coisa que mais incomodava Harry era o fato de que
suas chances de visitar Hogsmeade agora eram zero.
Ninguém
iria querer que Harry deixasse a segurança do castelo até Black ser
apanhado; aliás, Harry suspeitava que todos os seus movimentos seriam
atentamente vigiados até que o perigo passasse.
Olhou
zangado para o teto escuro. Será que achavam que ele não sabia se cuidar?
Já escapara de Lord Voldermort três vezes; não era um completo inútil...
Sem
que ele quisesse, a imagem do animal nas sombras da Rua Magnólia perpassou
sua mente. Que é que se faz quando se
sabe que o pior está por vir...
—
Eu não vou ser morto — disse Harry em voz alta.
—
É assim que se fala, querido — disse seu espelho, cheio de sono.
CAPÍTULO
CINCO
O
Dementador
No
dia seguinte, Tom acordou Harry, com o seu habitual sorriso banguela e uma
xícara de chá. O garoto se vestiu, e tentava convencer uma mal disposta
Edwiges a entrar na gaiola quando Rony irrompeu no quarto, vestindo um
suéter pela cabeça e parecendo irritado.
—
Quanto mais cedo embarcarmos no trem melhor — disse. — Pelo menos posso
fugir do Percy em
Hogwarts. Agora ele está me acusando de pingar chá
na foto da Penelope Clearwater. Sabe — disse Rony com uma careta —,
aquela namoradinha dele. Ela escondeu a cara na moldura porque ficou com o
nariz todo borrado...
—
Tenho uma coisa para lhe dizer — começou Harry, mas foram interrompidos
por Fred e Jorge, que meteram a cara no quarto para cumprimentar Rony por
ter enfurecido Percy novamente.
Eles
desceram para tomar café, e encontraram o Sr. Weasley lendo a primeira
página do Profeta Diário com a testa franzida e a Sra. Weasley descrevendo
para Hermione e Gina a poção de amor que preparara quando era moça. As três não
paravam de rir.
—
Que é que você ia me dizer? — perguntou Rony a Harry quando se sentaram.
—
Depois — murmurou Harry na hora em
que Percy irrompeu pela sala.
Harry
não teve mais oportunidade de falar com Rony nem com Hermione no caos
da partida ficaram demasiado ocupados, descendo as malas pela estreita
escada do Caldeirão Furado e empilhando-as perto da porta, com Edwiges e
Hermes, a coruja de Percy, encarapitadas no alto das gaiolas. Uma cestinha
de vime fora deixada ao lado da pilha de malas, de onde alguma coisa
bufava ruidosamente.
—
Tudo bem, Bichento — tranqüilizou-o Hermione pelas frestas do vime. —
Vou soltar você no trem.
—
Não vai, não — retorquiu Rony. — O que vai ser do coitado
do Perebas, hein?
O
menino apontou para o próprio peito, onde um grande calombo indicava que
Perebas estava enroscado no bolso interno da veste.
O
Sr. Weasley, que estivera à porta aguardando os carros do Ministério,
meteu a cabeça na entrada do Caldeirão.
—
Eles chegaram — anunciou. — Harry, vamos.
O
Sr. Weasley cruzou atrás de Harry o trechinho de calçada entre a
hospedaria e o primeiro dos dois carros verde-escuros e antiquados, cada
um dirigido por um bruxo de aparência furtiva, vestido de veludo
verde-vivo.
—
Para dentro, Harry — disse o Sr. Weasley, verificando um lado e outro da
rua movimentada.
Harry
entrou no banco traseiro do carro e se reuniram a ele Hermione, Rony e,
para desgosto de Rony, Percy.
A
viagem até King"s Cross foi muito tranqüila se comparada à de Harry
no Nôitibus Andante. Os carros do Ministério da Magia pareciam quase
comuns, embora Harry reparasse que eram capazes de deslizar por espaços
apertados que o novo carro da companhia do tio Válter certamente não teria
podido. O grupo chegou à estação de King"s Cross com vinte
minutos de antecedência; os motoristas do Ministério apanharam carrinhos,
descarregaram a bagagem, cumprimentaram o Sr. Weasley, levando a mão
ao chapéu, e partiram, conseguindo, sabe-se lá como, tomar a dianteira de
uma fila de carros parados no sinal luminoso.
O
Sr. Weasley manteve-se colado no cotovelo de Harry todo o percurso até a
estação.
—
Certo então — disse ele olhando para todos os lados. — Vamos fazer isso
aos pares, porque somos muitos. Eu passo primeiro com Harry.
O
Sr. Weasley dirigiu-se à barreira entre as plataformas nove e dez,
empurrando o carrinho de malas e aparentemente muito interessado no
Interurbano que acabara de parar na plataforma nove. Com um olhar expressivo
para Harry, ele se encostou displicentemente na barreira. O garoto
imitou-o.
Num
segundo, os dois atravessaram de lado a sólida parede de metal e saíram na
plataforma 9 e ½, quando ergueram a cabeça, viram o Expresso de Hogwarts,
um trem vermelho a vapor, que soltava baforadas de fumaça na plataforma
apinhada de bruxas e bruxos que foram levar os filhos ao embarque.
Percy
e Gina apareceram de repente atrás de Harry. Ofegavam e pelo jeito tinham
corrido para atravessar a barreira.
—
Ah, olha lá a Penelope! — falou Percy, alisando os cabelos e corando de
novo. O olhar de Gina surpreendeu o de Harry, e os dois se viraram
para esconder o riso, enquanto Percy ia ao encontro da menina de
cabelos longos e cacheados, com o peito estufado para que ela não deixasse
de reparar no seu distintivo reluzente.
Depois
que os outros Weasley e Hermione se reuniram a eles, Harry e o Sr. Weasley
saíram andando até os últimos carros do trem, passando por cabines
cheias, até uma que lhes pareceu bem vazia. Embarcaram as malas na
cabine, guardaram Edwiges e Bichento no bagageiro, depois tornaram a sair
para que todos pudessem se despedir do Sr. e da Sra. Weasley.
A
Sra. Weasley beijou os filhos, depois Hermione e, por fim, Harry. O menino
ficou encabulado, mas gostou bastante quando ela lhe deu mais um abraço.
—
Você vai se cuidar, não vai, Harry? — recomendou a senhora, se endireitando,
com um brilho estranho nos olhos. Depois, abriu uma enorme bolsa e
disse:
—
Fiz sanduíches para todos... Tome aqui, Rony... Não, não são de
carne enlatada... Fred? Onde se meteu o Fred? Tome aqui, querido...
—
Harry — disse o Sr. Weasley discretamente —, venha até aqui um instante.
Indicou
com a cabeça uma coluna, e Harry acompanhou-o até detrás dela, deixando os
outros amontoados em volta da Sra. Weasley.
—
Há uma coisa que preciso dizer antes de você embarcar... — começou o Sr.
Weasley com a voz tensa.
—
Tudo bem, Sr. Weasley. Eu já sei.
—
Você sabe? Como poderia saber?
—
Eu... Ah... Ouvi o senhor e a Sra. Weasley conversando ontem à noite. Não
pude deixar de ouvir — Harry acrescentou rapidamente. — Me desculpe...
—
Não era assim que eu queria que você tivesse sabido — disse
o Sr. Weasley, parecendo aflito.
—
Não... Sinceramente, tudo bem. Assim o senhor não faltou com a palavra que
deu ao Fudge e eu sei o que está acontecendo.
—
Harry, você deve estar apavorado...
—
Não estou — disse Harry honestamente. — Verdade — acrescentou, porque o
Sr. Weasley fazia cara de descrença. — Não estou tentando bancar o herói,
mas, sério, o Sirius Black não pode ser pior do que o Voldemort, pode?
O
Sr. Weasley se perturbou ao som daquele nome, mas conseguiu disfarçar.
—
Harry, eu sabia que você tinha mais fibra do que Fudge parece imaginar, e
é óbvio que fico feliz em constatar que você não se sente apavorado,
mas...
—
Arthur! — chamou a Sra. Weasley, que agora tocava os garotos para embarcar
no trem. — Arthur, que é que você está fazendo? O trem já vai sair!
—
Ele já está indo, Molly! — respondeu o Sr. Weasley, mas voltou sua atenção
para Harry e continuou a falar em tom mais baixo e mais apressado.
—
Ouça, eu quero que você me dê sua palavra...
—
... De que serei um bom menino e não sairei do castelo? — disse Harry com
tristeza.
—
Não é bem isso — disse o Sr. Weasley, que parecia mais sério do que Harry
jamais o vira. — Harry, jure que você não vai sair procurando o Black.
Harry
arregalou os olhos.
—
Quê?
Ouviu-se
um apito forte. Guardas caminhavam ao lado do trem, batendo as portas para
fechá-las.
—
Prometa, Harry — disse o Sr. Weasley, falando ainda mais depressa —, que
aconteça o que acontecer...
—
Por que eu iria sair procurando alguém que eu sei que quer me matar? —
perguntou Harry sem entender.
—
Prometa que ouça o que ouvir...
—
Arthur, vamos rápido! — chamou a Sra. Weasley.
O
vapor saia da chaminé da locomotiva em gordas nuvens; o trem começara a se
mexer. Harry correu para a porta da cabine e Rony abriu-a e se
afastou para o amigo embarcar. Os dois se debruçaram na janela e acenaram
para o Sr. e a Sra. Weasley até o trem fazer uma curva e o casal
desaparecer de vista.
—
Preciso falar com vocês em particular — murmurou Harry para Rony e
Hermione quando o trem ganhou velocidade.
—
Vai saindo, Gina — disse Rony.
—
Ah, quanta gentileza — respondeu a garota aborrecida, mas se afastando sem
pressa.
Harry,
Rony e Hermione saíram pelo corredor à procura de uma cabine vazia, mas
todas estavam cheias exceto uma bem no finalzinho do trem.
Esta
tinha apenas um ocupante, um homem que estava ferrado no sono ao lado da
janela. Os garotos pararam à porta. O Expresso de Hogwarts era em geral
reservado aos estudantes e, até então, eles nunca tinham visto um adulto a
bordo, exceto a bruxa que passava com a carrocinha de comida.
O
estranho usava um conjunto de vestes de bruxo extremamente surradas e
cerzidas em vários lugares. Parecia doente e cansado. Embora fosse
jovem, seus cabelos castanho-claros estavam salpicados de fios brancos.
—
Quem vocês acham que ele é? — sibilou Rony quando se sentaram e fecharam a
porta, ocupando os assentos mais afastados da janela.
—
O Profº. R. J. Lupin
— cochichou Hermione na mesma hora.
—
Como é que você sabe?
—
Está na maleta — respondeu a menina, apontando para o bagageiro acima da
cabeça do homem, onde havia uma maleta gasta e amarrada com vários
fios de barbante caprichosamente trançados. O nome Profº. R. J. Lupin estava estampado a um canto em
letras descascadas.
—
Que será que ele ensina? — perguntou Rony, amarrando a cara para o perfil
pálido do homem.
—
É óbvio — sussurrou Hermione. — Só existe uma vaga, não é? Defesa contra
as Artes das Trevas.
Harry,
Rony e Hermione já tinham tido dois professores nessa matéria, e ambos só
duraram um ano letivo. Corriam boatos de que o cargo estava enfeitiçado.
—
Bem, espero que ele esteja à altura — disse Rony em tom de dúvida. — Dá a
impressão de que um bom feitiço acabaria com ele de vez, não acham?
Em todo o caso... — Rony virou-se para Harry.
—
Que é que você ia nos dizer?
Harry
contou toda a conversa entre o Sr. e a Sra. Weasley e o alerta que aquele
senhor acabara de lhe dar. Quando terminou, Rony olhava abobado e
Hermione cobrira a boca com as mãos. Finalmente a menina baixou as mãos e
disse:
—
Sirius Black fugiu para vir atrás de você? Ah, Harry... Você vai ter que tomar
muito, mas muito cuidado. Não vai sair por aí procurando
encrenca, Harry...
—
Eu não saio por aí procurando encrenca — respondeu Harry, irritado. — Em
geral as encrencas é que vêm ao meu encontro.
—
Harry teria que ser um bocado obtuso para sair procurando um biruta que
quer matá-lo, não acha?— falou Rony com a voz tremula.
Eles
estavam reagindo às noticias pior do que Harry esperara.
Tanto
Rony quanto Hermione pareciam ter muito mais medo de Black do que ele
próprio.
—
Ninguém sabe como foi que o homem fugiu de Azkaban — disse Rony
embaraçado. — Ninguém jamais tinha feito isso antes. E ainda por cima, ele
era um prisioneiro de segurança máxima.
—
Mas vão pegá-lo, não vão? — perguntou Hermione muito séria. — Quero dizer,
todos os trouxas estão procurando Black também...
—
Que barulho foi esse? — perguntou Rony de repente. Uma espécie de apitinho
fraco vinha de algum lugar. Os garotos procuraram por toda a cabine.
—
Está vindo do seu malão, Harry — disse Rony se levantando e esticando os
braços para o bagageiro. Pouco depois retirava o bisbilhoscópio de
bolso, que fora guardado entre as vestes de Harry.
O
objeto girava muito rápido na palma da mão de Rony e emitia um
brilho intenso.
—
Isso é um bisbilhoscópio? — perguntou Hermione, interessada, levantando-se
para ver melhor.
—
É... E veja bem, é dos baratinhos — disse Rony. — Endoidou quando o
amarrei na perna de Errol para mandar para Harry.
—
Você estava fazendo alguma coisa suspeita na hora? — perguntou Hermione
astutamente.
—
Não! Bem... Eu não devia estar usando o Errol. Você sabe, ele não pode
realmente fazer viagens longas... Mas como é que eu ia mandar o presente
do Harry?
—
Ponha-o de volta no malão — aconselhou Harry enquanto o bisbilhoscópio
continuava a apitar baixinho —, senão vamos acordar o homem.
O
menino indicou o Profº. Lupin com a cabeça. Rony enfiou o bisbilhoscópio
dentro de um par de meias velhas do tio Válter particularmente horrendas,
o que abafou o som, depois fechou a tampa do malão.
—
Poderíamos mandar verificar esse bisbilhoscopio em Hogsmeade — disse Rony,
sentando-se outra vez. — Vendem essas coisas na Dervixes e Bangues,
instrumentos mágicos e artigos sortidos. Foi o que Fred e Jorge me
contaram.
—
Você conhece muita coisa de Hogsmeade? — perguntou Hermione interessada. —
Li que é o único povoado inteiramente bruxo da Grã-Bretanha...
—
É, acho que é — disse Rony meio sem pensar —, mas não é por isso que quero
ir lá. Só quero conhecer a Dedosdemel!
—
E o que é a Dedosdemel? — perguntou Hermione.
—
É uma loja de doces — disse Rony, com uma expressão sonhadora assomando em
seu rosto —, que tem de tudo.. Diabinhos de Pimenta... Que fazem a
boca fumegar... E enormes Chocobolas recheadas de musse de morango e
creme cozido, e Canetas de açúcar realmente ótimas, que a gente pode
chupar em classe e fazer de conta que está pensando no que se vai
escrever...
—
Mas Hogsmeade é um lugar muito interessante, não é? — insistiu Hermione,
pressurosa. O livro Sítios Históricos da Bruxaria diz que a
estalagem foi o quartel-general da Revolta dos Duendes de 1612, e diz
que a Casa dos Gritos é o prédio mais mal-assombrado da Grã-Bretanha...
—
E bolas maciças de sorvete de frutas que fazem a gente levitar uns
centímetros acima do chão enquanto está comendo — continuou Rony,
que decididamente não estava ouvindo uma palavra do que Hermione
dizia.
A
garota virou-se para Harry.
—
Não vai ser ótimo sair um pouco da escola e explorar Hogsmeade?
—
Imagino que sim — respondeu Harry deprimido. — Você vai ter que me contar
quando descobrir.
—
Como assim? — perguntou Rony.
—
Não posso ir. Os Dursley não assinaram o meu formulário
de autorização e o Fudge também não quis assinar.
Rony
fez uma cara de horror.
—
Você não tem autorização para ir? Mas... Nem pensar... McGonagall ou alguém vai
ter que lhe dar essa autorização...
Harry
deu uma risada forçada. A Profª. McGonagall, diretora da Grifinória, era
muito rigorosa.
—
... Ou podemos apelar para o Fred e o Jorge, eles conhecem todas as
passagens secretas para sair do castelo...
—
Rony! — ralhou Hermione com severidade. — Acho que o Harry não devia sair
escondido da escola com o Black solto por aí...
—
É, imagino que é o que McGonagall vai dizer quando eu pedir autorização —
disse Harry amargurado.
—
Mas se nós estivermos com ele — disse Rony, animado, a Hermione — Black
não ousaria...
—
Ah, Rony, não diz besteira — retrucou Hermione. — Black já matou um monte
de gente bem no meio de uma rua movimentada. Você acha mesmo que ele
vai se preocupar se vai ou não atacar Harry só porque nós estamos
presentes?
Hermione
mexia com as alças da cesta de Bichento enquanto falava.
—
Não solta essa coisa! — exclamou Rony, mas tarde demais;
Bichento
saltou com leveza da cesta, espreguiçou-se, bocejou e pulou nos joelhos de
Rony;
O
calombo no peito do menino estremeceu e ele empurrou Bichento com raiva.
—
Dê o fora daqui!
—
Rony, não! — disse Hermione, zangada.
O
menino ia responder quando o Profº. Lupin se mexeu. Eles o miraram com
apreensão, mas ele simplesmente virou a cabeça para o outro lado, a boca
ligeiramente entreaberta, e continuou a dormir.
O
Expresso de Hogwarts rodava numa velocidade constante para o norte e o
cenário à janela ia se tornando cada vez mais bravio e escuro enquanto
as nuvens, no alto, se avolumavam. Estudantes passavam pela porta da
cabine correndo para cima e para baixo. Bichento agora se acomodara num
assento vazio, a cara amassada virada para Rony, os olhos amarelos
cravados no bolso do peito dele.
Á
uma hora, a bruxa gorducha com o carrinho de comida chegou à porta da
cabine.
—
Vocês acham que a gente devia acordar o professor? — perguntou Rony sem
graça, indicando Lupin com a cabeça. — Ele está com cara de quem podia
comer alguma coisa.
Hermione
se aproximou cautelosamente do homem.
—
Hum... Professor? Com licença, professor?
O
homem não se mexeu.
—
Não se preocupe, querida — disse a bruxa entregando a Harry uma montanha
de bolos de caldeirão. — Se ele tiver fome quando acordar, vou estar lá na
frente com o maquinista.
—
Suponho que ele esteja dormindo — disse Rony baixinho quando a bruxa
fechou a porta da cabine. — Quero dizer: ele não morreu, não é?
—
Não, está respirando — sussurrou Hermione, pegando o bolo de caldeirão que
Harry lhe passava.
Talvez
o Profº. Lupin não fosse uma ótima companhia, mas sua presença na cabine
dos garotos tinha suas vantagens. No meio da tarde, bem na hora em que a
chuva começou a cair, embaçando os contornos das colinas ondulantes por
que passavam, os meninos ouviram novamente passos no corredor, e surgiram
à porta as três pessoas que eles menos gostavam no mundo: Draco
Malfoy, ladeado pelos seus asseclas, Vicente Crabbe e Gregório Goyle.
Draco
Malfoy e Harry eram inimigos desde que se encontraram na primeira viagem
de trem para Hogwarts. Malfoy, que tinha uma cara desdenhosa, pálida e
pontuda, era aluno da Sonserina; jogava como apanhador no time de sua
casa, a mesma posição de Harry no time da Grifinória. Crabbe e Goyle
pareciam existir para fazer o que Draco mandava. Eram grandes e musculosos;
Crabbe, mais alto, tinha um pescoço muito grosso e um corte de cabelos
de cuia; os cabelos de Goyle eram curtos e espetados, e seus braços
compridos como os de um gorila.
—
Ora! vejam só quem está aqui — disse Draco naquela sua voz arrastada,
abrindo a porta da cabina , Potinha e Fuinha.
Crabbe
e Goyle riram feito trasgos.
—
Ouvi dizer que seu pai finalmente pôs as mãos no ouro neste verão — disse
Malfoy. — Sua mãe não morreu do choque?
Rony
se levantou tão depressa que derrubou a cesta de Bichento no chão. O
Profº. Lupin soltou um pequeno ronco.
—
Quem é esse ai? — perguntou Draco, dando automaticamente um passo atrás,
ao ver Lupin.
—
Professor novo — disse Harry que se levantou também, caso precisasse
segurar Rony. — Que é que você ia dizendo mesmo, Draco?
Os
olhos muito claros do menino se estreitaram; ele não era bobo de puxar uma
briga bem debaixo do nariz de um professor.
—
Vamos — murmurou Draco, contrariado, para Crabbe e Coyle, e os três
sumiram.
Harry
e Rony tornaram a se sentar, Rony massageando os nós dos dedos.
—
Não vou aturar nenhum desaforo de Draco este ano — disse cheio de raiva. —
Estou falando sério. Se ele disser mais uma piadinha sobre a minha
família, vou agarrar a cabeça dele e...
Rony
fez um gesto violento no ar.
—
Rony — sibilou Hermione, apontando para o Profº. Lupin —, cuidado...
Mas
o Profº. Lupin continuava ferrado no sono.
A
chuva engrossava à medida que o trem avançava mais para o norte; as
janelas agora iam se tornando um cinza sólido e tremeluzente, que
gradualmente escureceu até as lanternas se acenderem nos corredores e por
cima dos bagageiros. O trem sacolejava, a chuva fustigava, o vento rugia,
mas, ainda assim, o Profº. Lupin continuava adormecido.
—
Devemos estar quase chegando — disse Rony, curvando-se para frente para
olhar, além do professor, a janela agora completamente escura.
Nem
bem essas palavras tinham saído de sua boca e o trem começou a reduzir a
velocidade.
—
Legal — exclamou Rony, levantando-se e passando com todo o cuidado pelo
Profº. Lupin para tentar ver lá fora. — Estou morrendo de fome. Quero
chegar logo para o banquete...
—
Nós ainda não chegamos — disse Hermione, consultando o relógio. — Então
por que estamos parando?
O
trem foi rodando cada vez mais lentamente. Quando o ronco dos pistôes
parou, o barulho do vento e da chuva de encontro às janelas pareceu mais
forte que nunca.
Harry,
que estava mais próximo da porta, levantou-se para espiar o corredor. Por
todo o carro, cabeças, curiosas, surgiram à porta das cabines.
O
trem parou completamente com um tranco, e baques e pancadas distantes
sinalizaram que as malas tinham despencado dos bagageiros. Em seguida,
sem aviso, todas as luzes se apagaram e eles mergulharam em total
escuridão.
—
Que é que está acontecendo? — ouviu-se a voz de Rony às costas de Harry.
—
Ai! — exclamou Hermione. — Rony, isto é o meu pé!
Harry
voltou ao seu lugar, às apalpadelas.
—
Vocês acham que o trem enguiçou?
—
Não sei...
Ouviu-se
um barulho de pano esfregando vidro e Harry viu os contornos difusos de
Rony desembaçando um pedaço da vidraça da janela para espiar.
—
Tem uma coisa se mexendo lá fora — disse ele. — Acho que está embarcando
gente no trem...
A
porta da cabine se abriu repentinamente e alguém caiu por cima das pernas
de Harry, machucando-o.
—
Desculpe... Você sabe o que está acontecendo?... Ai... Desculpe...
—
Ai, Neville — disse Harry tateando no escuro e levantando o colega pela
capa.
—
Harry? É você? Que é que está acontecendo?
—
Não tenho idéia... Senta...
Ouviu-se
um sibilo forte e um ganido de dor; Neville tentara se sentar em cima
do Bichento.
—
Vou perguntar ao maquinista o que está acontecendo — ouviu-se a voz de
Hermione. Harry sentiu a amiga passar por ele, ouviu a porta deslizar, e
em seguida um baque e dois berros de dor.
—
Quem é?
—
Quem é?
—
Gina?
—
Mione?
—
Que é que você está fazendo?
—
Estava procurando o Rony!
—
Entra aqui e senta...
—
Aqui não! — disse Harry depressa. — Eu estou aqui!
—
Ai! — disse Neville.
—
Silêncio! — ordenou uma voz rouca, de repente.
O
Profº. Lupin parecia ter finalmente acordado. Harry ouviu movimentos no
canto em que ele estava. Ninguém disse nada.
Seguiu-se
um estalinho e uma luz trêmula inundou a cabine. Pelo que viam, o
professor estava empunhando um feixe de chamas. Elas iluminavam um rosto
cansado e cinzento, mas seus olhos tinham uma expressão alerta e
cautelosa.
—
Fiquem onde estão — disse com a mesma voz rouca, e começou a
se levantar lentamente segurando as chamas à sua frente.
Mas
a porta se abriu antes que Lupin pudesse alcançá-la.
Parado
à porta, iluminado pelas chamas trêmulas na mão do professor, havia um
vulto de capa que alcançava o teto. Seu rosto estava completamente
oculto por um capuz. Harry baixou os olhos depressa, e o que ele viu
provocou uma contração em seu estômago. Havia uma mão saindo da capa e
ela brilhava, um brilho cinzento, de aparência viscosa e coberta de
feridas, como uma coisa morta que se decompusera na água...
Mas
foi visível apenas por uma fração de segundo. Como se a criatura sob a
capa percebesse o olhar de Harry, a mão foi repentinamente ocultada nas
dobras da capa preta.
E
então a coisa encapuzada, fosse o que fosse, inspirou longa e lentamente,
uma inspiração ruidosa, como se estivesse tentando inspirar mais do que o
ar à sua volta.
Um
frio intenso atingiu todos os presentes. Harry sentiu a própria respiração
entalar no peito. O frio penetrou mais fundo em sua pele. Chegou ao
fundo do peito, ao seu próprio coração...
Os
olhos de Harry giraram nas órbitas. Ele não conseguiu ver mais nada.
Estava se afogando no frio. Sentia um farfalhar nos ouvidos que lembrava
água correndo. Estava sendo puxado para o fundo, o farfalhar aumentou para
um ronco que aumentava...
Então,
vindos de muito longe, ouviu gritos, terríveis, apavorados, suplicantes.
Ele queria ajudar quem gritava, tentou mexer os braços, mas não
conseguiu... Um nevoeiro claro e denso rodopiava à volta dele, dentro dele...
—
Harry! Harry! Você está bem?
Alguém
batia no seu rosto.
-Q...
Quê?
Harry
abriu os olhos; havia lanternas no alto e o chão sacudia.
—
O Expresso de Hogwarts recomeçara a andar e as luzes tinham voltado.
Aparentemente ele escorregara do assento para o chão.
Rony
e Hermione estavam ajoelhados ao seu lado, e acima dos seus amigos ele viu
que Neville e o professor o observavam. Harry se sentiu muito doente;
quando ergueu a mão para ajeitar os óculos no nariz, sentiu um suor
frio no rosto.
Rony
e Hermione puxaram-no para cima do assento.
—
Você está bem? — perguntou Rony, nervoso.
—
Estou — disse Harry, olhando depressa para a porta. A criatura encapuzada
desaparecera. — Que aconteceu? Onde está aquela... Aquela coisa? Quem gritou?
—
Ninguém gritou — disse Rony, ainda mais nervoso.
Harry
olhou para todos os lados da cabine iluminada. Gina e Neville retribuíram
seu olhar, ambos muito pálidos.
—
Mas eu ouvi gritos...
Um
forte estalo assustou os meninos. O Profº. Lupin partia em pedaços uma
enorme barra de chocolate.
—
Tome — disse a Harry, oferecendo-lhe um pedaço particularmente avantajado.
— Coma. Vai fazer você se sentir melhor.
Harry
apanhou o chocolate, mas não o comeu.
—
Que era aquela coisa? — perguntou a Lupin.
—
Um dementador — respondeu Lupin, que agora distribuía o chocolate para
todos. — Um dos dementadores de Azkaban.
Todos
o olharam espantados. O professor amassou a embalagem vazia de chocolate e
meteu-a no bolso.
—
Coma — insistiu. — Vai lhe fazer bem. Preciso falar com o maquinista, me
dêem licença...
Ele
passou por Harry e desapareceu no corredor.
—
Você tem certeza de que está bem? — perguntou Hermione, observando-o com
ansiedade.
—
Não entendo... Que foi que aconteceu? — perguntou Harry, enxugando mais
suor do rosto.
—
Bem... Aquela coisa... O dementador... Ficou parado ali olhando, quero
dizer, acho que foi, não pude ver o rosto dele... E você...
—
Pensei que você estava tendo um acesso ou coisa parecida — disse Rony, que
conservava no rosto uma expressão de pavor — Você ficou todo duro,
escorregou do assento e começou a se contorcer...
—
E o Profº. Lupin saltou por cima de você, foi ao encontro do dementador,
puxou a varinha — contou Hermione — e disse: "Nenhum de nós está escondendo Sirius Black dentro da capa.
Vá." — Mas o dementador não se mexeu, então Lupin murmurou alguma
coisa e da varinha saiu um raio prateado contra a coisa, e ela deu as
costas e se afastou como se deslizasse...
—
Foi horrível — disse Neville numa voz mais alta do que de costume. — Vocês
sentiram como ficou frio quando ele entrou?
—
Eu me senti esquisito — disse Rony, sacudindo os ombros, desconfortável. —
Como se eu nunca mais fosse sentir alegria na vida...
Gina,
que se encolhera a um canto parecendo quase tão mal quanto Harry, deu um
solucinho; Hermione aproximou-se e passou um braço pelas costas da
menina para consolá-la.
—
Mas nenhum de vocês caiu do assento? — perguntou Harry sem graça.
—
Não — disse Rony, olhando para Harry, ansioso, outra vez. — Mas Gina tremia
feito louca...
Harry
não entendeu. Sentia-se fraco e cheio de arrepios, como se estivesse se
recuperando de uma gripe muito forte; começava também a sentir um
início de vergonha. Por que desmaiara daquele jeito, quando mais
ninguém desmaiara?
O
Profº. Lupin voltou. Parou ao entrar, olhando para todos e disse, com um
leve sorriso:
—
Eu não envenenei o chocolate, sabem...
Harry
deu uma dentada e, para sua grande surpresa, sentiu de repente um calor se
espalhar até as pontas dos dedos dos pés e das mãos.
—
Vamos chegar a Hogwarts dentro de dez minutos — disse o Profº. Lupin. —
Você está bem, Harry?
O
menino não perguntou como é que o professor sabia seu nome.
—
Muito bem — murmurou ele, constrangido.
Ninguém
falou muito durante o resto da viagem. Por fim, o trem parou na estação de
Hogsmeade e houve uma grande correria para desembarcar; corujas
piavam, gatos miavam e o sapo de estimação de Neville coaxou alto debaixo
do chapéu do seu dono. Estava frio demais na minúscula plataforma; a chuva descia
em cortinas geladas.
—
Alunos do primeiro ano por aqui! — chamou uma voz conhecida. Harry, Rony e
Hermione se viraram e depararam com o vulto gigantesco de Hagrid,
no outro extremo da plataforma, fazendo sinal para os novos
alunos, aterrorizados, se aproximarem para a tradicional travessia do
lago.
—
Tudo bem, vocês três? — gritou Hagrid sobre as cabeças dos alunos
aglomerados. Eles acenaram para o guarda-caça, mas não tiveram chance de
lhe falar porque a massa de alunos em volta deles os empurrava na direção
oposta.
Harry,
Rony e Hermione acompanharam o resto da escola pela plataforma e desceram
para uma trilha enlameada, cheia de altos e baixos, onde no mínimo uns
cem coches os aguardavam, cada qual, Harry só podia supor, puxado por
um cavalo invisível, porque os garotos embarcaram em um, fecharam a porta
e o veículo saiu andando, aos trancos e balanços, formando um
cortejo.
O
coche cheirava levemente a mofo e palha. Harry se sentia melhor desde o
chocolate, mas continuava fraco. Rony e Hermione não paravam de lhe lançar olhares
de esguelha, como se temessem que ele pudesse desmaiar outra vez.
Quando
o coche foi se aproximando de um magnífico portão de ferro forjado,
ladeado por colunas de pedra com javalis alados no alto, Harry viu mais
dois dementadores encapuzados montando guarda dos lados do portão. Uma
onda de náusea e frio tornou a invadi-lo; ele se recostou no banco
encalombado e fechou os olhos até atravessarem a entrada. O coche
ganhou velocidade no caminho longo e inclinado até o castelo; Hermione se
debruçou pela janelinha, espiando as muitas torrinhas e torres que
se aproximavam. Por fim, o coche parou balançando, e Hermione e
Rony desembarcaram.
Quando
Harry ia descendo, uma voz arrastada e satisfeita chegou aos seus ouvidos.
—
Você desmaiou, Potter? Longbottom está falando a verdade? Desmaiou mesmo,
é?
Draco
passou por Hermione acotovelando-a, para impedir Harry de subir as escadas
de pedra do castelo, o rosto jubilante e os olhos claros brilhando de
malícia.
—
Se manda, Malfoy — disse Rony, cujos maxilares estavam cerrados.
—
Você também desmaiou, Weasley? — perguntou Draco em voz alta. — O velho
dementador apavorante também o assustou, Weasley?
—
Algum problema? — perguntou uma voz suave, O Profº. Lupin acabara de
desembarcar do coche seguinte.
Malfoy
lançou ao Profº. Lupin um olhar insolente, que registrou os remendos em
suas vestes e a mala surrada. Com uma sugestão de sarcasmo na voz, ele
respondeu:
—
Ah, não... Hum... Professor — depois fez cara de riso para Crabbe e
Goyle, e subiu com os dois as escadas do castelo.
Hermione
bateu nas costas de Rony para apressá-lo, e os três se reuniram aos
muitos alunos que enchiam as escadas, cruzavam a soleira das enormes
portas de carvalho e penetravam no saguão cavernoso iluminado com tochas
ardentes, onde havia uma magnífica escadaria de mármore para os
andares superiores.
A
porta que levava ao Salão Principal, à direita, estava aberta;
Harry
seguiu o grande número de alunos que se deslocava naquela direção, mas
apenas vislumbrara o teto encantado, que àquela noite se mostrava escuro e
anuviado, quando uma voz o chamou:
—
Potter! Granger! Quero falar com os dois! Os garotos se viraram surpresos.
A Profª. McGonagall, que ensinava Transformação e dirigia a Casa da
Grifinória, os chamava por cima das cabeças dos demais. Era uma bruxa de
aspecto severo, que usava os cabelos presos em um coque apertado; seus
olhos penetrantes eram emoldurados por óculos quadrados. Harry abriu
caminho até ela com esforço e um mau pressentimento: a Profª. McGonagall tinha
o condão de fazê-lo sentir que fizera alguma coisa errada.
—
Não precisa ficar tão preocupado, só quero dar uma palavrinha com vocês na
minha sala — disse ela. — Pode continuar o seu caminho, Weasley.
Rony
ficou olhando a professora se afastar, com Harry e Hermione, da aglomeração
de alunos que falavam sem parar; os três atravessaram o saguão,
subiram a escadaria de mármore e seguiram por um corredor.
Já
na sala, um pequeno aposento com uma grande e acolhedora lareira, a
professora fez sinal a Harry e Hermione para que se sentassem.
Ela
própria se sentou à escrivaninha e disse sem rodeios:
—
O Profº. Lupin mandou à frente uma coruja para avisar que você tinha
passado mal no trem, Potter.
Antes
que o garoto pudesse responder, ouviu-se uma leve batida na porta e Madame
Pomfrey, a enfermeira, entrou com seu ar eficiente.
Harry
sentiu o rosto corar. Já era bastante ruim que tivesse desmaiado, ou o que
fosse, sem todo mundo ficar fazendo aquele alvoroço.
—
Eu estou bem — disse. — Não preciso de nada...
—
Ah, então foi você? — exclamou Madame Pomfrey, ignorando o comentário de
Harry e se curvando para examiná-lo mais de perto. — Suponho que
tenha feito outra vez alguma coisa perigosa.
—
Foi um dementador, Papoula. — informou McGonagall.
As
duas, trocaram olhares misteriosos e Madame Pomfrey deu um muxoxo de
desaprovação.
—
Postar dementadores em volta da escola — murmurou, afastando os cabelos de
Harry e sentindo a temperatura na testa dele.
—
O menino não vai ser o último a desmaiar. É, está úmido de suor. Eles são
terríveis e o efeito que produzem nas pessoas que já são delicadas...
—
Eu não sou delicado! — exclamou Harry aborrecido.
—
Claro que não é — disse Madame Pomfrey distraída, agora tomando o seu
pulso.
—
Do que é que ele precisa? — perguntou a Profª. McGonagall, decidida. —
Repouso? Quem sabe não fosse bom passar a noite na ala hospitalar?
—
Eu estou ótimo! — disse Harry, levantando-se de um salto. A idéia do que
Draco iria dizer se ele tivesse que ir para a ala hospitalar foi uma
tortura.
—
Bem, ele devia, no mínimo, tomar um chocolate — disse Madame Pomfrey, que
agora tentava examinar os olhos de Harry.
—
Já comi chocolate — disse ele. — O Profº. Lupin me deu. Deu a todos nós.
—
Deu, foi? — exclamou a bruxa-enfermeira em tom de aprovação. — Então
finalmente conseguimos um professor de Defesa contra as Artes das Trevas
que sabe o que faz!
—
Você tem certeza de que está se sentindo bem, Potter? — perguntou
a Profª. McGonagall bruscamente.
—
Estou — respondeu Harry.
—
Muito bem. Por favor esperem aí fora enquanto dou uma palavrinha com a
Srta. Granger sobre sua programação para o ano letivo, depois podemos
descer juntos para a festa.
Harry
saiu para o corredor com Madame Pomfrey, que seguiu para a ala hospitalar,
resmungando sozinha. Ele só precisou esperar uns minutinhos; Hermione
apareceu com um ar muito feliz, acompanhada pela professora, e todos
desceram a escadaria de mármore para o Salão Principal.
Havia
um mar de chapéus cônicos e pretos; cada uma das compridas mesas das casas
estava lotada de estudantes, os rostos iluminados por milhares de
velas que flutuavam no ar, acima das mesas.
O
Profº. Flitwick, que era um bruxo franzino de cabeleira branca, carregava
um chapéu antigo e um banquinho de três pernas para fora da sala.
—
Ah — comentou Hermione em voz baixa —, perdemos a cerimônia da seleção!
Os
novos alunos de Hogwarts eram distribuídos pelas quatro casas do colégio,
pondo na cabeça o Chapéu Seletor, que anunciava a casa (Grifinória,
Corvinal, Lufa-Lufa ou Sonserina) que melhor convinha ao recém-chegado. A
Profª. McGonagall dirigiu-se ao seu lugar, que estava vazio à mesa
dos professores e funcionários e Harry e Hermione seguiram na direção
oposta, o mais silenciosamente possível para se sentarem à mesa da
Grifinória. As pessoas viraram a cabeça para olhá-los passar pelo
fundo do salão, e alguns apontaram para Harry. Será que a história do seu
desmaio ao topar com o dementador se espalhara com tanta rapidez?
Ele
e Hermione se sentaram um de cada lado de Rony, que guardara seus lugares.
—
Que história foi essa? — murmurou Rony para Harry.
O
amigo começou a lhe explicar aos cochichos, mas naquele momento, o diretor
se ergueu para falar e ele se calou.
O
Profº. Dumbledore, embora muito velho, sempre dava uma impressão de grande
energia. Tinha alguns palmos de cabelos e barbas prateados, óculos
de meia-lua e um nariz muito torto. Em geral era descrito como o maior
bruxo da era atual, mas não era esta a razão por que Harry o respeitava.
Não era possível deixar de confiar em Alvo Dumbledore , e
quando Harry o contemplou sorrindo radiante para os alunos à sua volta,
sentiu-se calmo, pela primeira vez, desde que o dementador entrara na
cabine do trem.
—
Sejam bem-vindos! — começou Dumbledore, a luz das velas tremeluzindo em
suas barbas. — Sejam bem-vindos para mais um ano em Hogwarts! Tenho
algumas coisas a dizer a todos, e uma delas é muito séria. Acho que é
melhor tirá-la do caminho antes que vocês fiquem tontos com esse
excelente banquete...
O
diretor pigarreou e prosseguiu:
—
Como vocês todos perceberam, depois da busca que houve no Expresso de
Hogwarts, a nossa escola passou a hospedar alguns dementadores de
Azkaban, que vieram cumprir ordens do Ministério da Magia.
Ele
fez uma pausa e Harry se lembrou do que o Sr. Weasley comentara sobre a
insatisfação de Dumbledore quanto ao fato de os dementadores estarem
montando guarda na escola.
—
Eles estão postados em cada entrada da propriedade e, enquanto estiverem
conosco, é preciso deixar muito claro que ninguém deve sair da escola sem
permissão. Os dementadores não se deixam enganar por truques nem
disfarces, nem mesmo por capas de invisibilidade — acrescentou ele
brandamente, e Harry e Rony se entreolharam. — Não faz parte da natureza
deles entender súplicas nem desculpas. Portanto, aviso a todos e a cada um
em particular, para não darem a esses guardas razão para lhes fazerem
mal. Apelo aos monitores, e ao nosso monitor e monitora chefes, para que
se certifiquem de que nenhum aluno entre em conflito com os dementadores.
Percy,
que estava sentado a algumas cadeiras de distância de Harry, estufou o
peito outra vez e olhou à volta cheio de importância.
Dumbledore
fez nova pausa; percorreu o salão com um olhar muito sério mas ninguém se mexeu
nem emitiu som algum.
—
Agora, falando de coisas mais agradáveis — continuou ele —, tenho o prazer
de dar as boas-vindas a dois novos professores este ano. Primeiro, o Profº. Lupin, que teve a bondade
de aceitar ocupar a vaga de professor de Defesa contra as Artes das
Trevas.
Ouviram-se
algumas palmas dispersas e pouco entusiásticas.
Somente
os que tinham estado na cabine de trem com o novo professor bateram palmas
animados, Harry entre eles. Lupin parecia particularmente mal vestido ao
lado dos outros professores que trajavam suas melhores vestes.
—
Olha a cara do Snape! — sibilou Rony ao ouvido de Harry.
O
olhar do Profº. Snape, mestre de Poções, passou pelos professores que
ocupavam a mesa e se deteve em
Lupin. Era fato sabido que Snape queria o cargo
de professor de Defesa contra as Artes das Trevas, mas até Harry, que
o detestava, se surpreendeu com a expressão que deformou o seu rosto
macilento. Era mais do que raiva: era desprezo. Harry conhecia aquela
expressão bem demais; era a que Snape usava sempre que o avistava.
—
Quanto ao nosso segundo contratado — continuou Dumbledore quando cessavam
as palmas mornas para o Profº. Lupin. — Bem, lamento informar que o Profº.
Ketrleburn, que ensinava Trato das Criaturas Mágicas, aposentou-se no fim
do ano passado para poder aproveitar melhor os membros que ainda lhe
restam. Contudo, tenho o prazer de informar que o seu cargo será
preenchido por ninguém menos que Rúbeo Hagrid, que concordou em
acrescentar essa responsabilidade docente às suas tarefas de guarda-caça.
Harry,
Rony e Hermione se entreolharam, estupefatos. Em seguida acompanharam os
aplausos, que foram tumultuosos principalmente à mesa da Grifinória. Harry
se esticou para frente para ver Hagrid, que tinha o rosto vermelho-rubi,
os olhos postos nas mãos enormes, e o sorriso largo escondido
no emaranhado de sua barba escura.
—
Nós devíamos ter adivinhado! — berrou Rony, dando socos na mesa. —
Quem mais teria nos mandado comprar um livro que morde?
Os
três garotos foram os últimos a parar de aplaudir e quando o Profº.
Dumbledore recomeçou a falar, eles viram que Hagrid estava enxugando
os olhos na toalha da mesa.
—
Bem, acho que, de importante, é só o que tenho a dizer. Vamos à festa!
As
travessas e taças de ouro diante das pessoas se encheram inesperadamente
de comida e bebida. Harry, de repente faminto, se serviu de tudo que
conseguiu alcançar e começou a comer.
Foi
um banquete delicioso; o salão ecoava as conversas, os risos e o
tilintar de talheres. Harry, Rony e Hermione, porém, estavam ansiosos para
a festa terminar para poderem conversar com Hagrid.
Sabiam
o quanto significava para ele ser nomeado professor. O guarda-caça
não era um bruxo diplomado; fora expulso de Hogwarts no terceiro ano por
um crime que não cometera. Harry, Rony e Hermione é que tinham limpado o
seu nome no ano anterior.
Finalmente,
quando os últimos pedaços deliciosos de torta de abóbora tinham
desaparecido das travessas de ouro, Dumbledore anunciou que era hora de
todos se recolherem e os meninos tiveram a oportunidade que aguardavam.
—
Hagrid! — exclamou Hermione quando se aproximaram da mesa dos
professores.
—
Graças a vocês — disse Hagrid, enxugando o rosto brilhante de
lágrimas no guardanapo e erguendo os olhos para os garotos. — Nem
consigo acreditar... Grande homem, o Dumbledore... Veio direto à minha
cabana quando o Profº. Kettleburn disse que para ele já chegava... É
o que eu sempre quis... .
Dominado
pela emoção, ele escondeu o rosto no guardanapo e a Profª. McGonagall
tocou os meninos para fora.
Harry,
Rony e Hermione se reuniram aos outros colegas da Grifinória
que ocupavam toda a escadaria de mármore e agora, muito cansados, caminharam
por mais corredores e mais escadas até a entrada secreta para a torre da
Grifinória. Uma grande pintura a óleo de uma mulher gorda vestida de rosa
perguntou-lhes:
—
A senha?
—
Já estou indo, já estou indo! — gritou Percy lá do fim do ajuntamento. — A
nova senha? Fortuna Major!
—
Ah, não! — exclamou Neville Longbottom com tristeza. Ele sempre tinha
dificuldade para se lembrar das senhas.
Depois
de atravessar o buraco do retrato e a sala comunal, as garotas e garotos
tomaram escadas separadas. Harry subiu a escada circular sem pensar em
nada exceto na sua felicidade por estar de volta. Quando chegaram
ao dormitório redondo com as camas de colunas que já conheciam,
Harry, olhando a toda volta, se sentiu finalmente em casa.
CAPÍTULO
SEIS
Garras
e Folhas de Chá
Quando
Harry, Rony e Hermione entraram no Salão Principal para tomar café, na
manhã seguinte, a primeira coisa que viram foi Draco Malfoy, que parecia
estar entretendo um grande grupo de alunos da Sonserina com uma história
muito engraçada.
Quando
os três passaram, Malfoy fez uma imitação ridícula de um desmaio que
provocou grandes gargalhadas.
—
Não ligue para ele — disse Hermione, que vinha logo atrás de Harry. — Não
dê bola para ele, não vale a pena...
—
Ei, Potter! — chamou esganiçada Pansy Parkinson, uma garota
da Sonserina com cara de buldogue. — Potter! Os dementadores estão
chegando. Potter! Uuuuuuuuuuuu!
Harry
se largou numa cadeira à mesa da Grifinória, ao lado de Jorge Weasley.
—
Novos horários de aulas para os alunos do terceiro ano — disse Jorge,
distribuindo-os. — Que é que há com você, Harry?
—
Malfoy — informou Rony, sentando-se do outro lado de Jorge e olhando feio
para a mesa da Sonserina.
Jorge
ergueu os olhos na hora em
que Malfoy fingia desmaiar de terror outra vez.
—
Aquele debilóide! — disse calmamente. — Ele não estava tão exibido ontem à
noite quando os dementadores revistaram o nosso lado do trem.
Entrou correndo na nossa cabine, não foi, Fred?
—
Quase fez xixi nas calças — disse Fred, lançando a Draco um olhar de desprezo.
—
Nem eu fiquei muito feliz — comentou Jorge. — Eles são um horror, aqueles
dementadores...
—
Meio que congelam a gente por dentro, não acha? — disse Fred.
—
Mas você não desmaiou, desmaiou? — perguntou Harry em voz baixa.
—
Esquece isso, Harry — disse Jorge para animá-lo. — Papai teve que ir a
Azkaban uma vez, lembra, Fred? E comentou que foi o pior lugar em que
esteve na vida, voltou de lá fraco e abalado... Eles sugam a felicidade
do lugar, esses dementadores.
A maioria dos prisioneiros acaba endoidando.
—
Em todo caso, vamos ver se Draco vai continuar tão felizinho depois do
primeiro jogo de Quadribol — disse Fred. — Grifinória contra
Sonserina, primeiro jogo da temporada, está lembrado?
A
única vez em que Harry
e Draco tinham se enfrentado em uma partida de Quadribol, Draco
decididamente tinha levado a pior. Sentindo-se um pouquinho
mais animado, Harry se serviu de salsichas e tomates fritos.
Hermione
examinava seu novo horário.
—
Ah, que ótimo, estamos começando matérias novas hoje — comentou satisfeita.
—
Hermione — disse Rony, franzindo a testa ao olhar por cima do ombro da
amiga — bagunçaram o seu horário. Veja só: dez aulas por dia. Não existe
tempo para tudo isso.
—
Eu me arranjo. Já combinei tudo com a Profª. Minerva.
—
Mas olha aqui — continuou Rony, rindo-se —, está vendo hoje de manhã? Nove
horas, Adivinhação. E embaixo, nove horas, Estudo dos Trouxas. E — o
menino se curvou para olhar o horário, mas de perto, incrédulo — olha,
embaixo tem Aritmancia, nove horas. Quero dizer, eu sei que você é boa,
Mione, mas ninguém é tão bom assim. Como é que você vai poder
assistir a três aulas ao mesmo tempo?
—
Não seja bobo — disse Hermione com rispidez. — É claro que não vou
assistir a três aulas ao mesmo tempo.
—
Bom, então...
—
Passe a geléia — pediu Hermione.
—
Mas...
—
Ah, Rony, é da sua conta se o meu horário ficou um pouco cheio demais? —
perguntou a menina em tom zangado. — Já disse que combinei tudo com a
Profª. Minerva.
Nesse
instante Hagrid entrou no Salão Principal. Estava usando o casaco de pele
de toupeira e distraidamente balançava um gambá na mão enorme.
—
Tudo bem? — perguntou ele, ansioso, parando a caminho da mesa dos
professores. — Vocês vão assistir à primeira aula da minha vida! Logo
depois do almoço! Estou acordado desde as cinco horas aprontando tudo...
Espero que dê certo... Eu, professor... Sinceramente...
E
dando um grande sorriso para os garotos foi para sua mesa, ainda
balançando o gambá.
—
O que será que ele andou aprontando? — comentou Rony, com uma nota de
ansiedade na voz.
O
salão começou a se esvaziar à medida que as pessoas saíam para a primeira
aula. Rony verificou seu horário.
—
É melhor irmos andando, olha, Adivinhação é no alto da Torre Norte. Vamos
levar uns dez minutos para chegar lá...
Os
garotos terminaram o café, apressados, se despediram de Fred e Jorge, e
foram saindo para o saguão. Ao passarem pela mesa da Sonserina, Draco
tornou a fazer a imitação do desmaio. As gargalhadas acompanharam Harry
até a entrada do saguão.
A
viagem pelo castelo até a Torre Norte era longa. Dois anos em Hogwarts não
tinham ensinado aos meninos tudo sobre o lugar, e nunca tinham ido à Torre
Norte antes.
—
Tem... Que... Ter... Um... Atalho — ofegava Rony ao subirem a sétima
longa escada e chegarem a um patamar desconhecido, onde não havia nada
exceto um grande quadro de um campo relvado pendurado na parede de
pedra.
—
Acho que é por aqui — disse Hermione, espiando o corredor vazio à direita.
—
Não pode ser — discordou Rony. — Aí é sul, olha, dá para, ver um pedacinho
do lago pela janela...
Harry
parou para examinar o quadro. Um gordo pônei cinza malhado pisou
lentamente na relva e começou a pastar sem muito entusiasmo. Harry estava
acostumado aos personagens dos quadros de Hogwarts andarem e até saírem
pela moldura para visitar uns aos outros, mas sempre gostava de apreciar
esse movimento. No instante seguinte, um cavaleiro baixo e
atarracado, vestindo armadura, entrou retinindo pelo quadro à procura do
seu pônei.
Pelas
manchas de grama nas joelheiras metálicas, ele acabara de cair do cavalo.
—
Ah-ah! — berrou, vendo Harry, Rony e Hermione. — Quem são esses vilões que
invadem as minhas terras! Porventura vieram zombar da minha queda?
Desembainhem as espadas, seus velhacos, seus cães!
Os
meninos observaram, espantados, o cavaleiro nanico puxar a espada da
bainha e começar a brandi-la com violência, saltando para aqui e para ali
enraivecido. Mas a espada era demasiado comprida para ele; um
golpe particularmente exagerado desequilibrou-o e ele caiu de cara na
grama.
—
O senhor está bem? — perguntou Harry, aproximando-se do quadro.
—
Afaste-se, fanfarrão desprezível! Para trás, patife!
O
cavaleiro retomou a espada e usou-a para se reerguer, mas a lâmina
penetrou fundo na terra e, embora ele a puxasse com toda a força, não
conseguiu retirá-la. Finalmente, teve que se largar outra vez no chão e
levantar a viseira para enxugar o rosto coberto de suor.
—
Escuta aqui — disse Harry, se aproveitando da exaustão do cavaleiro
—, estamos procurando a Torre Norte. O senhor conhece o caminho, não?
—
Uma expedição! — A raiva do cavaleiro pareceu sumir instantaneamente.
Levantou-se retinindo a armadura e gritou: — Sigam-me, caros amigos,
alcançaremos o nosso objetivo ou pereceremos corajosamente na peleja!
Ele
deu mais um puxão inútil na espada, tentou, mas não conseguiu montar o
gordo pônei e gritou:
—
A pé, então, dignos senhores e gentil senhora! Avante! Avante!
E
saiu correndo, a armadura fazendo grande estrépito, passou pelo lado
esquerdo da moldura e desapareceu de vista.
Os
garotos se precipitaram atrás dele pelo corredor, seguindo o barulho da
armadura. De vez em quando o avistavam passando para o quadro seguinte.
—
Sejam fortes, o pior ainda está por vir! — berrou o cavaleiro e os três
o viram reaparecer diante de um grupo assustado de mulheres vestindo anáguas de
crinolina, cujo quadro fora pendurado na parede de uma estreita
escada circular.
Ofegando
ruidosamente, Harry, Rony e Hermione subiram os estreitos degraus em
caracol, sentindo-se cada vez mais tontos, até que finalmente ouviram o
murmúrio de vozes no alto e perceberam que tinham chegado à sala de aula.
—
Adeus! — gritou o cavaleiro, enfiando de repente a cabeça no quadro de uns
monges de aspecto sinistro. — Adeus, meus camaradas de armas! Se um dia
precisarem de um coração nobre e fibra de aço, chamem Sir Cadogan!
—
Ah, sim, chamaremos — murmurou Rony quando o cavaleiro foi sumindo de
vista —, mas se um dia precisarmos de um maluco.
Os
garotos subiram os últimos degraus e chegaram a um minúsculo patamar, onde
a maioria dos colegas já estava reunida. Não havia portas no patamar, mas
Rony cutucou Harry indicando-lhe o teto, onde havia um alçapão circular
com uma placa de latão.
—
Sibila Trelawney, Professora de Adivinhação — leu Harry. — E como é que
esperam que a gente chegue lá em cima?
Como
se respondesse à sua pergunta, o alçapão se abriu inesperadamente e uma
escada prateada desceu aos seus pés. Todos se calaram.
—
Primeiro você — disse Rony sorrindo, e Harry subiu a escada. Chegou à sala
de aula mais esquisita que já vira. Na realidade, sequer parecia uma sala
de aula, e, sim, um cruzamento de sótão com salão de chá antigo. Havia, no
mínimo, vinte mesinhas circulares juntas ali, rodeadas por cadeiras
forradas de chintz e pequenos pufes estufados. O ambiente era iluminado
por uma fraca luz avermelhada; as cortinas das
janelas estavam fechadas e os vários abajures, cobertos com xales
vermelho-escuros. O calor sufocava e a lareira acesa sob um console cheio
de objetos desprendia um perfume denso, enjoativo e doce ao aquecer
uma grande chaleira de cobre. As prateleiras em torno das paredes
circulares estavam cheias de penas empoeiradas, tocos de velas, baralhos
de cartas em tiras, incontáveis bolas de cristal e uma imensa coleção
de xícaras de chá.
—
Rony espiou por cima do ombro de Harry enquanto os colegas se reuniam à
volta deles, todos falando aos cochichos.
—
E onde está a professora? — perguntou Rony.
Uma
voz saiu subitamente das sombras, uma voz suave, meio etérea.
—
Sejam bem-vindos. Que bom ver vocês no mundo físico, finalmente.
A
impressão imediata de Harry foi a de estar vendo um enorme inseto
cintilante. A Profª. Sibila Trelawney saiu das sombras e, à luz da
lareira, os garotos viram que era muito magra; uns óculos imensos
aumentavam seus olhos várias vezes, e ela vestia um xale diáfano, salpicado
de lantejoulas. Em volta do pescoço fino, usava inúmeras correntes e
colares de contas, e seus braços e mãos estavam cobertos de
pulseiras e anéis.
—
Sentem-se, crianças, sentem-se — disse, e todos subiram desajeitados nas
cadeiras ou se afundaram nos pufes. Harry, Rony e Hermione se sentaram a
uma mesa redonda.
—
Bem-vindos à aula de Adivinhação — disse a professora, que se acomodara em
uma bergêre diante da lareira. — Sou a Profª. Sibila Trelawney.
Talvez vocês nunca tenham me visto antes, acho que me misturar com
freqüência à roda-viva da escola principal anuvia minha visão interior.
Ninguém
fez nenhum comentário a tão extraordinária declaração. A professora
rearrumou delicadamente o xale e continuou:
—
Então vocês optaram por estudar Adivinhação, a mais difícil das artes
mágicas. Devo alertá-los logo de início que se não possuírem
clarividência, terei muito pouco a ensinar a vocês. Os livros só podem
levá-los até certo ponto neste campo...
Ao
ouvirem isso, Harry e Rony olharam, sorrindo, para Hermione, que pareceu
assustada com a notícia de que os livros não ajudariam nessa matéria.
—
Muitos bruxos e bruxas, embora talentosos para ruídos, cheiros e
desaparecimentos instantâneos, permanecem, ainda assim, incapazes de
penetrar nos mistérios do futuro.
A
Profª. Sibila continuou a falar, seus enormes olhos brilhantes iam de um
rosto nervoso a outro.
—
É um dom concedido a poucos. Você, menino — disse ela de repente a
Neville, que quase caiu do pufe. — Sua avó vai bem?
—
Acho que vai — respondeu Neville trêmulo.
—
Eu não teria tanta certeza se fosse você, querido — disse a professora,
enquanto a luz das chamas fazia faiscarem seus longos brincos de
esmeraldas.
Neville
engoliu em seco. Sibila
continuou tranquilamente.
—
Vamos cobrir os métodos básicos de adivinhação este ano. O primeiro
trimestre letivo será dedicado à leitura das folhas de chá. No
próximo, abordaremos a quiromancia. A propósito, minha querida — disparou
ela de repente para Parvati Patil
—, tenha cuidado com um homem de cabelos ruivos.
Parvati
lançou um olhar assustado a Rony, que se sentara logo atrás dela, e puxou
a cadeira devagarinho para longe dele.
—
No segundo trimestre — continuou a professora — vamos estudar a bola de
cristal, isto é, se conseguirmos terminar os presságios do fogo. Infelizmente,
as aulas serão perturbadas em fevereiro por uma forte epidemia de gripe.
Eu própria vou perder a voz. E, na altura da Páscoa, alguém aqui vai
deixar o nosso convívio para sempre.
Seguiu-se
um silêncio muito tenso a essa predição, mas a Profª. Sibila pareceu não
tomar conhecimento.
—
Será, querida — dirigiu-se ela a Lilá Brown, que estava mais próxima
e se encolheu na cadeira —, que você poderia me passar o bule de prata
maior?
Lilá,
com um ar de alívio, se levantou, apanhou um enorme bule na prateleira e
pousou-o na mesa diante da mestra.
—
Obrigada, querida. A propósito, essa coisa que você receia vai acontecer
na sexta-feira, dezesseis de outubro.
Lilá
estremeceu.
—
Agora quero que vocês formem pares. Apanhem uma xícara de chá na
prateleira e tragam-na aqui para eu encher. Depois se sentem e bebam,
bebam até restar somente a borra. Sacudam a xícara três vezes com a mão
esquerda, depois virem-na, de borda para baixo, no pires, esperem até cair
a última gota de chá e entreguem-na ao seu par para ele a ler. Vocês vão
interpretar os desenhos formados, comparando-os com os das páginas cinco e
seis de Esclarecendo o futuro. Vou andar pela sala para ajudar e ensinar a
cada par. Ah, e querido — ela segurou o braço de Neville quando ele
fez menção de se levantar —, depois que você quebrar a primeira xícara,
por favor, escolha uma com desenhos azuis, gosto muito das de desenhos
rosa.
Não
deu outra, Neville mal chegara à prateleira de xícaras quando se ouviu um
tilintar de porcelana que se quebrava. A professora deslizou até ele
levando uma pá e uma escova e disse:
—
Uma das azuis, então, querido, se não se importa... Obrigada...
Depois
que Harry e Rony levaram as xícaras para encher, voltaram à mesa
e tentaram beber rapidamente o chá pelando. Sacudiram a borra
conforme a professora mandara, depois viraram as xícaras e as trocaram
entre si.
—
Certo — disse Rony depois de abrirem os livros nas páginas cinco e seis. —
Que é que você vê na minha?
—
Um monte de borra marrom — disse Harry. A fumaça intensamente perfumada da
sala o estava deixando sonolento e burro.
—
Abram suas mentes, meus queridos, e deixem os olhos verem além do que é
mundano! — gritou a Profª. Sibila na penumbra.
Harry
tentou se controlar.
—
Certo, você tem uma espécie de cruz torta... — Ele consultou o
livro Esclarecendo o Futuro. — Isto significa que você vai ter
sofrimentos e provações... Sinto muito... Mas tem uma coisa que podia ser
o sol... Espere ai... Que significa "grande felicidade"...
Então você vai sofrer, mas vai ser muito feliz...
— Você precisa mandar examinar a sua visão interior — disse Rony, e os dois precisaram sufocar o riso quando a professora olhou na direção deles. — Minha vez... — Rony examinou a xícara de Harry, a testa franzida com o esforço. — Tem uma pelota que lembra um pouco um chapéu-coco. Vai ver você vai trabalhar no Ministério da Magia...
— Você precisa mandar examinar a sua visão interior — disse Rony, e os dois precisaram sufocar o riso quando a professora olhou na direção deles. — Minha vez... — Rony examinou a xícara de Harry, a testa franzida com o esforço. — Tem uma pelota que lembra um pouco um chapéu-coco. Vai ver você vai trabalhar no Ministério da Magia...
Rony
girou a xícara para cima.
—
Mas desse outro lado as folhas parecem mais uma bolota de carvalho... Que
será isso? — O garoto consultou seu exemplar de Esclarecendo o Futuro.
—
Uma sorte inesperada, ganhos de ouro. Que ótimo, você pode me
emprestar algum... E tem outra coisa aqui — ele tornou a girar a xícara —
que parece um animal... É, se isso fosse a cabeça... Podia parecer um
hipopótamo... Não, um carneiro...
A
Profª. Sibila se virou quando Harry deixou escapar um ronco de riso.
—
Deixe-me ver isso, querido — disse ela em tom de censura a Rony,
aproximando-se num ímpeto e tirando a xícara de Harry da mão do colega.
Todos se calaram para observar.
A
professora examinou a xícara, e girou-a no sentido anti-horário.
—
O falcão... Meu querido, você tem um inimigo mortal.
—
Mas todos sabem disso — comentou Hermione num cochicho audível. A
professora encarou-a. — Verdade, todos sabem — repetiu a garota. — Todos sabem
da inimizade entre Harry e Você-Sabe-Quem.
Harry
e Rony a olharam com uma mescla de surpresa e admiração. Nunca tinham ouvido
Hermione falar com uma professora daquele jeito.
Sibila
preferiu não responder.
Tornou
a abaixar seus enormes olhos para a xícara de Harry e continuou a girá-la.
—
O bastão... Um ataque. Ai, ai, ai, não é uma xícara feliz...
—
Achei que isso era um chapéu-coco — disse Rony sem graça.
—
O crânio... Perigo em seu caminho, querido...
Todos
observavam, hipnotizados, a professora, que deu um último giro na
xícara, ofegou e soltou um berro.
Ouviu-se
uma nova onda de porcelanas que se partiam tilintando; Neville destruíra
sua segunda xícara. A professora afundou em uma cadeira vazia, a mão
faiscante de anéis ao peito e os olhos fechados.
—
Meu pobre garoto... Meu pobre garoto querido... Não... É mais caridoso não
dizer... Não... Não me pergunte...
—
Que foi professora? — perguntou Dino Thomas na mesma hora. Todos tinham se
levantado e aos poucos se amontoaram em torno da mesa de Harry e
Rony, aproximando-se da cadeira de Sibila para dar uma boa olhada na
xícara de Harry.
—
Meu querido — os olhos da professora se abriram teatralmente —, você tem o
Sinistro.
—
O quê? — perguntou Harry.
Ele
percebeu que não era o único que não entendera; Dino Thomas sacudiu os
ombros para ele e Lilá Brown fez cara de intrigada, mas quase todos os
outros levaram a mão à boca horrorizados.
—
O Sinistro, meu querido, o Sinistro! — exclamou a professora, que parecia
chocada com o fato de Harry não ter entendido. — O cão gigantesco e
espectral que assombra os cemitérios! Meu querido menino, é um mau agouro,
o pior de todos, agouro de morte!
Harry
sentiu o estômago afundar. O cão na capa do livro Presságios de Morte na
Floreios e Borrões — o cão nas sombras da rua Magnólia... Lilá Brown
levou as mãos à boca também. Todos tinham os olhos fixos em Harry, todos
exceto Hermione, que se levantara e procurava chegar às costas da cadeira
da professora.
—
Eu não acho que isso pareça um Sinistro — disse com firmeza.
A
Profª. Sibila mirou a menina atentamente e com crescente desagrado.
—
Desculpe-me dizer isso, minha querida, mas não percebo muita aura ao seu
redor. Pouquíssima receptividade às ressonâncias do futuro.
Simas
Finnegan inclinou a cabeça de um lado para o outro.
—
Parece um Sinistro se a gente fizer assim — disse com os olhos quase
fechados —, mas parece muito mais um burro quando a gente olha de outro
ângulo — disse ele, inclinando-se para a esquerda.
—
Quando vão terminar de resolver se eu vou morrer ou não? — perguntou Harry, surpreendendo
até a si mesmo. Agora parecia que ninguém queria olhar para ele.
—
Acho que vamos encerrar a aula por hoje — disse a professora no tom mais
etéreo possível. — E... Por favor, guardem suas coisas...
Em
silêncio a classe devolveu as xícaras à professora, guardou os livros e
fechou as mochilas. Até mesmo Rony evitava o olhar de Harry.
—
Até que tornemos a nos encontrar — disse Sibila com uma voz fraca — que a
sorte lhes seja favorável. Ah, e querido
— disse apontando para Neville —, você vai se atrasar da próxima vez,
portanto trate de trabalhar muito para recuperar o tempo perdido.
Harry,
Rony e Hermione desceram a escada da Profª. Sibila e a escada em caracol
em silêncio, e seguiram para a aula de Transformação, da Profª. Minerva.
Levaram tanto tempo para encontrar a sala de aula que, por mais cedo que
tivessem saído da aula de Adivinhação, acabaram chegando em cima da hora.
Harry
escolheu um lugar no fundo da sala, sentindo-se como se estivesse sentado
sob um holofote; o resto da classe não parou de lhe lançar
olhares furtivos, como se ele estivesse prestes a cair morto a
qualquer momento. Ele mal conseguiu ouvir o que a professora dizia sobre
Animagos (bruxos que podiam se transformar à vontade em animais), e
sequer estava olhando quando ela própria se transformou, diante dos olhos
deles, em um gato malhado com marcas de óculos em torno dos olhos.
—
Francamente, o que foi que aconteceu com os senhores hoje? — perguntou a Profª.
Minerva, voltando a ser ela mesma, com um estalinho, e encarando a classe
toda. — Não que faça diferença, mas é a primeira vez que a minha
transformação não arranca aplausos de uma turma.
Todas
as cabeças tornaram a se virar para Harry, mas ninguém falou. Então
Hermione ergueu a mão.
—
Com licença, professora, acabamos de ter a nossa primeira aula de
Adivinhação, estivemos lendo folhas de chá e...
—
Ah, naturalmente — comentou Minerva, fechando a cara de repente. — Não
precisa me dizer mais nada, Srta. Granger.
Me diga qual dos senhores vai morrer este ano?
Todos
olharam para ela.
—
Eu — disse, por fim, Harry.
—
Entendo — disse a Profª. Minerva, fixando em Harry seus olhos de contas. —
Então, Potter, é melhor saber que Sibila Trelawney tem predito a morte de um
aluno por ano desde que chegou a esta escola. Nenhum deles morreu ainda.
Ver agouros de morte é a maneira com que ela gosta de dar boas-vindas a
uma nova classe. Não fosse o fato de que nunca falo mal dos meus
colegas...
A
professora se calou, mas todos viram que suas narinas tinham embranquecido
de cólera. Ela continuou, mais calma:
—
A Adivinhação é um dos ramos mais imprecisos da magia. Não vou ocultar dos
senhores que tenho muito pouca paciência com esse assunto. Os verdadeiros
videntes são muito raros e a Profª. Trelawney...
Ela
parou uma segunda vez, e em seguida disse, num tom despido de emoção:
—
Para mim o senhor parece estar gozando de excelente saúde, Potter, por
isso me desculpe, mas não vou dispensá-lo do dever de casa, hoje. Mas
fique descansado, se o senhor morrer, não precisa entregá-lo.
Hermione
riu com gosto. Harry se sentiu um pouco melhor. Era mais difícil sentir
medo de folhas de chá longe daquela sala fracamente iluminada por
luzes vermelhas, que recendia ao perfume atordoante da Profª. Sibila.
Ainda assim, nem todos ficaram convencidos. Rony continuava com a
expressão preocupada e Lilá cochichou:
—
E a xícara de Neville?
Quando
a aula de Transformação terminou, eles se reuniram ao resto dos alunos que
atroavam a escola em direção ao Salão Principal para almoçar.
—
Anime-se, Rony — falou Hermione, empurrando uma travessa de ensopado para
o amigo. — Você ouviu o que a Profª. Minerva disse.
Rony
se serviu do ensopado e apanhou o garfo, mas não começou a comer.
—
Harry — perguntou ele, em tom baixo, com ar sério —, você não viu um
canzarrão preto em algum lugar, viu?
—
Vi, sim. Na noite em que saí da casa dos Dursley. — Rony deixou o garfo
cair com estrépito.
—
Provavelmente um cão sem dono — comentou Hermione calmamente.
O
garoto olhou para Hermione como se ela tivesse enlouquecido.
—
Mione, se Harry viu um Sinistro, isso é... É ruim. Meu tio Abílio viu um
e... E morreu vinte e quatro horas depois!
—
Coincidência — replicou Hermione dignamente, servindo-se de suco de
abóbora.
—
Você não sabe o que está falando! — disse Rony, começando a se zangar. —
Os Sinistros deixam a maioria dos bruxos mortos de medo!
—
Então é isso — retrucou a garota em tom superior. — Eles vêem o Sinistro e
morrem de medo. O Sinistro não é um agouro, é a causa da morte! E
Harry continua conosco porque não é burro de ver um Sinistro e pensar:
“Certo, muito bem, então é melhor eu bater as botas"!
Rony
fez protestos para Hermione, que abriu a mochila, tirou o novo livro de
Aritmancia e apoiou-o na jarra de suco.
—
Acho que Adivinhação é uma coisa meio confusa — disse, procurando a página
que queria. — É muita adivinhação, se querem saber a minha opinião.
—
Não houve nada confuso com o Sinistro naquela xícara! — retrucou Rony
acaloradamente.
—
Você não me pareceu tão confiante quando disse ao Harry que era um
carneiro — respondeu a menina sem se alterar.
—
A Profª. Sibila disse que você não tinha a aura necessária! Você não gosta
é de ser ruim em uma matéria para variar!
Ele
acabara de tocar num ponto sensível. Hermione bateu com o livro de
Aritmancia na mesa com tanta força que voaram pedacinhos de carne e
cenoura para todo lado.
—
Se ser boa em Adivinhação é ter que fingir que estou vendo agouros de
morte em borras de folhas de chá, não tenho certeza se quero continuar a
estudar essa matéria por muito mais tempo! Aquela aula foi uma idiotice
completa se comparada à minha aula de Aritmancia! — E, agarrando a
mochila, a menina se retirou.
Rony
franziu a testa acompanhando com os olhos a amiga se afastando.
—
Do que é que ela estava falando? — perguntou a Harry. — Ela ainda não
assistiu a nenhuma aula de Aritmancia.
Harry
ficou contente de sair do castelo depois do almoço. A chuva do dia
anterior parara; o céu estava claro, cinza-pálido e a grama parecia
elástica e úmida sob os pés quando os garotos rumaram para a
primeiríssima aula de Trato das Criaturas Mágicas.
Rony
e Hermione não estavam se falando. Harry caminhava ao lado dos dois em
silêncio enquanto desciam os gramados em direção à cabana de Hagrid,
na orla da Floresta Proibida.
Somente quando
identificaram três costas muito conhecidas à frente é que se deram
conta de que iriam compartilhar as aulas com os alunos da Sonserina.
Draco, falava animadamente com Crabbe e Goyle, que riam com gosto.
Harry tinha quase certeza de qual era o assunto da conversa.
Hagrid
já estava à espera dos alunos à porta da cabana. Vestia o casaco de pele
de toupeira, com Canino, o cão de caçar javalis, nos calcanhares, e
parecia impaciente para começar.
—
Vamos, andem depressa! — falou quando os alunos se aproximaram. — Tenho uma
coisa ótima para vocês hoje! Vai ser uma grande aula! Estão todos aqui?
Certo, então me acompanhem!
Por
um momento de apreensão, Harry pensou que Hagrid os levaria para a
Floresta Proibida; o menino já tivera suficientes
experiências desagradáveis ali para a vida inteira. No entanto, o
guarda-caça contornou a orla das árvores e cinco minutos depois eles
estavam diante de uma espécie de picadeiro. Não havia nada ali.
—
Todos se agrupem em volta dessa cerca! — mandou ele. — Isso... Procurem
garantir uma boa visibilidade... Agora, a primeira coisa que vão
precisar fazer é abrir os livros...
—
Como? — perguntou a voz fria e arrastada de Draco Malfoy.
—
Que foi? — perguntou Hagrid.
—
Como é que vamos abrir os livros? — repetiu o menino.
Ele
retirou da mochila seu exemplar de O Livro Monstruoso dos
Monstros, amarrado com um pedaço de corda. Outros alunos fizeram o
mesmo, alguns, como Harry, tinham fechado o livro com um cinto; outros os
tinham enfiado em sacos justos ou fechado os livros com grampos.
—
Será... Será que ninguém conseguiu abrir o livro? — perguntou Hagrid, com
ar de desapontamento.
Todos
os alunos sacudiram negativamente as cabeças.
—
Vocês têm que fazer carinho neles — falou o novo professor — como se
isso fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Olhem aqui...
Ele
apanhou o livro de Hermione e rasgou a fita adesiva que o prendia. O livro
tentou morder, mas Hagrid passou seu gigantesco dedo indicador pela
lombada, o livro estremeceu, se abriu e permaneceu quieto em sua mão.
—
Ah, mas que bobeira a nossa! — caçoou Draco. — Devíamos ter feito carinho
no livro! Como foi que não adivinhamos!
—
Eu... Eu achei que eles eram engraçados — disse Hagrid, inseguro, para
Hermione.
—
Ah, engraçadíssimos! — comentou Draco. — Uma idéia realmente espirituosa,
nos dar livros que tentam arrancar nossa mão.
—
Cala a boca, Malfoy — advertiu-o Harry baixinho. Hagrid parecia arrasado,
e o garoto queria que aquela primeira aula do seu amigo fosse um sucesso.
—
Certo, então — continuou Hagrid, que pelo jeito perdera o fio do
pensamento — ... Então vocês já têm os livros e... E... Agora faltam as
criaturas mágicas. É. Então vou buscá-las. Esperem um pouco...
Ele
se afastou na direção da floresta e desapareceu de vista.
—
Nossa, essa escola está indo para o brejo! — falou Draco em voz alta. —
Esse pateta dando aulas, meu pai vai ter um acesso quando eu contar...
—
Cala a boca, Malfoy — repetiu Harry.
—
Cuidado, Potter, tem um dementador atrás de você...
—
Aaaaaaah! — guinchou Lilá Brown, apontando para o lado oposto do
picadeiro.
Trotavam
em direção aos garotos mais ou menos uma dezena dos bichos mais bizarros
que Harry já vira na vida. Tinham os corpos, as pernas traseiras e as
caudas de cavalo, mas as pernas dianteiras, as asas e a cabeça de uma
coisa que lembrava águias gigantescas, com bicos cruéis cinza-metálico e enormes olhos laranja-vivo.
As
garras das pernas dianteiras tinham uns quinze centímetros de comprimento
e um aspecto letal. Cada um dos bichos trazia uma grossa coleira de couro
ao pescoço engatada em uma longa corrente, cujas pontas estavam presas nas
imensas mãos de Hagrid, que entrou correndo no picadeiro atrás dos bichos.
—
Upa! Upa! AÍ! — bradou ele, sacudindo as correntes e incitando os bichos
na direção da cerca onde se agrupavam os alunos.
Todos
recuaram, instintivamente, quando Hagrid chegou bem perto e amarrou os
bichos na cerca.
—
Hipogrifos! — bradou Hagrid alegremente, acenando para eles. — Lindos, não
acham?
Harry
conseguiu entender mais ou menos o que Hagrid quis dizer. Depois que se supera
o primeiro choque de ver uma coisa que é metade cavalo, metade ave, a
pessoa começava a apreciar a pelagem luzidia dos hipogrifos, que
mudava suavemente de pena para pêlo, cada animal de uma cor diferente:
cinza-chuva, bronze, rosado, castanho brilhante e nanquim.
—
Então — disse Hagrid, esfregando as mãos e sorrindo para todos —, se vocês
quiserem chegar mais perto...
Ninguém
pareceu querer. Harry, Rony e Hermione, porém, se aproximaram
cautelosamente da cerca.
—
Agora, a primeira coisa que vocês precisam saber sobre os hipogrifos é que
são orgulhosos — explicou Hagrid. — Se ofendem com facilidade, os
hipogrifos. Nunca insultem um bicho desses, porque pode ser a última coisa que
vão fazer na vida.
Malfoy,
Grabbe e Goyle não estavam prestando atenção; falavam aos cochichos e
Harry teve o mau pressentimento de que estavam combinando a melhor
maneira de estragar a aula.
—
Vocês sempre esperam o hipogrifo fazer o primeiro movimento — continuou
Hagrid. — É uma questão de cortesia, entendem? Vocês vão até eles, fazem
uma reverência e aí esperam. Se o bicho retribuir o cumprimento, vocês
podem tocar nele. Se não retribuir, então saiam de perto bem depressinha,
porque essas garras machucam feio. Certo, quem quer ser o primeiro?
Em
resposta, a maioria dos alunos recuou mais um pouco. Até Harry, Rony e
Hermione se sentiram apreensivos. Os hipogrifos balançavam as cabeças de
aspecto feroz e flexionavam as fortes asas; não pareciam gostar de estar
presos daquele jeito.
—
Ninguém? — disse Hagrid, com um olhar suplicante.
—
Eu vou — disse Harry.
Ouviu-se
gente ofegar atrás dele e Lilá e Parvati murmuraram a mesma coisa:
—
Aaah, não, Harry, lembra das folhas de chá!
Harry
não deu ouvido às meninas. Trepou pela cerca do picadeiro.
—
É assim que se faz, Harry! — gritou Hagrid. — Certo, então... Vamos ver como
você se entende com o Bicuço.
E,
dizendo isso, soltou uma das correntes, separou o hipogrifo cinzento dos
restantes e retirou a coleira de couro. A turma do outro lado da cerca
parecia estar prendendo a respiração.
Os
olhos de Draco se estreitaram maliciosamente.
—
Calma, agora, Harry — disse Hagrid em voz baixa. — Você fez contato
com os olhos, agora tente não piscar... Os hipogrifos não confiam na
pessoa que pisca demais...
Os
olhos de Harry imediatamente começaram a se encher de água, mas ele
não os fechou. Bicuço virava a cabeçorra alerta e fixava um cruel
olho laranja em Harry.
—
Isso mesmo — disse Hagrid. — Isso mesmo, Harry... Agora faça a
reverência...
Harry
não se sentia nada animado a expor a nuca a Bicuço, mas fez o que era
mandado. Curvou-se brevemente e
ergueu os olhos.
O
hipogrifo continuava a fixá-lo com altivez. Nem se mexeu.
—
Ah — exclamou Hagrid, parecendo preocupado. — Certo... Recue, agora,
Harry, devagarinho...
Mas
nesse instante, para enorme surpresa de Harry, o hipogrifo inesperadamente
dobrou os escamosos joelhos dianteiros e afundou o corpo em uma
inconfundível reverência.
—
Muito bem, Harry! — aplaudiu Hagrid, extasiado. — Certo... Pode tocá-lo!
Acaricie o bico dele, vamos!
Com
a impressão de que recuar teria sido uma recompensa melhor, Harry
avançou devagarinho para o hipogrifo e estendeu a mão. Acariciou seu
bico várias vezes e o bicho fechou os olhos demoradamente, como se
estivesse gostando.
A
turma prorrompeu em aplausos, a exceção de Malfoy, Crabbe e Goyle, que
pareciam profundamente desapontados.
—
Certo então, Harry — falou Hagrid. — Acho que ele até deixaria você montar
nele!
Isto
era mais do que o toma lá dá cá proposto por Harry... Ele estava
acostumado a montar vassouras; mas não tinha muita certeza se um hipogrifo
seria a mesma coisa.
—
Isso, suba ali, logo atrás da articulação das asas — mandou Hagrid. —
E cuidado para não arrancar nenhuma pena, ele não vai gostar nem um
pouco...
Harry
pisou no alto da asa de Bicuço e se içou para cima das costas do
bicho, o bicho se ergueu. Harry não tinha muita certeza de onde
deveria se agarrar; à sua frente tudo era coberto de penas.
—
Pode ir, então! — bradou Hagrid, dando uma palmada nos quartos do
hipogrifo.
Sem
aviso, as asas de quase quatro metros se abriram a cada lado de Harry; ele
só teve tempo de se agarrar ao pescoço do hipogrifo e já estava voando
para o alto. Não foi nada semelhante a uma vassoura e Harry soube na hora
qual dos dois preferia; as asas do hipogrifo adejavam desconfortavelmente
dos lados, batendo por baixo de suas pernas e dando-lhe a sensação de
que estava prestes a ser jogado no ar; as penas acetinadas escorregavam
dos seus dedos e o garoto não se atrevia a se agarrar com mais força;
em vez do vôo suave da Nimbus 2000, ele agora balançava para frente e para
trás quando os quartos do hipogrifo subiam e desciam acompanhando o
movimento das asas.
Bicuço
deu uma volta por cima do picadeiro e em seguida embicou para o chão; essa
foi a parte que Harry teve receio; ele jogou o corpo para trás, à
medida que o pescoço liso do bicho abaixava, achando que ia escorregar por
cima do bico, então, sentiu um baque quando os quatro membros
desparelhados do bicho tocaram o chão. Por milagre, conseguiu se
segurar e tornar a se endireitar.
—
Bom trabalho, Harry! — berrou Hagrid enquanto todos, exceto Malfoy, Crabbe
e Goyle, aplaudiam. — Muito bem, quem mais quer experimentar?
Encorajados
pelo sucesso, os outros alunos subiram, cautelosos, pela cerca do
picadeiro. Hagrid soltou os hipogrifos, um a um, e logo os garotos,
nervosos, começaram a fazer reverências por todo o picadeiro. Neville
fugiu várias vezes do dele, pois o bicho não estava com jeito de querer
dobrar os joelhos. Rony e Hermione praticaram no hipogrifo castanho,
enquanto Harry observava.
Malfoy,
Crabbe e Goyle ficaram com Bicuço. Ele acabara de retribuir a reverência
de Malfoy, que agora lhe acariciava o bico, com um ar desdenhoso.
—
Isso é moleza — disse Draco com a voz arrastada, suficientemente alta para
Harry ouvir. — Só podia ser, se o Potter conseguiu fazer.. Aposto que você
não tem nada de perigoso, tem? — disse ao hipogrifo. — Tem, seu
brutamontes feioso?
Aconteceu
num breve movimento das garras de aço; Draco soltou um berro agudo e no
momento seguinte, Hagrid estava pelejando para enfiar a coleira em
Bicuço, enquanto o bicho fazia força para avançar no garoto, que caíra
dobrado na relva, o sangue aflorando em suas vestes.
—
Estou morrendo! — gritou Malfoy enquanto a turma entrava em pânico. -Estou
morrendo, olhem só para mim! Ele me matou!
—
Você não está morrendo! — disse Hagrid, que ficara muito pálido. — Alguém
me ajude... Preciso tirar ele daqui...
Hermione
correu para abrir o portão enquanto Hagrid erguia Malfoy nos braços, sem
esforço. Quando os dois passaram, Harry observou que havia um corte grande
e fundo no braço de Draco; o sangue pingava no gramado e o guarda-caça,
com o garoto ao colo, subiu correndo a encosta em direção ao castelo.
Muito
abalados, os alunos da aula de Trato das Criaturas Mágicas os seguiram
caminhando normalmente. Os alunos da Sonserina gritavam contra Hagrid.
—
Deviam despedir ele, imediatamente! — disse Violeta Parkinon, que estava
às lágrimas.
—
Foi culpa do Draco! — replicou Dino Thomas com rispidez.
Crabbe
e Goyle flexionavam os braços, ameaçadores.
Os
garotos subiram os degraus de pedra para o saguão deserto.
—
Vou ver se ele está bem! — disse Pansy, e os outros ficaram observando-a
subir de corrida a escadaria de mármore. Os alunos da Sonserina,
ainda murmurando contra Hagrid, rumaram para sua sala comunal, em uma
masmorra;
Harry,
Rony e Hermione subiram as escadas para a Torre da Grifinória.
—
Vocês acham que ele vai ficar bem? — perguntou Hermione, nervosa.
—
Claro que vai. Madame Pomfrey cura cortes em um segundo — disse Harry, que
já tivera ferimentos muito mais sérios curados magicamente pela enfermeira.
—
Foi realmente ruim acontecer isso na primeira aula de Hagrid, vocês não
acham? — comentou Rony, parecendo preocupado.
—
Sempre se pode contar com o Draco para estragar as coisas para o Hagrid...
Os
três foram os primeiros a chegar ao Salão Principal para jantar, na
esperança de verem Hagrid, mas o amigo não estava lá.
—
Não iriam despedir ele, vocês acham que sim? — perguntou Hermione aflita,
sem tocar no pudim de carne e rins.
—
É melhor não — replicou Rony, que também não estava comendo.
Harry
ficou observando a mesa da Sonserina. Um grande grupo, que incluía Crabbe
e Goyle, estava reunido, absorto em conversas. Harry teve certeza de que
estavam inventando a própria versão para o ferimento de Draco.
—
Bem, não se pode dizer que não foi um primeiro dia de aula interessante —
comentou Rony, deprimido.
Os
três subiram para o salão comunal da Grifinória depois do jantar e
tentaram fazer o dever de casa que a Profª. Minerva passara, mas ficaram o
tempo todo interrompendo-o para espiar pela janela.
—
Tem luz na janela de Hagrid — disse Harry de repente.
Rony
consultou o relógio.
—
Se a gente andar depressa, pode descer para ver ele. Ainda é cedo...
—
Não sei — disse Hermione, lentamente, e Harry viu que a amiga o olhava.
—
Eu tenho permissão para andar pela propriedade — disse o garoto
incisivamente. — Sirius Black ainda não passou pelos dementadores ou
passou?
Então
eles guardaram o material de estudo e se dirigiram ao buraco do retrato,
felizes por não encontrar ninguém no caminho até a porta principal,
porque não tinham tanta certeza assim de que podiam sair.
O
gramado ainda estava úmido e parecia quase negro à luz das estrelas.
Quando chegaram à cabana de Hagrid, bateram e uma voz resmungou rouca:
—
Pode entrar.
Hagrid
estava sentado em mangas de camisa à mesa de madeira escovada; o cachorro,
Canino, tinha a cabeça no colo dele. Ao primeiro olhar, os garotos
perceberam que o amigo andara bebendo muito; havia uma caneca de alpaca
quase do tamanho de um balde diante dele e parecia ter dificuldade para focalizá-los.
—
Imagino que seja um recorde — disse com a voz pastosa, quando os
reconheceu. Calculo que nunca tiveram um professor que só durasse um dia.
—
Você não foi despedido, Hagrid! — ofegou Hermione.
—
Ainda não — respondeu ele, infeliz, tomando um grande gole do que
havia na caneca. — Mas é só uma questão de tempo, não depois que Malfoy...
—
Como é que ele está? — perguntou Rony enquanto se sentavam. — Não foi grave,
foi?
—
Madame Pomfrey fez o melhor que pôde — disse Hagrid num tom inexpressivo
—, mas ele diz que continua doendo muito... Todo enfaixado... Gemendo...
—
Ele está fingindo — disse Harry na mesma hora. — Madame Pomfrey sabe curar
qualquer coisa. Ela fez crescer metade dos meus ossos no ano passado. Pode
contar que Draco vai se aproveitar o máximo que puder do acidente.
—
Os conselheiros da escola foram informados, é claro — disse Hagrid,
infeliz. — Acham que comecei muito grande. Devia ter deixado os hipogrifos
para mais tarde... Que estudasse vermes ou outra coisa pequena... Só quis
fazer uma primeira aula boa... Então a culpa é minha...
—
É tudo culpa do Malfoy, Hagrid! — disse Hermione, séria.
—
Somos testemunhas — acrescentou Harry. — Você avisou que os hipogrifos
atacam quando são insultados. O problema é do Malfoy se ele não estava prestando atenção.
Vamos contar ao Dumbledore o que realmente aconteceu.
—
Vamos, sim, não se preocupe, Hagrid, vamos confirmar sua história — disse
Rony.
Lágrimas
saltaram dos cantos enrugados dos olhos de Hagrid, negros como besouros.
Ele puxou Harry e Rony e lhes deu um abraço de quebrar as costelas.
—
Acho que você já bebeu o suficiente, Hagrid — falou Hermione com firmeza.
E apanhou a caneca na mesa e saiu da cabana para esvaziá-la.
—
Ah, talvez ela tenha razão — reconheceu Hagrid, soltando Harry e Rony, que
recuaram cambaleando e massageando as costelas. O guarda-caça levantou-se
com esforço da cadeira e seguiu Hermione até o lado de fora, com o
andar vacilante. Os garotos ouviram barulho de água caindo.
—
Que foi que ele fez? — perguntou Harry, nervoso, quando Hermione voltou
trazendo a caneca vazia.
—
Meteu a cabeça no barril de água — respondeu Hermione, guardando a caneca.
Hagrid
voltou, os cabelos e barbas longas empapados, enxugando a água dos olhos.
—
Assim está melhor — falou, sacudindo a cabeça como um cachorro e molhando
os garotos. — Escutem, foi muita bondade vocês terem vindo me ver, eu
realmente...
Hagrid
parou de repente, encarando Harry como se tivesse acabado de perceber que
ele estava ali.
—
QUE É QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ FAZENDO,
HEIN? — bradou, tão inesperadamente que os garotos deram um pulo
de mais de um palmo. — VOCÊ NÃO PODE
SAIR ANDANDO POR AÍ DEPOIS DO ANOITECER, HARRY! E VOCÊS DOIS! DEIXARAM-NO
SAIR!
Hagrid
foi até Harry agarrou-o pelo braço e puxou-o para a porta.
—
Vamos! — disse aborrecido. — Vou levar vocês de volta à escola, e não
quero pegar ninguém saindo para me ver depois do anoitecer. Eu não valho o
risco!
CAPÍTULO
SETE
O
Bicho-papão no Armário
Draco
não reapareceu nas aulas até o fim da manhã de quinta-feira, quando os
alunos da Sonserina e da Grifinória já estavam na metade da aula dupla de
Poções. Ele entrou cheio de arrogância na masmorra, o braço direito
enfaixado e pendurado em uma tipóia, agindo, na opinião de Harry, como se
fosse o sobrevivente heróico de uma terrível batalha.
—
Como vai o braço, Draco? — perguntou Pansy Parkinson, com
um sorrisinho insincero. — Está doendo muito?
—
Está — respondeu o garoto, fazendo uma careta corajosa.
Mas
Harry o viu piscar para Crabbe e Goyle, quando Violeta desviou o olhar.
—
Vá com calma, vá com calma — disse o Profº. Snape gratuitamente.
Harry
e Rony fizeram caretas um para o outro; Snape não teria dito "vá com calma" se eles tivessem
entrado atrasados, teria lhes dado uma detenção. Mas Draco sempre
conseguira escapar com qualquer coisa nas aulas de Poções; Snape era o
diretor da Sonserina e em geral favorecia os próprios alunos em prejuízo
dos demais.
A
classe estava preparando uma poção nova naquele dia, uma Solução Redutora.
Draco armou seu caldeirão bem ao lado do de Harry e Rony, de modo que os
três ficaram preparando os ingredientes na mesma mesa.
—
Professor — chamou Draco —, vou precisar de ajuda para cortar as raízes de
margarida, porque o meu braço...
—
Weasley, corte as raízes para Malfoy — disse Snape sem erguer a cabeça.
Rony
ficou vermelho como um tomate.
—
O seu braço não tem nenhum problema — sibilou o garoto para Draco.
Draco
deu um sorriso satisfeito.
—
Weasley, você ouviu o que o professor disse; corte as raízes.
Rony
apanhou a faca, puxou as raízes de Draco para perto e começou a cortá-las
de qualquer jeito, de modo que os pedaços ficaram de tamanhos diferentes.
—
Professor — falou Draco com a voz arrastada —, Weasley está mutilando as
minhas raízes.
Snape
aproximou-se da mesa, olhou para as raízes por cima do nariz curvo e em
seguida deu a Rony um sorriso desagradável, por baixo da cabeleira longa e
oleosa.
—
Troque de raízes com Malfoy, Weasley.
—
Mas, professor...!
Rony
passara os últimos quinze minutos picando cuidadosamente suas raízes em
pedacinhos exatamente iguais.
—
Agora — mandou Snape com o seu tom de voz mais perigoso.
Rony
empurrou as raízes caprichosamente cortadas para o lado de Draco na mesa,
e, em seguida, apanhou novamente a faca.
—
E, professor, vou precisar descascar este pinhão — disse Draco, a voz
expressando riso e malícia.
—
Potter, pode descascar o pinhão de Malfoy — disse Snape, lançando a Harry
o olhar de desprezo que sempre reservava só para o garoto.
Harry
apanhou o pinhão enquanto Rony começava a tentar consertar o estrago que
fizera às raízes que ia ter que usar. Harry descascou o pinhão o mais
depressa que pôde e atirou-o para o lado de Draco, sem falar. O outro riu
com mais satisfação que nunca.
—
Tem visto o seu amigo Hagrid, ultimamente? — perguntou Draco aos dois, baixinho.
—
Não é da sua conta — retrucou Rony aos arrancos, sem erguer a cabeça.
—
Acho que ele não vai continuar professor por muito tempo — disse Draco num
tom de fingida tristeza. — Meu pai não ficou nada satisfeito com o meu
ferimento...
—
Continue falando, Draco, e vou lhe fazer um ferimento de verdade — rosnou
Rony.
—
... Ele apresentou queixa aos conselheiros da escola. E ao Ministério da
Magia. Meu pai tem muita influência, sabe. E um ferimento permanente
como este — ele fingiu um longo suspiro —, quem sabe se o meu braço vai
voltar um dia a ser o mesmo?
—
Então é por isso que você está fazendo toda essa encenação — comentou
Harry, decapitando sem querer uma lagarta morta, porque sua mão tremia
de raiva. — Para tentar fazer Hagrid ser despedido.
—
Bom — respondeu Draco, baixando a voz para um sussurro —, em parte,
Potter. Mas tem outros benefícios, também. Weasley, fatie minhas
lagartas para mim.
A
alguns caldeirões de distância, Neville se achava em apuros.
Ele
se descontrolava regularmente nas aulas de Poções; era a sua pior matéria,
e seu grande medo do Profº. Snape tornava as coisas dez vezes pior. Sua
poção, que devia ter ficado verde ácido e berrante, tinha acabado...
—
Laranja, Longbottom — exclamou Snape, apanhando um pouco de poção com a
concha e deixando-a cair de volta no caldeirão, de modo que todos
pudessem ver. — Laranja. Me diga, menino, será que alguma coisa penetra
nessa sua cabeça dura? Você não me ouviu dizer, muito claramente, que só
precisava pôr um baço de rato? Será que eu não disse, sem nenhum
rodeio, que um nadinha de sumo de sanguessuga era suficiente? Que é que eu
tenho de fazer para você entender, Longbottom?
Neville
estava vermelho e trêmulo. Parecia prestes a chorar.
—
Por favor, professor — disse Hermione —, eu poderia ajudar Neville a
consertar...
—
Eu não me lembro de ter lhe pedido para se exibir, Srta. Granger —
respondeu Snape friamente e Hermione ficou tão vermelha quanto Neville.
—
Longbottom, no final da aula vamos dar algumas gotas desta poção ao seu
sapo e ver o que acontece. Quem sabe isto o estimule a preparar a poção
corretamente.
O
professor se afastou, deixando Neville sem fôlego de tanto medo.
—
Me ajude! — gemeu o menino para Hermione.
—
Ei, Harry — disse Simas Finnigan, curvando-se para pedir emprestada a balança
de latão de Harry —, você já soube? No Profeta Diário desta
manhã, eles acham que avistaram Sirius Black.
—
Onde? — perguntaram Harry e Rony depressa. Do lado oposto da mesa, Draco
ergueu os olhos, escutando a conversa atentamente.
—
Não muito longe daqui — respondeu o colega, que parecia excitado. — Foi
visto por uma trouxa. Claro que ela não entendeu muito bem. Os trouxas
acham que ele é apenas um criminoso comum, não é? Então ela telefonou para o
número do plantão de emergência. Mas até o Ministério da Magia chegar
lá, o Black já tinha sumido.
—
Não muito longe daqui... — repetiu Rony, lançando a Harry um olhar
sugestivo. Ele se virou e notou que Draco os observava, atento. — Que foi,
Draco? Precisa que eu descasque mais alguma coisa?
Mas
os olhos do garoto brilhavam de maldade, e estavam fixos em Harry. Ele se
debruçou na mesa.
—
Está pensando em apanhar o Black sozinho, Potter?
—
Acertou! — respondeu Harry displicentemente.
Os
lábios finos de Draco se curvaram num sorriso mau.
—
É claro, se fosse eu — disse em voz baixa —, eu já teria feito alguma
coisa há mais tempo. Eu não ficaria na escola como um bom menino, eu
estaria lá fora procurando o homem.
—
De que é que você está falando, Draco? — perguntou Rony com aspereza.
—
Não sabe, Potter? — sussurrou MaIfoy, os olhos claros quase fechados.
—
Não sei o quê?
Malfoy
soltou uma risada baixa e desdenhosa.
—
Vai ver você prefere não arriscar o pescoço. Quer deixar os dementadores
resolverem o caso, não é? Mas se fosse eu, eu ia querer me vingar. Ia
atrás dele pessoalmente.
—
Do que é que você está falando?— perguntou Harry com raiva, mas naquele
momento Snape falou:
—
Os senhores já devem ter terminado de misturar os ingredientes. Essa poção
precisa cozinhar antes de ser bebida; portanto guardem o seu material enquanto
ela ferve e, então, vamos testar a do Longbottom...
Crabbe
e Goyle riram-se abertamente, vendo Neville suar, enquanto mexia
febrilmente sua poção. Hermione murmurava instruções para o garoto pelo
canto da boca, para que Snape não visse. Harry e Rony guardaram os
ingredientes que não tinham usado e foram lavar as mãos e conchas na pia
de pedra a um canto da sala.
—
Que foi que o Draco quis dizer? — sussurrou Harry para Rony, enquanto
molhava as mãos no jorro gelado que saia da boca da gárgula. — Por que eu
iria querer me vingar de Black? Ele não me fez nada... Ainda.
—
Ele está inventando — disse Rony com violência. — Está tentando instigar
você a fazer uma idiotice...
O
fim da aula à vista, Snape encaminhou-se para Neville, que estava
encolhido ao lado do seu caldeirão.
—
Venham todos para cá — disse o professor, seus olhos negros cintilando — e
observem o que acontece ao sapo de Longbottom. Se ele conseguiu produzir
uma Poção Redutora, o sapo vai virar um girino. Se, o que eu não duvido,
ele não preparou a poção direito, o sapo provavelmente vai ser envenenado.
Os
alunos da Grifinória observaram temerosos. Os da Sonserina se mostraram
excitados. Snape apanhou Trevo, o sapo, com a mão esquerda e mergulhou,
com a direita, uma colherinha na poção de Neville, que agora estava
verde. Depois, deixou cair umas gotinhas
na garganta de Trevo.
Houve
um momento de silêncio, em
que Trevo engoliu a poção; seguiu-se um estalinho e Trevo, o
girino, pôs-se a se contorcer na palma da mão de Snape.
Os
alunos da Grifinória desataram a aplaudir. Snape, com a expressão
mal-humorada, tirou um vidrinho do bolso das vestes, pingou algumas gotas
em Trevo e ele reapareceu repentinamente adulto.
—
Cinco pontos a menos para a Grifinória — anunciou ele, varrendo, assim, os
sorrisos de todos os rostos. — Eu disse para não ajudá-lo, Srta. Granger.
A turma está dispensada.
Harry,
Rony e Hermione subiram a escadaria do saguão de entrada.
Harry
ainda estava pensando no que Malfoy falara, enquanto Rony espumava de
raiva de Snape.
—
Cinco pontos a menos para a Grifinória porque a poção estava certa! Por
que você não mentiu, Mione? Devia ter dito que Neville fez tudo sozinho!
Hermione
não respondeu. Rony olhou para os lados.
—
Aonde é que ela foi?
Harry
se virou também. Os dois estavam no alto da escadaria agora, vendo o resto
da turma passar por eles a caminho do Salão Principal para almoçar.
—
Ela estava logo atrás da gente — comentou Rony, franzindo as
sobrancelhas.
Malfoy
passou pelos dois, caminhando entre Crabbe e Goyle. Fez uma careta de riso
para Harry e desapareceu.
—
Lá está ela — disse Harry.
Hermione
vinha ligeiramente ofegante, correndo escada acima; com uma das mãos, ela
agarrava a mochila e com a outra parecia estar escondendo alguma
coisa dentro das vestes.
—
Como foi que você fez isso? — perguntou Rony.
—
O quê? — perguntou, por sua vez, Hermione, se juntando aos amigos.
—
Em um minuto você está bem atrás da gente e no minuto seguinte está de
volta ao pé da escada.
—
Quê? — Hermione pareceu ligeiramente confusa. — Ah... Eu tive que voltar
para ver uma coisa. Ah, não...
Uma
costura se rompera na mochila da garota. Harry não se surpreendeu; era
visível que a mochila fora atochada com pelo menos doze livrões pesados.
—
Por que está carregando tudo isso na mochila? — perguntou Rony.
—
Você sabe quantas matérias estou estudando — respondeu ela sem fôlego. —
Será que podia segurar esses para mim?
—
Mas... — Rony foi virando os livros que a amiga lhe passara para olhar as
capas — você não tem nenhuma dessas matérias hoje. Só tem Defesa contra as
Artes das Trevas, à tarde.
—
É verdade — respondeu Hermione vagamente, mas guardou todos os livros na
mochila assim mesmo. — Espero que tenha alguma coisa boa para o
almoço, estou morta de fome — acrescentou, e se afastou em direção ao Salão Principal.
—
Você também tem a impressão de que Mione não está contando alguma coisa à
gente? — perguntou Rony a Harry.
O
Profº. Lupin não estava em sala quando eles chegaram para a primeira aula
de Defesa contra as Artes das Trevas. Os alunos se sentaram, tiraram das
mochilas os livros, penas e pergaminho e estavam conversando quando o
professor finalmente apareceu. Lupin sorriu vagamente e colocou a velha
maleta surrada na escrivaninha.
Estava
mal vestido como sempre, mas parecia mais saudável do que no dia do trem,
como se tivesse comido umas refeições reforçadas.
—
Boa tarde — cumprimentou ele. — Por favor, guardem todos os livros de
volta nas mochilas. Hoje teremos uma aula prática. Os senhores só vão
precisar das varinhas.
Alguns
alunos se entreolharam, curiosos, enquanto guardavam os livros. Nunca
tinham tido uma aula prática de Defesa contra as Artes das Trevas antes, a
não ser que considerassem aquela aula inesquecível no ano anterior, em que
o professor tinha trazido uma gaiola de diabretes e os soltara na sala.
—
Certo, então — disse o Profº. Lupin, quando todos estavam prontos. —
Queiram me seguir.
Intrigados,
mas interessados, os alunos se levantaram e o seguiram para fora da sala.
Ele levou os alunos por um corredor deserto e virou um canto, onde a
primeira coisa que viram foi o Pirraça, o poltergeist, flutuando no ar de
cabeça para baixo, e entupindo com chicles o buraco da fechadura
mais próxima.
Pirraça
não ergueu os olhos até o professor chegar a mais ou menos meio metro;
então, agitou os dedos dos pés e começou a cantar.
—
Louco, lobo, Lupin — entoou ele. — Louco, lobo, Lupin...
Grosseiro
e intratável como era quase sempre, Pirraça em geral demonstrava algum
respeito pelos professores. Todo mundo olhou na mesma hora para Lupin
para ver qual seria sua reação àquilo; para surpresa de todos, o
professor continuou a sorrir.
—
Eu tiraria o chicle do buraco da fechadura se fosse você, Pirraça — disse
ele gentilmente. — O Sr. Filch não vai poder apanhar as vassouras
dele.
Filch
era o zelador de Hogwarts, mal-humorado, um bruxo frustrado que travava
uma guerra constante contra os estudantes e, na verdade, contra Pirraça
também.
Mas
o poltergeist não deu a mínima atenção às palavras do professor a não ser
para respondê-las com um ruído ofensivo e alto feito com a boca.
O
professor deu um breve suspiro e tirou a varinha.
—
Este é um feitiçozinho útil — disse à turma por cima do ombro. — Por favor
observem com atenção.
Ele
ergueu a varinha até a altura do ombro e disse:
—
Uediuósi!— e apontou para Pirraça.
Com
a força de uma bala, a pelota de chicle disparou do buraco da fechadura e
foi bater certeira na narina esquerda de Pirraça; o poltergeist virou de cabeça
para cima e fugiu a grande velocidade, xingando.
—
Maneiro, professor — exclamou Dino Thomas admirado.
—
Obrigado, Dino — disse o professor tornando a guardar a varinha. — Vamos
prosseguir?
Eles
recomeçaram a caminhada, a turma olhando o enxovalhado professor com
crescente respeito. Lupin os conduziu por um segundo corredor e parou bem
à porta da sala de professores.
—
Entrem, por favor — disse ele, abrindo a porta e se afastando para os
alunos passarem.
A
sala dos professores. Uma sala comprida, revestida com painéis de madeira
e mobiliada com cadeiras velhas e desaparelhadas, estava vazia, exceto por um
ocupante. O Profº. Snape estava sentado em uma poltrona baixa e ergueu os
olhos para os alunos que entravam. Seus olhos brilhavam e ele tinha
um arzinho de desdém em volta da boca. Quando o Profº. Lupin entrou e
fez menção de fechar a porta, Snape falou:
—
Pode deixá-la aberta, Lupin. Eu prefiro não estar presente.
E,
dizendo isso, se levantou e passou pela turma, suas vestes negras se
enfurnando às suas costas. À porta, o professor girou nos calcanhares e
disse ao colega:
—
Provavelmente ninguém o alertou, Lupin, mas essa turma tem Neville
Longbottom. Eu o aconselharia a não confiar a esse menino nada que
apresente dificuldade. A não ser que a Srta, Granger se incumba de
cochichar instruções ao ouvido dele.
Neville
ficou escarlate. Harry olhou aborrecido para Snape; já era bastante ruim
que ele implicasse com Neville nas próprias aulas, e muito pior fazer isso
na frente de outros professores.
O
Profº. Lupin ergueu as sobrancelhas.
—
Pois eu pretendia chamar Neville para me ajudar na primeira etapa da operação,
e tenho certeza de que ele vai fazer isso admiravelmente.
A
cara de Neville ficou, se isso fosse possível, ainda mais vermelha. Snape
revirou os lábios num trejeito de desdém, mas se retirou, batendo de leve
a porta.
—
Agora, então — disse o Profº. Lupin, chamando, com um gesto, a turma para
o fundo da sala, onde não havia nada exceto um velho armário em que
os professores guardavam mudas limpas de vestes. Quando o professor
se postou a um lado, o armário subitamente se sacudiu, batendo na
parede.
—
Não se preocupem — disse ele calmamente porque alguns alunos tinham pulado
para trás, assustados. — Há um bicho-papão
ai dentro.
A
maioria dos garotos achou que isso era uma coisa com o que se preocupar.
Neville lançou ao professor um olhar de absoluto terror e Simas Finnigan
mirou o puxador, que agora sacudia barulhentamente, com apreensão.
—
Bichos-papões gostam de lugares
escuros e fechados — informou o mestre. — Guarda-roupas, o vão embaixo das
camas, os armários sob as pias... Eu já encontrei um alojado dentro
de um relógio de parede antigo. Este aí se mudou para cá ontem à tarde e
perguntei ao diretor se os professores poderiam deixá-lo para eu dar
uma aula prática aos meus alunos do terceiro ano. Então, a primeira pergunta que devemos nos
fazer é, o que é um bicho-papão?
Hermione
levantou a mão.
—
É um transformista — respondeu ela. — É capaz de assumir a forma do que
achar que pode nos assustar mais.
—
Eu mesmo não poderia ter dado uma definição melhor — disse o Profº. Lupin,
e o rosto de Hermione se iluminou de orgulho.
—
Então o bicho-papão que está sentado
no escuro aí dentro ainda não assumiu forma alguma. Ele ainda não sabe o
que pode assustar a pessoa que está do lado de fora. Ninguém sabe qual é a aparência de um bicho-papão quando está sozinho, mas
quando eu o deixar sair, ele imediatamente se transformará naquilo que
cada um de nós mais teme. Isto significa — continuou o Profº. Lupin,
preferindo não dar atenção à breve exclamação de terror de Neville — que
temos uma enorme vantagem sobre o bicho-papão para
começar. Você já sabe qual é, Harry?
Tentar
responder uma pergunta com Hermione do lado, com as plantas dos pés
subindo e descendo impacientes e a mão no ar, era muito irritante, mas
Harry resolveu tentar assim mesmo.
—
Hum... Porque somos muitos, ele não vai saber que forma tomar.
—
Precisamente — concordou o professor e Hermione baixou a mão, parecendo um
pouquinho desapontada. — É sempre melhor estarmos acompanhados quando
enfrentamos um bicho-papão. Assim, ele se confunde. No que deverá se
transformar, num corpo sem cabeça ou numa lesma carnívora? Uma vez vi um bicho-papão cometer exatamente este
erro, tentou assustar duas pessoas e se transformou em meia lesma. O que,
nem de longe, pode assustar alguém. O
feitiço que repele um bicho-papão é
simples, mas exige concentração. Vejam, a coisa que realmente acaba com um
bicho-papão é o riso. Então o
que precisam fazer é forçá-lo a assumir uma forma que vocês achem
engraçada. Vamos praticar o feitiço sem as varinhas primeiro. Repitam
comigo, por favor.. Riddikulus!
—
Riddikulus — repetiu a turma.
—
Ótimo — aprovou o Profº. Lupin. — Muito bem. Mas receio que esta seja a
parte mais fácil. Sabem, a palavra sozinha não basta. E é aqui que você vai entrar Neville.
O
guarda-roupa recomeçou a tremer, embora não tanto quanto Neville, que se
dirigiu para o móvel como se estivesse indo para a forca.
—
Certo, Neville — disse o professor — Vamos começar pelo começo: Qual, você
diria, que é a coisa que pode assustá-lo mais neste mundo?
Os
lábios de Neville se mexeram, mas não emitiram som algum.
—
Não ouvi o que você disse, Neville, me desculpe — disse o Profº.
Lupin animado.
Neville
olhou para os lados meio desesperado, como que suplicando a alguém que o
ajudasse, depois disse, num sussurro quase inaudível:
—
O Profº. Snape.
Quase
todo mundo riu. Até Neville sorriu como se pedisse desculpas. Lupin,
porém, ficou pensativo.
—
Profº. Snape... Hummm... Neville, eu creio que você mora com a sua avó?
—
Sim... Moro — disse Neville, nervoso. — Mas também não quero que o bicho-papão se transforme na minha avó.
—
Não, não, você não entendeu — disse o professor, agora rindo. — Será que
você podia nos descrever que tipo de roupas a sua avó normalmente usa?
Neville
fez cara de espanto, mas disse:
—
Bem... Sempre o mesmo chapéu. Um bem alto com um urubu empalhado na ponta.
E um vestido comprido... Verde, normalmente... E às vezes uma raposa.
—
E uma bolsa?
—
Vermelha e bem grande.
—
Certo então — disse o professor — Você é capaz de imaginar essas
roupas com clareza, Neville? Você consegue vê-las mentalmente?
—
Consigo — respondeu Neville, hesitante, obviamente imaginando o que viria
a seguir.
—
Quando o bicho-papão irromper daquele
guarda-roupa, Neville, e vir você, ele vai assumir a forma do Profº.
Snape. E você vai erguer a varinha... Assim... E gritar "Riddikulus"... E se
concentrar com todas as suas forças nas roupas de sua avó. Se tudo correr
bem, o Profº. Bicho-papão-Snape
será forçado a vestir aquele chapéu com o urubu, aquele vestido verde
e carregar aquela enorme bolsa vermelha.
Houve
uma explosão de risos. O guarda-roupa sacudiu com maior violência.
—
Se Neville acertar, o bicho-papão
provavelmente vai voltar a atenção para cada um de nós
individualmente. Eu gostaria que todos gastassem algum tempo, agora,
para pensar na coisa de que têm mais medo e imaginar como poderia
fazê-la parecer cômica...
A
sala ficou silenciosa. Harry pensou... “O
que o apavorava mais no mundo?”
Seu
primeiro pensamento foi Lord Voldemort — um Voldemort que tivesse
recuperado totalmente as forças. Mas antes que conseguisse planejar
um possível contra-ataque ao bicho-papão-Voldemort,
uma imagem horrível foi aflorando à superfície de sua mente...
Uma
mão luzidia e podre, que escorregava para dentro de uma capa preta...
Uma respiração longa e rascante que saia de uma boca invisível...
Depois um frio tão penetrante que dava a impressão de que ele estava
se afogando...
Harry
estremeceu e olhou para os lados, na esperança de que ninguém tivesse
reparado nele. Muitos alunos tinham os olhos bem fechados. Rony
murmurava para si mesmo "Arranque as pernas dela". Harry teve
certeza de que sabia a que o amigo se referia.
O maior medo de Rony eram as aranhas.
—
Todos prontos? — perguntou o Profº. Lupin.
Harry
sentiu uma onda de medo. Ele não estava pronto.
Como era
possível fazer um dementador se tornar menos aterrorizante? Mas não quis pedir mais tempo; todos estavam
acenando a cabeça afirmativamente enrolando as mangas.
—
Neville, nós vamos recuar — disse o professor. — Assim você fica com o
campo livre, está bem? Vou chamar o próximo a vir para frente... Todos
para trás, agora, de modo que Neville tenha espaço para agitar a
varinha...
Todos
recuaram, encostaram-se nas paredes, deixando Neville sozinho ao lado do
guarda-roupa. Ele parecia pálido e assustado, mas enrolara as mangas das
vestes e segurava a varinha em posição.
—
Quando eu contar três, Neville — avisou Lupin, que apontava a própria
varinha para o puxador do armário. — Um... Dois... Três... Agora!
Um
jorro de faíscas saltou da ponta da varinha do professor e bateu
no puxador. O guarda-roupa se abriu com violência. Com o nariz curvo
e ameaçador, o Profº. Snape saiu, os olhos faiscando para Neville. Neville recuou, de varinha no ar, balbuciando
silenciosamente. Snape avançou para ele, apanhando alguma coisa dentro das
vestes.
—
R... R.. Riddikulus! — esganiçou-se
Neville.
Ouviu-se
um ruído que lembrava o estalido de um chicote. Snape tropeçou; usava um
vestido longo, enfeitado de rendas e um imenso chapéu de bruxo com um
urubu carcomido de traças no alto, e sacudia uma enorme bolsa
vermelho-vivo.
Houve
uma explosão de risos; o bicho-papão
parou, confuso, e o Profº. Lupin gritou:
—
Parvati! Avante!
Parvati
adiantou-se, com ar decidido. Snape avançou para ela.
Ouviu-se
outro estalo e onde o bicho-papão
estivera havia agora uma múmia com as bandagens sujas de sangue; seu
rosto tampado estava virado para Parvati e a múmia começou a andar para a
garota muito lentamente, arrastando os pés, erguendo os braços duros...
—
Riddikulus!— exclamou Parvati.
Uma
bandagem se soltou aos pés da múmia; ela se enredou, caiu de cara no chão
e sua cabeça rolou para longe do corpo.
—
Simas — bradou o professor.
Simas
passou disparado por Parvati.
Craque!
Onde estivera a múmia surgiu uma mulher de cabelos negros que iam até o
chão e um rosto esverdeado e esquelético — um espírito agourento.
Ela
escancarou a boca e um som espectral encheu a sala, um grito longo e
choroso que fez os cabelos de Harry ficarem em pé.
—
Riddikulus! — bradou Simas.
O
espírito agourento emitiu um som rascante, apertou a garganta com as mãos;
sua voz sumiu.
Craque!
O espírito agourento se transformou em um rato, que saiu correndo
atrás do próprio rabo, em círculos, depois... Craque! Transformou-se em uma cascavel, que saiu
deslizando e se contorcendo até que craque! Se transformou em um olho
único e sangrento.
—
Confundimos o bicho! — gritou Lupin. — Já estamos quase no fim! Dino!
Dino
adiantou-se correndo.
Craque!
O olho se transformou em uma mão decepada, que deu uma cambalhota e saiu
andando de lado como um caranguejo.
—
Riddikulus! — berrou Dino.
Ouviu-se
um estalo e a mão ficou presa em uma ratoeira.
—
Excelente! Rony, você é o próximo! Rony correu para frente aos pulos.
Craque!
Muitos
alunos gritaram. Uma aranha gigantesca e peluda, com quase dois metros de
altura, avançou para Rony, batendo as pinças ameaçadoramente. Por um
instante, Harry achou que Rony congelara. Mas...
—
Riddikulus! — berrou Rony, e as
pernas da aranha desapareceram; ela ficou rolando pelo chão; Lilá Brown
deu um grito agudo e se afastou correndo do caminho da aranha
até que ela parou aos pés de Harry. O garoto ergueu a varinha,
preparou-se, mas...
—
Tome! — gritou o Profº. Lupin de repente, correndo para frente.
Craque!
A
aranha sem pernas sumira. Por um segundo todos olharam assustados para os
lados para ver o que aparecera. Então viram um globo branco-prateado
pendurado no ar diante de Lupin, e ele disse "Riddikulus" quase descansadamente.
Craque!
—
Para frente, Neville, e acabe com ela! — mandou o professor quando o bicho-papão aterrissou no chão sob a
forma de uma barata.
Craque!
E Snape reapareceu.
Desta
vez, Neville avançou parecendo decidido.
— Riddikulus! — gritou, e, por uma fração
de segundo, seus colegas tiveram uma visão de Snape com seu vestido de
rendas antes de Neville soltar uma grande gargalhada e o bicho-papão explodir em milhares de
fiapinhos minúsculos de fumaça, e desaparecer.
—
Excelente! — exclamou o Profº. Lupin enquanto a classe aplaudia com
entusiasmo. — Excelente, Neville. Muito bem, pessoal... Deixe-me ver...
Cinco pontos para a Grifinória para cada pessoa que enfrentou o bicho-papão — dez para Neville
porque ele o enfrentou duas vezes e cinco para Harry e para Hermione.
—
Mas eu não fiz nada — protestou Harry.
—
Você e Hermione responderam às minhas perguntas corretamente no início da
aula, Harry — respondeu Lupin gentilmente. — Muito bem, pessoal, foi uma
aula excelente. Dever de casa: por favor, leiam o capítulo sobre os bichos-papões e façam um resumo para
me entregar... Na segunda-feira. E por hoje é só.
Falando
agitados, os alunos deixaram a sala dos professores.
Harry,
porém, não estava se sentindo muito animado. O Profº. Lupin intencionalmente o
impedira de enfrentar o bicho-papão.
Por
quê? Teria sido porque vira Harry desmaiar no trem e achava que ele não
seria capaz? Teria pensado que ele ia desmaiar de novo? Mas ninguém mais
pareceu ter estranhado nada.
—
Você me viu enfrentar aquele espírito agourento? — perguntava Simas aos
gritos.
—
E a mão! — disse Dino, agitando a própria mão no ar.
—
E o Snape naquele chapéu!
—
E a minha múmia?
—
Por que será que o Profº. Lupin tem medo de bolas de cristal? — indagou
Lilá, pensativa.
—
Essa foi a melhor aula de Defesa contra as Artes das Trevas que já
tivemos, vocês não acham? — disse Rony excitado quando refaziam o caminho
até a sala de aula para apanhar as mochilas.
—
Ele parece um bom professor — comentou Hermione em tom de aprovação. — Mas
eu gostaria de ter podido enfrentar o bicho-papão...
—
O que ele teria sido para você? — perguntou Rony dando risadinhas. — Um
dever de casa que só mereceu nota nove em dez?
CAPÍTULO
OITO
A
Fuga da Mulher Gorda
Não
demorou nada e a Defesa contra as Artes das Trevas se tornou a matéria
favorita da maioria dos estudantes. Somente Draco Malfoy e sua patota de
alunos da Sonserina tinham alguma coisa de ruim a dizer do Profº. Lupin.
—
Olha só as vestes dele — Malfoy dizia num sussurro bem audível quando o
professor passava. — Ele se veste como um velho elfo doméstico.
Mas
ninguém mais se importava se as vestes de Lupin eram remendadas e
esfiapadas. Suas aulas seguintes tinham sido tão interessantes quanto a
primeira. Depois dos bichos-papões,
eles estudaram os "barretes
vermelhos", criaturinhas malvadas que lembravam duendes e
rondavam os lugares onde houvera derramamento de sangue, masmorras de
castelos e valas dos campos de batalha desertos à espera de abater a porrete os
que se perdiam. Dos barretes
vermelhos eles passaram aos kappas, seres
rastejantes das águas, que lembravam macacos com escamas, palmípedes cujas
mãos comichavam para estrangular os banhistas desavisados que penetravam
seus domínios.
Harry
só desejava que fosse tão feliz com outras matérias. A pior delas era
Poções. Snape andava com uma disposição bem vingativa ultimamente, e
ninguém tinha dúvidas do que motivara isso. A história do bicho-papão que assumira a forma
dele, e a maneira com que Neville o vestira com as roupas da avó, correra
a escola como fogo espontâneo. Snape não parecia ter achado graça. Seus
olhos faiscavam ameaçadoramente à simples menção do nome de Lupin e ele
andava implicando com Neville mais do que nunca.
Harry
também estava começando a temer as horas que passava na sala
sufocante da Profª. Sibila, decifrando formas e símbolos enviesados,
tentando fingir que não via os olhos da professora se encherem de lágrimas
todas as vezes que olhava para ele. Não conseguia gostar de Sibila, embora
ela fosse tratada, por muitos alunos da turma, com um respeito que beirava
a reverência. Parvati Patil e Lilá Brown passaram a rondar a torre da
professora na hora do almoço, e sempre voltavam com irritantes ares de
superioridade, como se soubessem de coisas que os outros desconheciam.
Tinham começado também a usar um tom de voz abafado sempre que falavam com
Harry, como se estivessem em seu velório.
Ninguém
gostava realmente de Trato das Criaturas Mágicas que, depois da primeira
aula repleta de ação, tornara-se extremamente monótona. Hagrid parecia
ter perdido a confiança em si mesmo. Os alunos agora passavam aula após
aula aprendendo a cuidar de vermes, que eram uma das espécies de bichos
mais chatas que existem no mundo, e não era por acaso.
—
Por que alguém se daria o trabalho de cuidar deles? — exclamou Rony,
depois de mais de uma hora enfiando alface fresca picada pela
goela escorregadia dos vermes.
No
início de outubro, porém, Harry teve algo com que se ocupar, algo tão
prazeroso que mais do que compensou as aulas chatas. A temporada de
Quadribol se aproximava e Olívio Wood, capitão do time da Grifinória,
convocou uma reunião para uma noite de quinta-feira com a finalidade de
discutirem as táticas que adotariam na nova temporada.
Havia
sete jogadores num time de Quadribol: três artilheiros, cuja função é
marcar gol fazendo a goles (uma bola vermelha do tamanho de uma bola de
futebol) passar por um aro no alto de uma baliza de quinze metros de
altura fincada em cada extremidade do campo; dois batedores, armados com
pesados bastões para repelir os balaços (duas bolas pretas maciças
que voavam para todos os lados tentando atacar os jogadores); um goleiro,
que defendia as balizas e um apanhador, que tinha a função mais
difícil de todas, a de capturar o pomo de ouro, uma bolinha alada do
tamanho de uma noz, cuja captura encerrava o jogo, e garantia para o time
do apanhador cento e cinqüenta pontos a mais.
Olívio
era um rapaz forte de dezessete anos, agora no sétimo e último ano de
Hogwarts. Tinha uma espécie de desespero silencioso na voz quando se
dirigiu aos seis companheiros de equipe nos gelados vestiários,
localizados nas pontas do campo de Quadribol, agora quase escuro.
—
Esta é a nossa última chance, minha última chance, de ganhar a Taça de
Quadribol — disse andando para lá e para cá diante dos colegas. — Vou-me
embora no fim deste ano. Nunca mais terei outra oportunidade. Grifinória
não ganha a taça há sete anos. Tudo bem, tivemos o maior azar do mundo,
acidentes, depois o cancelamento do torneio no ano passado... —
Olívio engoliu em seco como se aquela lembrança ainda lhe desse um nó
na garganta. — Mas também sabemos que temos o time... Melhor...
Mais irado... Da escola — disse ele, dando um soco na palma da mão, o
velho brilho obsessivo nos olhos. -Temos três artilheiros da melhor qualidade.
Olívio apontou pata Alicia Spinnet, Angelina Johnson e Karie Bell. — Temos
dois batedores imbatíveis.
—
Pode parar, Olívio, você está encabulando a gente — disseram Fred e Jorge
juntos, fingindo corar.
—
E temos um apanhador que até hoje nunca deixou de nos levar à vitória nas
partidas que jogamos — falou Olívio em tom retumbante, encarando
Harry com uma espécie de orgulho ardoroso. — E temos a mim —
acrescentou, pensando melhor.
—
Nós também achamos você muito bom Olívio. — disse Jorge.
—
Um goleiro do caramba! — disse Fred.
—
A questão é — continuou Olívio retomando a caminhada — que a Taça de
Quadribol devia ter tido o nome do nosso time gravado, nesses dois
últimos anos. Desde que Harry se juntou a nós, achei que a taça já estava
no papo. Mas não ganhamos, e este ano é a última chance que teremos
de finalmente ver o nosso nome na taça...
Olívio
falou tão desolado que até Fred e Jorge o olharam com simpatia.
—
Olívio, este ano é o nosso ano — animou-o Fred.
—
Vamos conseguir, Olívio! — disse Angelina.
—
Sem a menor dúvida — confirmou Harry.
Cheio
de determinação, o time começou os treinos, três noites por semana. O tempo
estava ficando mais frio e mais úmido, as noites mais escuras, mas
não havia lama nem vento nem chuva que pudesse empanar a visão maravilhosa
de Harry de finalmente ganhar a enorme Taça de Quadribol de prata.
Harry
voltou à sala comunal da Grifinória certa noite depois do treino,
enregelado, os músculos endurecidos, mas satisfeito com o aproveitamento
do treino, e encontrou a sala mergulhada num vozerio excitado.
—
Que foi que aconteceu?— perguntou ele a Rony e Hermione, que estavam
sentados em duas das melhores poltronas ao lado da lareira terminando uns
mapas estelares para a aula de Astronomia.
—
Primeiro fim de semana em Hogsmeade — respondeu Rony, apontando para uma
nota que aparecera no escalavrado quadro de avisos. — Fim de outubro. Dia
das Bruxas.
—
Ótimo — comentou Fred que seguira Harry na passagem pelo buraco do quadro.
— Preciso visitar a Zonko"s. Meus chumbinhos fedorentos estão
quase no fim.
Harry
se atirou em uma cadeira ao lado de Rony, sua animação esfriando. Hermione
pareceu ler seus pensamentos.
—
Harry tenho certeza de que você vai poder ir na próxima visita — disse a
garota. — Vão acabar pegando o Black logo. Ele já foi avistado uma vez.
—
Black não é louco de tentar alguma coisa em Hogsmeade — argumentou Rony. —
Pergunte a McGonagall se você pode ir Harry, a próxima vez talvez demore
um tempão para acontecer...
—
Rony! — exclamou a garota. — Harry tem que ficar na escola...
—
Ele não pode ser o único aluno de terceiro ano que vai ficar — disse
Rony. — Pergunta a McGonagall, anda, Harry...
—
É, acho que vou perguntar — disse Harry se decidindo. Hermione abriu
a boca para protestar, mas naquele instante Bichento pulou com leveza
em seu colo. Trazia uma enorme aranha morta pendurada na boca.
—
Ele tem que comer isso na frente da gente? — perguntou Rony aborrecido.
—
Bichento inteligente, você apanhou a aranha sozinho? — perguntou Hermione.
Bichento
mastigou a aranha vagarosamente, os olhos amarelos fixos insolentemente em
Rony.
—
Vê se ao menos segura ele aí — disse Rony irritado, voltando a atenção
para o seu mapa estelar. — Perebas está dormindo na minha mochila.
Harry
bocejou. Queria realmente ir se deitar, mas ainda tinha o mapa para
terminar. Puxou a mochila para perto, tirou um pergaminho, tinta e caneta
e começou a trabalhar.
—
Pode copiar o meu, se quiser — ofereceu Rony, escrevendo o nome da
última estrela com um floreio e empurrando o mapa para Harry.
Hermione,
que desaprovava colas, contraiu os lábios, mas não disse nada. Bichento
continuava a mirar Rony sem piscar, agitando a ponta do rabo peludo.
Então, sem aviso, atacou.
—
AI! — berrou Rony, agarrando a mochila na hora em que Bichento enterrava
nela as garras das quatro patas e começava a sacudi-la furiosamente. – DÊ
O FORA DAI SEU BICHO BURRO!
Rony
tentou arrancar a mochila das garras de Bichento, mas o gato não a
largava, bufando e unhando.
—
Rony, não machuca ele! — gritou Hermione; toda a sala observava; Rony
girou a mochila, Bichento continuou agarrado, e Perebas saiu voando pela
abertura...
—
SEGURE ESSE GATO! — berrou Rony quando Bichento se desvencilhou dos restos
da mochila e saltou para a mesa perseguindo o aterrorizado Perebas.
Jorge
Weasley deu um salto na direção de Bichento mas errou; Perebas disparou entre
vinte pares de pernas e sumiu embaixo de uma velha cômoda. Bichento
parou derrapando, se abaixou o mais que pôde nas pernas arqueadas e
começou a fazer furiosas investidas com a pata dianteira no vão da cômoda.
Rony
e Hermione correram para acudir; Hermione agarrou Bichento pelo meio e
carregou-o para longe; Rony se atirou no chão de barriga para baixo e, com
grande dificuldade, puxou Perebas para fora pelo rabo.
—
Olha só para ele! — gritou o garoto furioso para Hermione, balançando
Perebas diante da amiga. — Está pele e osso! Segura esse gato longe
dele!
—
Bichento não entende que isso é errado! — defendeu-o Hermione, a voz
trêmula. — Todos os gatos caçam ratos, Rony!
—
Tem uma coisa esquisita nesse animal! — acusou Rony, que estava tentando
persuadir um Perebas, que se contorcia freneticamente, a voltar para
dentro do seu bolso. — Ele me ouviu dizer que Perebas estava na mochila!
—
Ah, deixa de bobagem — retrucou a garota. — Bichento sabe farejar, Rony,
de que outro modo você acha...
—
Esse gato está perseguindo o Perebas! — disse Rony, fingindo não ver os
colegas em volta, que começavam a dar risadinhas abafadas. — E Perebas
estava aqui primeiro, e está doente!
Rony
atravessou a sala decidido e desapareceu na subida da escada para os
dormitórios dos garotos.
Rony
continuou de mal com Hermione no dia seguinte. Quase não falou com
a garota durante a aula de Herbologia, embora ele, Harry e
Hermione estivessem trabalhando juntos na mesma tarefa.
—
Como é que vai o Perebas? — perguntou Hermione timidamente enquanto
colhiam gordas vagens rosadas das plantas e esvaziavam seus feijões
luzidios em um balde de madeira.
—
Está escondido no fundo da minha cama tremendo — respondeu Rony com raiva,
errando o balde e espalhando feijões pelo chão da estufa.
—
Cuidado, Weasley, cuidado! — exclamou a Profª. Sprout quando os feijões
desabrocharam diante dos olhos de todos.
A
aula seguinte era Transformação. Harry, que resolvera
perguntar à Profª. McGonagall depois da aula se podia ir a Hogsmeade
com os colegas, entrou na fila do lado de fora da sala tentando
decidir como é que iria defender o seu caso. Foi distraído, porém, por uma
confusão no início da fila.
Pelo
jeito, Lilá Brown estava chorando. Parvati abraçava-a, e explicava algo a
Simas e Dino, que pareciam muito sérios.
—
Que foi que aconteceu, Lilá? — perguntou Hermione, ansiosa, quando ela,
Harry e Rony se reuniram ao grupo.
—
Ela recebeu uma carta de casa hoje de manhã — sussurrou Parvati. — Foi o
coelho dela, Bínqui. Foi morto por uma raposa.
—
Ah — disse Hermione sinto muito, Lilá.
—
Eu devia ter imaginado! — exclamou Lilá, tragicamente. — Você sabe que dia
é hoje?
—
Hum...
—
Dezesseis de outubro! "Essa coisa
que você receia, vai acontecer na sexta-feira, 16 de outubro!"
Lembram? Ela estava certa, ela estava certa!
A
turma inteira agora rodeava Lilá. Simas sacudia a cabeça, sério. Mione
hesitou; em seguida perguntou:
—
Você receava que Bínqui fosse morto por uma raposa?
—
Bem, não necessariamente por uma raposa — respondeu Lilá, erguendo os
olhos, dos quais as lágrimas escorriam sem parar —, mas obviamente eu
receava que ele morresse, não é?
—
Ah — exclamou Hermione. Ela fez outra pausa. E depois...
—
Bínqui era um coelho velho?
—
N... Não! — soluçou Lilá. -A... Ainda era um bebezinho!
Parvati
apertou o abraço que dava em Lilá.
—
Mas, então, por que você tinha receio que ele morresse? — perguntou Hermione.
Parvati
fez uma cara feia para a colega.
—
Bem, vamos encarar isso logicamente — falou Hermione, virando-se para o
restante do grupo. — Quero dizer, Bínqui nem ao menos morreu hoje, não é?
Lilá foi que recebeu a notícia hoje... — Lilá abriu um berreiro — e
ela não podia estar receando isso, porque a notícia foi um choque para
ela...
—
Não ligue para Hermione, Lilá — disse Rony em voz alta —, ela não acha que os
bichos de estimação dos outros têm muita importância.
A
Profª. Minerva abriu a porta da sala de aula naquele momento, o que talvez
tenha sido uma sorte; Hermione e Rony estavam se fuzilando com os olhos e
quando entraram na sala se sentaram um de cada lado de Harry, e passaram a
aula inteira sem se falar.
Harry
ainda não decidira o que ia dizer à professora quando a sineta tocou
anunciando o fim da aula, mas foi ela quem levantou o assunto de Hogsmeade
primeiro.
—
Um momento, por favor! — pediu quando a turma se preparava para sair. —
Como vocês todos fazem parte da minha Casa, deverão entregar os
formulários de autorização para ir à Hogsmeade a mim, antes do Dia das
Bruxas. Sem formulário não há visita, por isso não se esqueçam.
Neville
levantou a mão.
—
Por favor, professora, eu... Eu acho que perdi...
—
Sua avó mandou o seu diretamente a mim, Longbottom — disse Minerva. —
Parece que ela achou mais seguro. Bem, é só isso, podem ir.
—
Pergunta a ela agora — sibilou Rony a Harry.
—
Ah, mas... — começou Hermione.
—
Manda ver — disse Rony insistindo.
Harry
esperou o resto da turma desaparecer e se dirigiu, nervoso, à escrivaninha
da professora.
—
Que foi, Potter?
Harry
inspirou profundamente.
—
Professora, minha tia e meu tio... Hum... Se esqueceram de assinar a minha
autorização.
A
Profª. Minerva olhou-o por cima dos óculos quadrados e não disse nada.
—
Então... Hum... A senhora acha que haveria algum problema... Quero dizer, que
estaria Ok se eu... Se eu fosse a Hogsmeade?
Minerva
baixou os olhos e começou a mexer nos papéis em cima da escrivaninha.
—
Receio que não, Potter. Você ouviu o que eu disse. Não tem formulário, não
tem visita ao povoado. Essa é a regra.
—
Mas, professora, minha tia e meu tio... A senhora sabe, eles são trouxas,
não entendem realmente para que servem... Os formulários de Hogwarts e
outras coisas daqui — explicou Harry, enquanto Rony o animava a prosseguir
com vigorosos acenos de cabeça. — Se a senhora disser que eu posso ir...
—
Mas eu não vou dizer — falou a professora se levantando e arrumando os
papéis na gaveta. — O formulário diz claramente que o pai ou guardião
precisa dar permissão. — Minerva se virou para olhá-lo, com uma estranha
expressão no rosto. Seria pena? — Sinto muito, Potter, mas esta é a
minha palavra final. É melhor você se apressar ou vai se atrasar para a
próxima aula.
Não
restava nada a fazer. Rony xingou a Profª. Minerva de uma porção de nomes,
o que deixou Hermione muito aborrecida; a garota assumiu um ar de "foi-melhor-assim” que fez Rony
ficar com mais raiva e Harry teve que suportar os colegas na aula
discutindo, alegres e em altas vozes, o que iam fazer primeiro, quando
chegassem a Hogsmeade.
—
Sempre tem a festa — disse Rony, num esforço para animar Harry.
—
Sabe, a festa do Dia das Bruxas, à noite.
—
Sei — respondeu Harry, deprimido —, que ótimo.
A
festa do Dia das Bruxas era sempre boa, mas teria um sabor muito melhor se
fosse depois de uma visita a Hogsmeade com os colegas. Nada que ninguém
disse fez Harry se sentir melhor com relação à idéia de ser deixado para
trás.
Dino
Thomas, que era jeitoso com uma caneta, se oferecera para falsificar a
assinatura do tio Válter no formulário, mas como Harry já dissera à
Profª. Minerva que os tios não haviam assinado, não adiantava nada. Rony,
meio desanimado, sugeriu a Capa da Invisibilidade, mas Hermione eliminou
essa possibilidade, lembrando a Rony que Dumbledore avisara que
os dementadores podiam ver através da capa. Possivelmente foi Percy
quem disse as palavras que menos consolaram.
—
O pessoal faz um estardalhaço sobre Hogsmeade, mas eu garanto, Harry, o
povoado não é tão fantástico quanto dizem — falou ele, sério. — Tudo
bem, a loja de doces é bastante boa e a Zonko"s — Logros e
Brincadeiras é francamente perigosa e, ah, sim, a Casa dos Gritos sempre
vale a pena visitar, mas, verdade, Harry, tirando isso, você não vai
perder nada.
Na
manhã do Dia das Bruxas, Harry acordou com os colegas e desceu para tomar
café, sentindo-se totalmente arrasado, embora se esforçasse ao máximo para
agir normalmente.
—
Vamos lhe trazer um monte de doces da Dedosdemel — prometeu Hermione,
sentindo uma pena desesperada do amigo.
—
É, montes — concordou Rony. Ele e Hermione tinham finalmente esquecido a
briga por causa do Bichento diante do descontentamento de Harry.
—
Não se preocupem comigo — disse Harry no que ele imaginava ser uma voz
displicente. — Vejo vocês na festa. Divirtam-se.
Ele
acompanhou os amigos até o saguão da escola, onde Filch, o zelador, estava
postado à porta de entrada, verificando se os nomes constavam de uma
longa lista, examinando cada rosto cheio de desconfiança, e
certificando-se de que ninguém que não devia ir estivesse saindo escondido
da escola.
—
Vai ficar na escola, Potter? — gritou Malfoy, que estava na fila com
Crabbe e Goyle. — Medinho de passar pelos dementadores?
Harry
não lhe deu atenção e se dirigiu, solitário, para a escadaria de mármore,
seguiu pelos corredores desertos e voltou à Torre da Grifinória.
—
Senha? — perguntou a Mulher Gorda, acordando assustada de um cochilo.
—
Fortuna Major — disse Harry apático.
O
retrato se afastou e ele passou pelo buraco que levava à sala comunal que
estava repleto de alunos do primeiro e segundo ano que tagarelavam e de
alguns alunos mais velhos, que obviamente já tinham visitado Hogsmeade
tantas vezes que a novidade se desgastara.
—
Harry! Harry! Oi, Harry!
Era
Colin Creevey, um colega do segundo ano que tinha uma profunda admiração
por Harry e nunca perdia uma oportunidade de falar com o seu ídolo.
—
Você não vai a Hogsmeade, Harry? Por que não? Ei, — Colin olhou com
ansiedade para os amigos — pode vir se sentar conosco, se quiser, Harry!
—
Hum... Não, obrigado, Colin — disse Harry que não estava a fim de ter um
bandão de gente olhando, curiosa, para a cicatriz em sua testa. — Tenho...
Tenho que ir à biblioteca, preciso fazer um trabalho.
Depois
disso, ele não teve escolha senão dar meia-volta e se dirigir ao buraco do
retrato para sair.
—
Para o que foi então que me acordou? — comentou rabugenta, a Mulher Gorda
quando ele, depois de passar, foi se afastando.
Harry
caminhou, desalentado, em direção à biblioteca, mas no meio do caminho
mudou de idéia; não estava com vontade de trabalhar. Deu meia-volta e
deparou com Filch, que obviamente acabara de despachar o último visitante
para Hogsmeade.
—
Que é que você está fazendo? — rosnou Filch, desconfiado.
—
Nada — respondeu Harry com sinceridade.
—
Nada! — bufou Filch, a queixada tremendo desagradavelmente. — Que coisa
improvável! Andando, sorrateiro, sozinho, por que é que você não está
em Hogsmeade comprando chumbinho fedorento, pó de arroto e minhocas de
apito como os seus outros amiguinhos intragáveis?
Harry
sacudiu os ombros.
—
Muito bem, volte para sua sala comunal que é o seu lugar! — mandou Filch,
com rispidez e ficou parado olhando até Harry desaparecer de vista.
Mas
o garoto não voltou à sala comunal; ele subiu uma escada, pensando vagamente
em visitar o corujal para ver Edwiges, e estava andando por outro
corredor quando uma voz que vinha de uma das salas o chamou:
—
Harry?
O
garoto se virou pata ver quem o chamara e deparou com o Profº. Lupin, que
espiava para os lados à porta de sua sala.
—
Que é que você está fazendo? — perguntou Lupin, embora num tom de voz
diferente do de Filch. — Onde estão Rony e Hermione?
—
Hogsmeade — respondeu Harry num tom que ele pretendia que fosse
descontraído.
—
Ah — comentou Lupin. Ele observou o garoto por um momento. — Por que você
não entra? Estive aguardando a entrega de um grindylow para a nossa próxima aula.
—
De um o quê? — perguntou Harry.
Ele
entrou na sala de Lupin com o professor. A um canto havia uma enorme caixa
de água. Um bicho de cor verde-bile e chifrinhos pontiagudos comprimia a
cara contra o vidro, fazendo caretas e agitando os dedos longos e
afilados.
—
Demônio aquático — explicou Lupin, examinando o grindylow pensativamente. — Não deve nos dar muito trabalho, não
depois dos kappas. O truque é
deixar as mãos deles sem ação. Reparou nos dedos anormalmente compridos?
Fortes mas muito quebradiços.
O
grindylow arreganhou os dentes verdes
e em seguida se enterrou num emaranhado de ervas a um canto.
—
Aceita uma xícara de chá? — ofereceu Lupin, procurando a chaleira. — Eu estava
mesmo pensando em preparar uma.
—
Tudo bem — aceitou Harry sem jeito.
Lupin
deu alguns golpes de varinha na chaleira e na mesma hora saiu do bico uma
baforada de vapor quente.
—
Sente-se — convidou Lupin, tirando a tampa de uma lata empoeirada. —
Receio que só tenha chá em
saquinhos... Mas eu diria que você já bebeu chá em
folhas que chegue.
Harry
olhou para ele. Os olhos do professor cintilavam.
—
Como foi que o senhor soube disso? — perguntou Harry.
—
A Profª. McGonagall me contou — respondeu Lupin, passando a Harry uma
caneca lascada cheia de chá. — Você não está preocupado, está?
—
Não.
Por
um instante Harry pensou em contar a Lupin a história do cão que ele vira
na Rua Magnólia, mas decidiu não fazê-lo. Não queria que Lupin pensasse
que era covarde, principalmente porque o professor já parecia pensar que
ele não era capaz de enfrentar um bicho-papão.
Alguma
coisa dos pensamentos de Harry devia ter transparecido em seu rosto,
porque Lupin perguntou:
—
Tem alguma coisa preocupando-o, Harry?
—
Não — mentiu o garoto. Depois bebeu um pouco de chá observando o grindylow que o ameaçava com o punho. —
Tem — disse ele de repente, pousando a xícara de chá na mesa do
professor — O senhor se lembra daquele dia em que lutamos contra o bicho-papão?
—
Claro.
—
Por que o senhor não me deixou enfrentar o bicho? — perguntou Harry
abruptamente.
Lupin
ergueu as sobrancelhas.
—
Eu teria pensado que isto era óbvio, Harry — disse ele parecendo surpreso.
Harry,
que esperara que o professor negasse ter feito uma coisa dessas, ficou
perplexo.
—
Por quê? — tornou ele a perguntar.
—
Bem — falou Lupin, franzindo de leve a testa —, presumi que se o bicho-papão o enfrentasse, ele assumiria
a forma de Lord Voldemort.
Harry
arregalou os olhos. Não somente esta era a última resposta que poderia
esperar, como também Lupin dissera o nome de Voldemort. A única pessoa que
Harry já ouvira dizer esse nome em voz alta (além dele próprio) fora o
Profº. Dumbledore.
—
Pelo visto eu me enganei — desculpou-se o professor, ainda franzindo a
testa. — Mas eu não achei uma boa idéia Lord Voldemort se materializar
na sala dos professores. Imaginei que os alunos entrariam em pânico.
—
Logo no começo, eu realmente pensei em Voldemort — disse Harry
honestamente. — Mas depois, eu... Eu me lembrei daqueles dementadores.
—
Entendo — falou o professor, pensativo. — Bem, bem... Estou impressionado. —
Ele sorriu brevemente ao ver a expressão de surpresa no rosto do garoto. —
Isto sugere que o que você mais teme é o medo. Muito sensato, Harry.
Harry
não soube o que dizer ao professor, por isso bebeu mais chá.
—
Então você andou pensando que eu não acreditava que você tivesse
capacidade para enfrentar o bicho-papão?
— perguntou Lupin astutamente.
—
Bem... É. — Harry de repente estava se sentindo muito mais feliz.
— Profº. Lupin, o senhor sabe que os dementadores...
O
garoto foi interrompido por uma batida na porta.
—
Entre — convidou o professor.
A
porta se abriu e Snape entrou. Trazia um cálice ligeiramente fumegante e
parou, apertando os olhos negros, ao ver Harry.
—
Ah, Severo — exclamou Lupin sorridente. — Muito obrigado. Podia deixar aí
na mesa para mim?
Snape
pousou o cálice fumegante, os olhos indo de Harry para Lupin.
—
Eu estava mostrando a Harry o meu grindylow
— disse Lupin em tom agradável, indicando o tanque de água.
—
Fascinante — comentou Snape sem sequer olhar para o tanque. — Você devia
beber isso logo, Lupin.
—
É, é, vou beber.
—
Fiz um caldeirão cheio — continuou Snape. — Se precisar de mais...
—
Provavelmente eu deveria tomar mais um pouco amanhã. Muito obrigado, Severo.
—
De nada — disse o colega, mas havia uma expressão em seus olhos que não
agradou a Harry. O professor se retirou de costas para a porta, sem
sorrir, vigilante.
Harry
olhou, curioso, para o cálice. Lupin sorriu.
—
O Profº. Snape teve a bondade de preparar esta poção para mim — explicou
ele. — Nunca fui um bom preparador de poções e esta aqui é
particularmente complexa. — Ele apanhou o cálice e cheirou-o. — É pena que
o açúcar estrague o efeito da poção — acrescentou, tomando um golinho
e estremecendo.
—
Por quê...? — começou Harry.
Lupin
olhou para ele e respondeu à pergunta incompleta.
—
Tenho me sentido meio indisposto. Esta poção é a única coisa que me ajuda.
Tenho a sorte de estar trabalhando ao lado do Profº. Snape; não há muitos
bruxos que saibam prepará-la.
O
professor tomou mais um golinho e Harry teve um desejo incontrolável de
derrubar o cálice de suas mãos.
—
O Profº. Snape é muito interessado nas Artes das Trevas — disse o garoto
sem pensar.
—
É mesmo? — admirou-se Lupin, parecendo apenas levemente interessado,
enquanto tomava mais um gole.
—
Tem gente que supõe que ele faria qualquer coisa para ocupar o cargo de
professor de Defesa contra as Artes das Trevas.
Lupin
esvaziou o cálice e fez uma careta.
—
Horrível — disse. — Bem, Harry é melhor eu voltar ao trabalho. Vejo você mais
tarde na festa.
—
Certo — concordou Harry, deixando na mesa sua xícara vazia. O cálice vazio
continuava a fumegar.
—
Segura aí — exclamou Rony. — Compramos o máximo que podíamos carregar.
Uma
chuva de doces intensamente coloridos caiu no colo de Harry.
Anoitecia
e Rony e Hermione tinham acabado de chegar à sala comunal, as faces
rosadas do vento frio e a expressão de que tinham se divertido como nunca.
—
Obrigado — disse Harry, pegando um pacote de minúsculos Diabinhos de
Pimenta. — Como é que é Hogsmeade? Aonde é que vocês foram?
Pelo
que diziam... A todos os lugares. Dervixes e Bangues, a loja de
equipamento de bruxaria, Zonko"s — Logros e Brincadeiras, no Três
Vassouras para tomar canecas espumantes de cerveja quente amanteigada, e
outros tantos lugares.
—
O Correio, Harry! Umas duzentas corujas, todas pousadas em prateleiras,
todas com código de cores dependendo da urgência com que você quer que
a carta chegue!
—
A Dedosdemel tem um novo tipo de bombom estavam distribuindo amostras
grátis, olha aí um pedacinho, olha...
—
Achamos que vimos um ogro, juro, tem gente de todo o tipo no Três
Vassouras...
—
Gostaria que a gente pudesse ter trazido cerveja amanteigada para você, esquenta
para valer...
—
Que foi que você ficou fazendo? — perguntou Hermione, com ar preocupado. —
Terminou algum dever?
—
Não — respondeu Harry. — Lupin preparou uma xícara de chá para mim na sala
dele. Então Snape entrou...
E
Harry contou aos amigos tudo sobre o cálice. Rony ficou boquiaberto.
—
E Lupin bebeu? Ele é maluco?
Hermione
consultou o relógio de pulso.
—
É melhor descermos, sabe, a festa vai começar dentro
de cinco minutos...
—
Os três atravessaram depressa o buraco do retrato e se misturaram à aglomeração de
alunos, ainda discutindo Snape.
—
Mas se ele... Sabe... — Hermione baixou a voz, olhando, nervosa, para
os lados — se ele estivesse tentando... Envenenar Lupin... Não teria feito isso
na frente de Harry.
—
É talvez — disse Harry quando chegavam ao saguão de entrada e o
atravessavam para entrar no Salão Principal. Este fora decorado com
centenas de abóboras iluminadas por dentro com velas, uma nuvem de
morcegos, muitas serpentinas laranja-vivo que esvoaçavam lentamente pelo
teto tempestuoso como parecendo luzidias cobras de água.
A
comida estava deliciosa; até Hermione e Rony, que já vinham empanturrados
de doces da Dedosdemel, arranjaram lugar para repetir.
Harry
olhava constantemente para a mesa dos professores. O Profº. Lupin parecia
alegre e o mais saudável possível; conversava animadamente com o miúdo
Flitwick, professor de Feitiços. O olhar de Harry percorreu a mesa
até o lugar que Snape ocupava. Seria sua imaginação ou os olhos de Snape
cintilavam na direção de Lupin com mais freqüência do que
seria natural?
A
festa terminou com um espetáculo apresentado pelos fantasmas de Hogwarts.
Eles saltavam de repente das paredes e dos tampos das mesas e voavam em
formação;
Nick
Quase Sem Cabeça, o fantasma da Grifinória, fez grande sucesso com uma
encenação de sua própria decapitação incompleta.
Foi
uma noite tão agradável que o bom humor de Harry sequer foi afetado quando
Malfoy gritou no meio dos colegas, quando deixavam o salão:
—
Os dementadores mandaram lembranças, Potter!
Harry,
Rony e Hermione acompanharam os colegas da Grifinória pelo caminho
habitual para a sua Torre, mas quando chegaram ao corredor que terminava
no retrato da Mulher Gorda, encontraram-no engarrafado pelos alunos.
—
Por que ninguém está entrando? — perguntou Rony, curioso. Harry espiou por
cima das cabeças à sua frente.
Aparentemente
o retrato estava fechado.
—
Me deixem passar — ouviu-se a voz de Percy, que passou cheio de
importância e eficiência pelo ajuntamento. — Qual é o motivo da retenção
aqui? Não é possível que todos tenham esquecido a senha, com licença, sou
o monitor-chefe...
E
então foi baixando um silêncio sobre os alunos a começar pelos que estavam
na frente, dando a impressão de que uma friagem se espalhava pelo
corredor.
Eles
ouviram Percy dizer, numa voz repentinamente alta e esganiçada:
—
Alguém vai chamar o Profº. Dumbledore. Depressa.
As
cabeças dos alunos se viraram; os que estavam atrás se esticaram
nas pontas dos pés.
—
Que é que está acontecendo? — perguntou Gina, que acabara de chegar.
Instantes
depois, o Profº. Dumbledore chegou deslizando, imponente, em direção ao
retrato; os alunos da Grifínória se comprimiram para deixá-lo passar,
e Harry, Rony e Hermione se aproximaram para ver qual era o problema.
—
Essa, não... — a garota agarrou o braço de Harry.
A
Mulher Gorda desaparecera do retrato, que fora cortado com tanta violência
que as tiras de tela se amontoavam no chão; grandes pedaços do retrato
haviam sido completamente arrancados.
Dumbledore
deu uma olhada rápida no retrato destruído, virou-se, o olhar sombrio e
viu os professores McGonagoall, Lupin e Snape que vinham apressados ao seu
encontro.
—
Precisamos encontrá-la — disse Dumbledore. — Profª. McGonagall, por favor
localize o Sr. Filch imediatamente e diga-lhe que procure a Mulher Gorda
em todos os quadros do castelo.
—
Vai precisar de sorte! — disse uma voz gargalhante.
Era
Pirraça, o poltergeist, sobrevoando professores e alunos, encantado, como
sempre, à vista de desastres e preocupações.
—
Que é que você quer dizer com isso, Pirraça? — perguntou Dumbledore
calmamente e o sorriso do poltergeist empalideceu um pouco. Ele não se
atrevia a atormentar o diretor. Em vez disso, adotou uma voz untuosa que
não era nada melhor do que a sua gargalhada escandalosa.
—
Vergonha, Sr. Diretor. Não quer ser vista. Está horrorosa. Eu a vi
correndo por uma paisagem no quarto andar, Sr. Diretor, se escondendo
entre as árvores. Chorando de cortar o coração — informou ele, satisfeito. —
Coitada — acrescentou em tom pouco convincente.
—
Ela disse quem foi que fez isso? — perguntou Dumbledore em voz baixa.
—
Ah, disse, Sr. Diretor — respondeu Pirraça com ar de quem carrega uma
grande bomba nos braços. — Ele ficou furioso porque ela não quis deixá-lo
entrar, entende. — Pirraça deu uma cambalhota no ar e sorriu para Dumbledore entre
as próprias pernas. — Tem um gênio danado, esse tal de Sirius Black.
CAPÍTULO
NOVE
A
Amarga Derrota
O
Profº. Dumbledore mandou todos os alunos da Grifinória voltarem ao Salão
Principal, onde foram se reunir a eles, dez minutos depois, os alunos da
Lufa-Lufa, Corvinal e Sonserina, todos parecendo extremamente atordoados.
—
Os professores e eu precisamos fazer uma busca meticulosa no castelo —
disse o diretor aos alunos quando os professores McGonagall e Flitwick
fecharam as portas do salão que davam para o saguão. — Receio que, para
sua própria segurança, vocês terão que passar a noite aqui. Quero que
os monitores montem guarda nas saídas para o saguão e vou encarregar
o monitor e a monitora chefes de cuidarem disso. Eles devem me informar
imediatamente qualquer perturbação que haja — acrescentou Dumbledore
dirigindo-se a Percy, que assumiu um ar de enorme orgulho e importância. —
Mande um dos fantasmas me avisar.
O
Profº. Dumbledore parou, quando ia deixando o salão, e disse:
—
Ah, sim, vocês vão precisar...
Com
um gesto displicente da varinha, as longas mesas se deslocaram para junto
das paredes e, com um outro toque, o chão ficou coberto por centenas de
fofos sacos de dormir de cor roxa.
—
Durmam bem — disse o Profº. Dumbledore, fechando a porta ao passar.
O
salão imediatamente começou a zumbir com as vozes excitadas dos alunos; os
da Grifinória contavam ao resto da escola o que acabara de acontecer.
—
Todos dentro dos sacos de dormir! — gritou Percy. — Andem logo e chega de
conversa! As luzes vão ser apagadas dentro de dez minutos!
—
Vamos, gente disse Rony a Harry e Hermione; e eles apanharam três sacos de
dormir e os arrastaram para um canto.
—
Vocês acham que Black ainda está no castelo? — cochichou Hermione,
ansiosa.
—
É óbvio que Dumbledore acha que ele ainda pode estar — respondeu Rony.
—
É uma sorte ele ter escolhido esta noite, sabem — comentou Hermione quando
entravam, completamente vestidos, nos sacos de dormir e apoiavam o
corpo nos cotovelos para conversar. — A única noite em que não estávamos
na Torre...
—
Calculo que ele tenha perdido a noção do tempo, já que está fugindo —
disse Rony. — Não percebeu que era Dia das Bruxas. Do contrário teria
invadido o salão.
Hermione
estremeceu.
A
toda volta, os colegas se faziam a mesma pergunta: Como foi que ele entrou?
—
Vai ver ele sabe "aparatar" — sugeriu uma aluna da Corvinal,
próxima. — Aparece de repente, sabe, sem ninguém ver de onde.
—
Provavelmente se disfarçou disse um quintanista da Lufa-Lufa.
—
Vai ver ele voou — sugeriu Dino Thomas.
—
Francamente, será que eu fui a única pessoa que se deu ao trabalho de ler
Hogwarts, uma História? — perguntou Hermione, zangada, a Rony e Harry.
—
Provavelmente — disse Rony. — Por quê?
—
Porque o castelo não está protegido só por paredes, sabem. Recebeu todo o
tipo de feitiço, para impedir as pessoas de entrarem escondidas.
Ninguém pode simplesmente aparatar aqui. E eu gostaria de ver qual é o
disfarce que é capaz de enganar os dementadores. Eles estão guardando
todas as entradas da propriedade. Teriam visto se Black entrasse voando. E
Filch conhece todas as passagens secretas e os funcionários terão coberto
todas...
—
As luzes vão ser apagadas agora! — anunciou Percy. — Quero todo mundo
dentro dos sacos de dormir, de boca calada!
Todas
as velas se apagaram ao mesmo tempo. A única luz agora vinha dos fantasmas
prateados, que flutuavam no ar em sérias conversas com os monitores, e do
teto encantado, que reproduzia o céu estrelado lá fora. Com isso e mais os
sussurros que continuavam a encher o salão, Harry se sentia como se
estivesse dormindo ao ar livre, tocado por um vento suave.
De
hora em hora, um professor aparecia no salão para verificar se estava tudo
calmo. Por volta das três horas da manhã, quando muitos alunos
tinham finalmente adormecido, o Profº. Dumbledore entrou no salão.
Harry observou-o procurar por Percy, que estivera fazendo a ronda
entre os sacos de dormir, ralhando com as pessoas que continuavam
a conversar. O monitor-chefe estava a uma pequena distância de Harry,
Rony e Hermione, que depressa fingiram estar dormindo ao ouvirem os passos
de Dumbledore se aproximarem.
—
Algum sinal dele, professor? — perguntou Percy num cochicho.
—
Não. Está tudo bem aqui?
—
Tudo sob controle, diretor.
—
Ótimo. Não tem sentido transferir os alunos agora. Arranjei um guardião
temporário para o buraco do retrato na Grifinória. Você poderá levá-los de
volta amanhã.
—
E a Mulher Gorda, diretor?
—
Escondida em um mapa de Argyllshire no segundo andar. Aparentemente se recusou a deixar Black
entrar sem a senha, então o bandido a atacou. Ela ainda está muito
perturbada, mas assim que se acalmar, vou mandar Filch restaurá-la.
Harry
ouviu a porta do salão se abrir mais uma vez, rangendo, e novos passos.
—
Diretor? — Era Snape. Harry ficou muito quieto, prestando a maior atenção.
— Todo o terceiro andar foi revistado. Ele não está lá. E Filch
verificou as masmorras; não há ninguém, tampouco.
—
E a torre da Astronomia? A sala da Profª. Trelawney? O corujal?
—
Tudo revistado...
—
Muito bem, Severo. Eu não esperava realmente que Black se demorasse.
—
O senhor tem alguma teoria sobre o modo com que ele entrou, professor? —
perguntou Snape.
Harry
levantou a cabeça um pouquinho para destampar a outra orelha.
—
Muitas, Severo, cada uma mais improvável do que a outra.
Harry
abriu os olhos minimamente e espiou para o lado onde os três se
encontravam; Dumbledore estava de costas para ele, mas dava para ver o
rosto de Percy inteiramente absorto e o perfil de Snape, que parecia
zangado.
—
O senhor se lembra da conversa que tivemos, diretor, antes... Ah... Do
começo do ano letivo? — perguntou Snape, que mal abria os lábios para
falar, como se quisesse impedir Percy de ouvir.
—
Lembro, Severo — disse Dumbledore, e sua voz tinha um tom de aviso.
—
Parece... Quase impossível... Que Black possa ter entrado na escola sem
ajuda de alguém aqui dentro. Expressei minhas preocupações quando o
senhor nomeou...
—
Não acredito que uma única pessoa no castelo tenha ajudado Black a entrar
— disse Dumbledore, e seu tom deixou tão claro que o assunto estava
encerrado que Snape se calou. — Preciso descer para falar com os
dementadores -disse Dumbledore. — Prometi que avisaria quando a nossa
busca estivesse terminada.
—
Eles não quiseram ajudar, diretor? — perguntou Percy.
—
Ah, claro — disse Dumbledore com frieza. — Mas receio que
nenhum dementador irá cruzar a soleira deste castelo enquanto eu for
diretor.
Percy
pareceu ligeiramente desconcertado. Dumbledore saiu do salão rápida e
silenciosamente. Snape continuou parado um instante observando o diretor
com uma expressão de profundo rancor no rosto; em seguida também saiu.
Harry
olhou de esguelha para Rony e Hermione. Os dois também tinham os olhos
abertos nos quais se refletia o teto estrelado.
—
De que é que eles estavam falando? — perguntou Rony, apenas com o
movimento dos lábios.
Nos
dias que se seguiram não se falou de mais nada na escola senão de Sirius
Black. As teorias sobre o modo com que Black entrara no castelo
se tornaram mais e mais delirantes; Ana Abbort, da Lufa-Lufa, passou
a maior parte da aula conjunta de Herbologia, contando para quem quisesse
ouvir que Black era capaz de se transformar em um arbusto florido.
A
tela rasgada da Mulher Gorda fora retirada da parede e substituída pela
pintura de Sir Cadogan e seu gordo pônei cinzento. Ninguém ficou muito
feliz com a troca. O cavaleiro passava metade do tempo desafiando os
garotos a duelar e no tempo restante inventava senhas ridiculamente
complicadas, que ele trocava no mínimo duas vezes por dia.
—
Ele é completamente doido — protestou Simas Finnigan, aborrecido, com
Percy. — Será que não podiam nos dar outro?
—
Nenhum dos outros quadros quis o lugar — disse Percy. — Se assustaram
com o que aconteceu com a Mulher Gorda. Sir Cadogan foi o único que teve
coragem suficiente para se voluntariar.
O
cavaleiro, porém, era a menor das preocupações de Harry.
Ele
agora estava sendo vigiado de perto. Os professores procuravam desculpas
para acompanhá-lo quando ele andava pelos corredores, e Percy Weasley
(agindo, suspeitava Harry, por ordem da mãe) seguia-o a toda parte como um
cão de guarda extremamente pomposo.
Para
completar, a Profª. Minerva chamou Harry à sua sala, com uma expressão tão
sombria no rosto que o garoto achou que alguém devia ter morrido.
—
Não adianta lhe esconder isso por mais tempo, Potter — começou ela em tom
muito sério. — Sei que vai ser um choque para você, mas Sirius Black...
—
Eu sei, está querendo me pegar — disse Harry cansado. — ouvi O pai de Rony
contar à Sra. Weasley. O Sr. Weasley trabalha para o Ministério da Magia.
A
professora pareceu muito espantada. Encarou Harry por um instante e em
seguida falou.
—
Entendo! Bem, neste caso, Potter, você vai compreender por que não acho
uma boa idéia você treinar Quadribol à noite. Lá fora no campo só com os
outros jogadores, é muito exposto, Potter...
—
O nosso primeiro jogo é agora no sábado! — exclamou Harry, indignado. —
Preciso treinar, professora!
Minerva
mirou-o com muita atenção. Harry conhecia o grande interesse da professora
pelas perspectivas da equipe da Grifinória; afinal fora ela que o
recomendara como apanhador, para início de conversa. Por isso aguardou,
prendendo a respiração.
—
Hum... — a Profª. Minerva se levantou e contemplou pela janela o campo de
Quadribol, quase invisível na chuva. — Bem, Deus sabe que eu gostaria
de nos ver ganhando finalmente a Taça... Mas mesmo assim, Potter...
Eu ficaria mais satisfeita se um professor estivesse presente. Vou pedir
à Madame Hooch para supervisionar os seus treinos.
O
tempo foi piorando dia a dia, à medida que a primeira partida de Quadribol
se aproximava. Sem desanimar, a equipe da Grifinória treinava com mais
vigor que nunca sob o olhar vigilante de Madame Hooch. Então, no último
treino antes do jogo de sábado, Olívio Wood deu ao time uma notícia indesejável.
—
Não vamos jogar com Sonserina! — disse aos companheiros, parecendo muito
zangado. — Flint acabou de me procurar. Vamos jogar contra Lufa-Lufa.
—
Por quê? — perguntou o restante do time em coro.
—
A desculpa de Flint é que o braço do apanhador do time ainda está machucado
— respondeu Olívio, rilhando furiosamente os dentes. — Mas é
óbvio por que estão fazendo isto. Não querem jogar com tempo ruim. Acham
que vai reduzir as chances deles...
Tinha
ventado forte e chovido pesado o dia inteiro e mesmo enquanto Olívio
falava ouvia-se o ronco distante do trovão.
—
Não há nada errado com o braço do Malfoy! — disse Harry, furioso. – É tudo
fingimento.
—
Eu sei disso, mas não podemos provar — argumentou Olívio amargurado. — E
temos treinado todos esses lances na suposição de que íamos jogar com
Sonserina, e, em vez disso, será com Lufa-Lufa que tem um estilo muito
diferente.
Agora
eles estão com um capitão novo que também é o apanhador, Cedrico
Diggory...
Angelina,
Alicia e Katie tiveram um repentino acesso de risadinhas.
—
Quê? — exclamou Olívio, fechando a cara para esse comportamento alegre.
—
É aquele alto e bonito, não é? — perguntou Angelina.
—
Forte e caladão — concluiu Katie, e as três recomeçaram a rir.
—
Ele só é caladão porque é burro demais para juntar duas palavras — comentou
Fred, impaciente. — Não sei por que você está preocupado, Olívio,
Lufa-Lufa é brincadeira de criança. Da última vez que jogamos com eles,
Harry capturou o pomo em cinco minutos, não se lembram?
—
Estávamos jogando em condições completamente diferentes — gritou Olívio,
os olhos saltando ligeiramente das órbitas. — Diggory armou uma lateral
muito forte! E é um excelente apanhador! Eu estava com medo que vocês
fizessem essa leitura falsa! Não podemos relaxar! Temos que manter o
nosso foco! Sonserina está tentando nos prejudicar! Precisamos ganhar!
—
Olívio, vê se se acalma! — disse Fred, ligeiramente assustado.
—
Estamos levando Lufa-Lufa muito a sério. Sério.
Um
dia antes da partida, o vento começou a uivar e a chuva a cair com mais
força que nunca. Estava tão escuro nos corredores e salas de aula que foi
preciso acender mais archotes e lanternas. Os jogadores do time da
Sonserina estavam de fato com um ar muito presunçoso e Malfoy mais que
todos.
—
Ah, se ao menos meu braço estivesse um pouquinho melhor! — suspirava ele
enquanto a tempestade lá fora açoitava as janelas.
Harry
não tinha lugar na cabeça para se preocupar com coisa alguma exceto o jogo
do dia seguinte. Olívio Wood não parava de correr para ele nos
intervalos das aulas para lhe passar novas dicas. A terceira vez que isto
aconteceu, Olívio falou tanto tempo que Harry, de repente, percebeu que se
atrasara dez minutos para a aula de Defesa contra as Artes das Trevas
e saiu correndo com Olívio gritando atrás dele.
—
Diggory muda de direção muito rápido, Harry, quem sabe você tenta
cercá-lo...
Harry
parou derrapando diante da classe de Defesa contra as Artes das Trevas,
abriu a porta e entrou correndo.
—
Me desculpe o atraso, Profº. Lupin, eu...
Mas
não foi Lupin quem levantou a cabeça para olhá-lo da escrivaninha do
professor; foi Snape.
—
A aula começou há dez minutos, Potter, por isso acho que vou tirar dez
pontos da Grifinória. Sente-se.
Mas
Harry não se mexeu.
—
Onde está o Profº. Lupin? — perguntou.
—
Ele disse que hoje está se sentindo mal demais para dar aula — respondeu
Snape com um sorriso enviesado. — Acho que o mandei sentar-se?
Mas
Harry continuou onde estava.
—
Que é que ele está sentindo?
Os
olhos negros de Snape reluziram.
—
Nada que ameace a vida dele — disse, com cara de quem gostaria que assim
fosse. — Cinco pontos a menos para Grifinória, e se eu tiver que pedir
para você se sentar novamente, serão cinqüenta.
Harry
dirigiu-se lentamente ao seu lugar e se sentou. Snape olhou para a turma.
—
Como eu ia dizendo antes de ser interrompido por Potter, o Profº. Lupin
não registrou os tópicos que já abordou até hoje...
—
Professor, por favor, já estudamos os bichos-papões,
os barretes vermelhos, os kappas e os grindylows — informou Hermione depressa —, e íamos começar...
—
Fique calada — disse Snape friamente. — Não lhe pedi informação, estava
apenas comentando a falta de organização do Profº. Lupin.
—
Ele é o melhor professor de Defesa contra as Artes das Trevas que já
tivemos — falou Dino Thomas corajosamente, e ouviu-se um murmúrio de aprovação do
resto da turma. Snape pareceu mais ameaçador que nunca.
—
Vocês se satisfazem com muito pouco. Lupin não está puxando nada por
vocês. Eu esperaria que alunos de primeiro ano já pudessem cuidar de barretes vermelhos e grindylows. Hoje vamos discutir...
Harry
observou-o folhear o livro-texto até o último capítulo, que ele certamente
sabia que a turma não poderia ter estudado.
—
... Lobisomens — disse Snape.
—
Mas, professor — protestou Hermione, aparentemente incapaz de se conter —,
não podemos estudar Lobisomens ainda,
vamos começar os hinkypunks...
—
Srta. Granger — disse Snape com uma voz letalmente calma —, eu tinha a
impressão de que era eu que estava dando a aula e não a senhorita. E estou
mandando todos abrirem a página 394 do livro. — Ele correu os olhos
pela turma outra vez. — Todos Agora!
Com
muitos olhares rancorosos de esguelha e gente resmungando, a turma abriu
os livros.
—
Qual de vocês sabe me dizer como é que se distingue um Lobisomen de um lobo verdadeiro? —
perguntou Snape.
Todos
ficaram calados e imóveis; todos exceto Hermione, cuja mão, como acontecia
tantas vezes, se erguera imediatamente no ar.
—
Alguém sabe? — insistiu Snape, fingindo não ver a mão da garota. Seu
sorriso enviesado reaparecera. — Vocês estão me dizendo que o Profº. Lupin
sequer ensinou a vocês a diferença básica entre...
—
Nós já lhe informamos — interrompeu-o Parvati de repente —, ainda não
chegamos aos Lobisomens, ainda
estamos...
—
Silêncio! — mandou Snape com rispidez. — Ora, ora, ora, nunca pensei que
um dia encontraria uma turma de terceiro ano que não soubesse
reconhecer um Lobisomen quando o
visse. Vou fazer questão de informar ao Profº. Dumbledore como vocês estão
atrasados...
—
Professor, por favor — tornou a pedir Hermione, cuja mão continuava
erguida —, o Lobisomen se diferencia
do lobo verdadeiro por pequenos detalhes. O focinho do Lobisomen...
—
Esta é a segunda vez que a senhorita fala sem ser convidada — disse Snape
friamente. — Menos cinco pontos para Grifinória por ser uma
intragável sabe-tudo.
Hermnione
ficou vermelhíssima, baixou a mão e ficou olhando para o chão com os olhos
cheios de lágrimas. Um sinal do quanto à turma detestava Snape era
que todos olharam feio para ele, porque todos os alunos já tinham
chamado Hermione de sabe-tudo pelo menos uma vez, e Rony, que xingava
Hermione de sabe-tudo pelo menos duas vezes por semana, falou em voz alta:
—
O senhor nos fez uma pergunta e Hermione sabe a resposta! Por que
perguntou se não queria que ninguém respondesse?
A
turma percebeu instantaneamente que o colega fora longe demais. Snape
caminhou até Rony lentamente, e a sala prendeu a respiração.
—
Detenção, Weasley — disse Snape suavemente, o rosto muito próximo ao do
garoto. — e se algum dia eu o ouvir criticar o meu modo de ensinar
outra vez, o senhor vai realmente se arrepender.
Ninguém
mais deu um pio durante o resto da aula. Ficaram sentados copiando dados
sobre os Lobisomens do livro-texto,
enquanto Snape rondava as filas de carteiras, examinando o trabalho
que os alunos tinham feito com o Profº. Lupin.
—
Uma explicação muito insuficiente... Isto está errado, o kappa é encontrado mais comumente na
Mongólia... O Profº. Lupin deu nota oito em dez? Eu teria dado três..
Quando
a sineta finalmente tocou, Snape reteve a turma.
—
Cada aluno vai escrever uma redação para me entregar, sobre as maneiras de
reconhecer e matar Lobisomens. Quero
dois rolos de pergaminho sobre o assunto e quero para segunda-feira
de manhã. Está na hora de alguém dar um jeito nesta turma. Weasley, você
fica, precisamos combinar a sua detenção.
Harry
e Hermione saíram da sala com o resto da turma, que esperou até estar
bastante longe para não ser ouvida e prorrompeu em furiosos discursos
contra Snape.
—
Snape nunca foi assim com nenhum dos outros professores de Defesa
contra as Artes das Trevas, mesmo que quisesse o cargo deles —
comentou Harry com Hermione. — Por que está perseguindo o Lupin? Você acha
que tudo isso é por causa dos bichos-papões?
—
Não sei — disse Hermione pensativa. Mas vou realmente torcer para o Profº.
Lupin melhorar logo...
Rony
alcançou-os cinco minutos depois, com uma raiva descomunal.
—
Vocês sabem o que aquele... — (e xingou Snape de uma coisa que fez
Hermione exclamar "Rony!")
— vai me obrigar a fazer? Tenho que lavar as comadres da ala hospitalar Sem
usar magia! — O garoto respirava fundo, os punhos cerrados. — Por que o
Black não podia ter se escondido na sala de Snape, hein? Podia ter
acabado com ele para nós!
Harry
acordou extremamente cedo na manhã seguinte; tão cedo que ainda estava
escuro. Por um momento pensou que tinha sido acordado pelos rugidos do
vento. Então, sentiu uma brisa gelada na nuca e sentou-se na cama de um
salto — Pirraça, o poltergeist, andara flutuando ao lado dele,
soprando com força em seu ouvido.
—
Para que você fez isso? — perguntou Harry, furioso.
Pirraça
encheu as bochechas de ar, soprou com força e disparou de costas para fora
do dormitório, dando gargalhadas.
Harry
tateou procurando o despertador e olhou para o mostrador.
Eram
quatro e meia. Amaldiçoando Pirraça, ele se virou e tentou voltar a
dormir, mas era muito difícil, agora que estava acordado, não dar atenção
à trovoada que roncava no céu, ao vento que fustigava com violência
as paredes do castelo e às árvores que rangiam ao longe, na Floresta
Proibida. Dentro de algumas horas ele estaria lá fora no campo de
Quadribol, enfrentando a tempestade. Por fim, ele perdeu as esperanças de
voltar a dormir, se levantou e se vestiu, apanhou a Nimbus 2000 e
saiu silenciosamente do dormitório.
Quando
abriu a porta, alguma coisa passou roçando por sua perna. Ele se abaixou
bem a tempo de agarrar Bichento pela ponta do grosso rabo e arrastá-lo
para fora.
—
Sabe, acho que Rony tem razão sobre você — disse Harry, desconfiado,
a Bichento. — Há uma quantidade de ratos no castelo — vá caçá-los.
Vá indo — acrescentou o garoto, empurrando Bichento com o pé para
fazê-lo descer a escada. — Deixa o Perebas em paz.
O ruído
da tempestade era ainda mais alto na sala comunal.
Harry
sabia que não adiantava imaginar que a partida seria cancelada; as disputas
de Quadribol não eram desmarcadas por ninharias como trovoadas.
Ainda
assim, ele estava começando a se sentir apreensivo. Olívio lhe apontara
Cedrico Diggory no corredor; o garoto era aluno do quinto ano e muito
maior do que Harry. Os apanhadores geralmente eram leves e velozes, mas o
peso de Diggory seria uma vantagem com um tempo desses porque seria
menor a probabilidade do apanhador ser tirado de curso.
Harry
matou as horas até amanhecer diante da lareira, levantando-se de vez em
quando para impedir Bichento de tornar a subir, escondido, a escada para
o dormitório dos garotos. Finalmente, ele calculou que já devia ser hora
do café da manhã, então se dirigiu sozinho ao buraco do retrato.
—
Pare e lute, seu cão sarnento! — berrou Sir Cadogan.
—
Ah, cala essa boca — bocejou Harry Ele se reanimou um pouco com uma grande
tigela de mingau de aveia, e, no momento em que começou a comer torradas,
o restante da equipe aparecera no Salão.
—
Vai ser uma partida dura — comentou Olívio, que não queria comer nada.
—
Pare de se preocupar, Olívio — disse Alicia para tranqüilizá-lo —, não
vamos derreter com uma chuvinha à toa.
Era
muitíssimo mais do que uma chuvinha. Mas tal era a popularidade do
Quadribol que a escola inteira apareceu para assistir à partida, como sempre.
Os jogadores, no entanto, desceram os jardins em direção ao campo, as
cabeças curvadas contra a ferocidade do vento, os guarda-chuvas arrancados
de suas mãos.
Pouco
antes de entrar no vestiário, Harry viu Malfoy, Grabbe e Goyle, rindo e
apontando para ele protegidos por um enorme guarda-chuva, a caminho do
estádio.
O
time vestiu o uniforme escarlate e aguardou o discurso de Olívio que
antecedia as partidas, mas não houve discurso. O capitão tentou falar
várias vezes, fez um ruído esquisito de quem engole, depois sacudiu a
cabeça, desalentado, e fez sinal para os companheiros o seguirem.
O
vento estava tão forte que eles entraram em campo cambaleando para os
lados. Se os espectadores estavam aplaudindo, os aplausos eram abafados
por novos roncos de trovão. A chuva batia nos óculos de Harry. Como é que
ele ia enxergar o pomo desse jeito?
Os
jogadores da Lufa-Lufa se aproximavam pelo lado oposto do campo, usando
vestes amarelo-canário. Os capitães foram ao encontro um do outro e se
apertaram as mãos; Diggory sorriu para Wood, mas este agora não conseguia
abrir a boca, parecia estar sofrendo de tétano, e fez um mero aceno
com a cabeça. Harry viu a boca de Madame Hooch formar as palavras "Montem em suas vassouras".
Ele puxou o pé direito pingando lama e passou-o por cima de sua
Nimbus 2000. Madame Hooch levou o apito à boca e soprou, um som agudo e
distante — e a partida começou.
Harry
subiu depressa, mas o vento puxava sua Nimbus ligeiramente para o lado.
Ele a segurou o mais firme que pôde e deu uma guinada, apertando os olhos
contra a chuva.
Cinco
minutos depois, estava molhado até os ossos e enregelado, mal conseguia
ver os companheiros de equipe e muito menos o minúsculo pomo. Voou para
frente e para trás cruzando o campo e deixando pelo caminho vultos difusos vermelhos
e amarelos, sem ter a menor idéia do que estava acontecendo no resto da
partida. Não conseguia ouvir os comentários por causa do vento. Os
espectadores se ocultavam sob um mar de capas e guarda-chuvas
arrebentados. Duas vezes Harry esteve muito perto de ser derrubado
por um balaço; seus óculos estavam tão embaçados pela chuva que ele não os
vira se aproximar.
Harry
perdeu a noção do tempo. Tinha cada vez maior dificuldade de se manter
aprumado na vassoura. O céu escurecia, como se a noite tivesse decidido
chegar mais cedo. Duas vezes Harry quase colidiu com outro jogador, sem
saber se era um companheiro de equipe ou um oponente; todos agora estavam
tão encharcados, e a chuva tão grossa que ele mal conseguia
distinguir alguém...
Com
o primeiro relâmpago ouviu-se o som do apito de Madame Hooch;
Harry
conseguiu mal e mal discernir, através da chuva, os contornos de Olívio,
que fazia sinal para ele pousar. O time inteiro enfiou os pés na lama.
—
Eu pedi tempo! — berrou Olívio para seu time. — Venham até aqui embaixo...
Os
jogadores se agruparam na borda do campo debaixo de um grande
guarda-chuva; Harry tirou os óculos e enxugou-os, apressado, nas vestes.
—
Qual é o placar?
—
Estamos cinqüenta pontos na frente — informou Olívio —, mas a não ser que
capturemos logo o pomo, vamos jogar noite adentro.
—
Não tenho a menor chance com isso aqui — disse Harry exasperado, agitando
os óculos.
Naquele
exato instante, Hermione apareceu do lado dele; segurava a capa por cima da
cabeça e inexplicavelmente tinha um largo sorriso no rosto.
—
Tenho uma idéia, Harry! Me dá seus óculos, depressa!
O
garoto entregou os óculos e, enquanto o time observava espantado, Hermione
deu uma pancadinha neles com a varinha e disse:
— Impervius!
—
Pronto! — disse, devolvendo os óculos a Harry. — Isto vai repelir a água!
Wood
fez cara de quem seria capaz de beijá-la.
—
Genial! — gritou rouco para a garota que desapareceu no meio dos
espectadores. — Muito bem, time, agora vamos arrebentar!
O
feitiço de Hermione resolvera o problema. Harry ainda estava insensível de
tanto frio, ainda mais molhado do que jamais estivera na vida, mas
conseguia ver. Cheio de renovada determinação, ele impeliu a vassoura pelo
ar turbulento, espiando para todos os lados à procura do pomo, evitando
um balaço, mergulhando por baixo de Díggory, que voava na direção
oposta...
Ouviu-se
novamente o trovão, acompanhando um raio bifurcado. A partida estava
ficando mais perigosa a cada minuto. Harry precisava chegar ao pomo
depressa...
Ele
se virou, tencionando rumar para o centro do campo, mas naquele momento,
outro relâmpago iluminou as arquibancadas e Harry viu algo que o
distraiu completamente... A silhueta de um enorme cão negro e peludo,
claramente recortada contra o céu, imóvel na última fila de cadeiras
vazias.
As
mãos dormentes de Harry escorregaram do cabo da vassoura e sua Nimbus
afundou alguns palmos. Sacudindo a franja encharcada para longe da testa,
ele tornou a apertar os olhos para ver as arquibancadas. O cão
desaparecera.
—
Harry! — ele ouviu a voz angustiada de Wood vinda das balizas da
Grifinória: — Harry, atrás de você!
Harry
olhou a toda volta desesperado. Cedrico Diggory subia em grande velocidade
e havia entre os dois um grâozinho dourado brilhando no ar varrido de
chuva...
Com
um tremor de pânico, Harry se achatou contra o cabo da vassoura e disparou
em direção ao pomo.
—
Anda! — rosnou ele para a Nimbus, a chuva fustigando seu rosto. — Mais
depressa!
Mas
alguma coisa estranha estava acontecendo. Um silêncio inexplicável foi
caindo sobre o estádio. O vento, embora continuasse forte, se esqueceu
momentaneamente de rugir. Era como se alguém tivesse desligado o som, como
se Harry, de repente, tivesse ficado surdo.
—
Que é que estava acontecendo?
Então
uma onda de frio terrivelmente familiar o assaltou, penetrou seu corpo, no
mesmo instante em que ele tomava consciência de algo que andava lá
embaixo no campo...
Antes
que tivesse tempo para pensar, Harry desviou os olhos do pomo e olhou para
baixo.
No
mínimo cem dementadores apontavam os rostos encapuzados para ele. Era como
se houvesse água gelada subindo até o seu peito, cortando os lados do seu
corpo.
E
então ele ouviu outra vez... Alguém gritava, gritava dentro de
sua cabeça... Uma mulher...
— "O Harry não, o Harry não, por
favor o Harry não!”
—
“Afaste-se, sua tola... Afaste-se,
agora...”
— "O Harry não, por favor, não,
me leve, me mate no lugar dele...”
Uma
névoa anestesiante rodopiava enchendo o cérebro de Harry... Que é que ele
estava fazendo? Por que é que estava voando? Precisava ajudá-la... Ela ia
morrer... Ia ser assassinada...
Ele
foi caindo, caindo sem parar pela névoa gelada.
— "Harry não! Por favor.. Tenha
piedade... tenha piedade...”
Uma
voz aguda gargalhava, a mulher gritava, e Harry perdeu a consciência.
—
Que sorte que o chão estava tão mole.
—
Achei que ele estava mortinho.
—
Mas ele nem quebrou os óculos.
Harry
ouvia as vozes murmurarem, mas não faziam sentido algum.
Não
tinha a menor idéia de onde estava ou como chegara ali, ou o que andara
fazendo antes de chegar. Só sabia que cada centímetro do seu corpo estava
doendo como se ele tivesse levado uma surra.
—
Foi a coisa mais apavorante que já vi na vida. Mais apavorante... A coisa mais
apavorante... Vultos negros encapuzados... Frio... Gritos...
Harry
abriu os olhos de repente. Estava deitado na ala hospitalar. O time de
Quadribol da Grifinória, sujo de lama da cabeça aos pés, rodeava sua cama.
Rony e Hermione também estavam ali, parecendo que tinham acabado de
sair de uma piscina.
—
Harry! — exclamou Fred, cujo rosto estava extremamente pálido sob a lama.
— Como é que você está se sentindo?
Era
como se a memória de Harry estivesse avançando em alta velocidade. O
relâmpago, o Sinistro, o pomo e os dementadores...
—
Que aconteceu? — perguntou, sentando-se na cama tão de repente que todos
reprimiram um grito de surpresa.
—
Você caiu da vassoura — contou Fred. — Deve ter caído... De uns quinze
metros!
—
Pensamos que você tivesse morrido — disse Alicia trêmula. Hermione fez um
barulhinho esganiçado. Tinha os olhos muito vermelhos.
—
Mas o jogo — perguntou Harry. — Que aconteceu? Vamos jogar outra vez?
Ninguém
disse nada. A terrível verdade penetrou em Harry como uma pedrada.
—
Nós não... Perdemos?
—
Diggory apanhou o pomo — informou Jorge. — Logo depois de você cair. Ele
não percebeu o que tinha acontecido. Quando olhou para trás e viu
você no chão, tentou paralisar o jogo. Queria um novo jogo. Mas tiveram
uma vitória justa... Até Olívio admite isso.
—
Onde está Olívio? — perguntou Harry, percebendo subitamente a ausência do
capitão do time.
—
Ainda está no banho — respondeu Fred. — Achamos que ele está tentando se
afogar.
Harry
abaixou a cabeça até os joelhos, agarrando os cabelos com as mãos. Fred
segurou-o pelos ombros e o sacudiu com força.
—
Anda, Harry, você nunca perdeu o pomo antes.
—
Tinha que haver uma primeira vez — disse Jorge.
—
Mas a coisa não terminou aqui — disse Fred. — Perdemos por uma diferença
de cem pontos, certo? Então se Lufa-Lufa perder para Corvinal e vencermos
Corvinal e Sonserina...
—
Lufa-Lufa terá que perder, no mínimo, por duzentos pontos — disse
Jorge.
—
Mas se eles vencerem Corvinal...
—
Nem pensar, Corvinal é bom demais. Mas se Sonserina perder para
Lufa-Lufa...
—
Tudo depende do número de pontos, uma margem de cem pontos a mais ou a
menos...
Harry
ficou deitado ali, sem dizer uma palavra. Tinham perdido... Pela primeira
vez na vida, ele perdera uma partida de Quadribol.
Passados
mais ou menos uns dez minutos, Madame Pomfrey veio dizer aos garotos que
deixassem Harry em paz.
—
A gente volta para ver você mais tarde — disse Fred. — Não fique se
martirizando, Harry, você ainda é o melhor apanhador que já tivemos.
O
time saiu, largando lama pelo caminho. Madame Pomfrey fechou a porta
depois que eles passaram, uma expressão de censura no rosto. Rony e
Hermione se aproximaram mais da cama de Harry.
—
Dumbledore ficou realmente furioso — contou Hermione com a voz trêmula. —
Nunca vi o diretor assim antes. Ele correu para o campo quando você
começou a cair, agitou a varinha e você meio que desacelerou antes de
bater no chão. Depois, virou a varinha para os dementadores. Disparou uma
coisa prateada contra eles. Os caras abandonaram o estádio na mesma
hora... Ele ficou furioso que os dementadores tivessem entrado nos
terrenos da escola. Ouvimos ele...
—
Aí ele usou a magia para botar você numa padiola — disse Rony. — E saiu a
pé até a escola, com você flutuando do lado, na padiola. Todo mundo pensou
que você estava...
A
voz dele foi morrendo, mas Harry nem notou. Estava pensando no que os
dementadores tinham feito a ele... Na voz que gritava. Ergueu os olhos e
deparou com Rony e Hermione observando-o com tanta aflição que na mesma
hora ele procurou uma coisa banal para dizer.
—
Alguém apanhou a minha Nimbus?
Rony
e Hermione se entreolharam depressa.
—
Hum...
—
Que foi? — perguntou Harry, olhando de um para o outro.
—
Bem... Quando você caiu a vassoura foi levada pelo vento — disse Hermione,
hesitante.
—
E?
—
E bateu... Bateu... Ah, Harry... Bateu no Salgueiro Lutador.
As
entranhas de Harry reviraram. O Salgueiro Lutador era uma árvore violenta
que se erguia sozinha no meio da propriedade.
—
E? — insistiu ele, temendo a resposta.
—
Bem, você conhece o Salgueiro Lutador — disse Rony. — Ele.. Ele não gosta
que batam nele.
—
O Profº. Flitwick trouxe a vassoura de volta pouco antes de você recuperar
os sentidos — disse Hermione com uma voz mínima.
Devagarinho,
ela foi se abaixando para apanhar uma saca aos seus pés, despejou-a, e
caíram na cama uns pedacinhos de madeira e gravetos, tudo que
restava da fiel vassoura de Harry, enfim derrotada.
CAPÍTULO
DEZ
O
Mapa do Maroto
Madame
Pomfrey insistiu em
manter Harry na ala hospitalar pelo resto do fim de
semana. Ele não discutiu nem se queixou, mas não deixou jogarem no lixo os
estilhaços de sua Nimbus 2000. Sabia que era uma atitude burra, sabia que
a vassoura não tinha conserto, mas o sentimento era mais forte que ele;
era como se tivesse perdido um dos seus melhores amigos.
Uma
procissão de amigos veio visitá-lo, todos decididos a animá-lo.
Hagrid
lhe mandou um buquê de flores com lagartinhas, que pareciam repolhos
amarelos, e Gina Weasley, corando furiosamente, apareceu com um cartão de
votos de saúde, feito por ela mesma, que cantava com voz esganiçada a não
ser que Harry o guardasse fechado embaixo da fruteira. O time da
Grifinória tornou a visitar o companheiro no domingo de manhã, desta vez
em companhia de Olívio, que declarou a Harry (numa voz de
além-túmulo) que não o responsabilizava pela derrota. Rony e Hermione só
deixavam a cabeceira de Harry à noite. Mas nada que ninguém dissesse ou
fizesse conseguia fazê-lo se sentir melhor, porque eles só conheciam
metade das suas preocupações.
Ele
não contara a ninguém que vira o Sinistro, nem a Rony nem a Hermione,
porque sabia que o amigo entraria em pânico e a amiga caçoaria dele. O
fato era, no entanto, que o Sinistro agora já aparecera duas vezes e ambas
as aparições tinham sido seguidas por acidentes quase fatais; da
primeira vez Harry quase fora atropelado pelo Nôitibus Andante; da
segunda, levara uma queda da vassoura de quase quinze metros de altura.
Será que o Sinistro ia atormentá-lo até a morte?
Será
que ele, Harry, ia passar o resto da vida olhando por cima do ombro à
procura da fera?
Além
disso havia os dementadores. Harry sentia mal-estar e humilhação toda vez
que pensava neles. Todos diziam que os guardas eram medonhos,
mas ninguém desmaiava sempre que se aproximava deles. Ninguém mais
ouvia mentalmente os ecos da morte dos pais.
Isto
porque agora Harry sabia a quem pertencia a tal voz. Ouvira o que ela
dizia, ouvira-a continuamente nas longas noites passadas na ala hospitalar
quando ficava acordado, contemplando as listras que o luar formava no
teto.
Quando
os dementadores se aproximavam, ele ouvia os últimos instantes de vida de
sua mãe, sua tentativa de proteger o filho da sanha de Lord Voldemort e a
gargalhada do bruxo antes de matá-la... Harry dava breves cochilos,
mergulhando em sonhos cheios de mãos podres e pegajosas e súplicas
fossilizadas, acordando de repente para voltar a pensar na voz da mãe.
Foi
um alívio voltar à zoeira e à atividade da escola principal
na segunda-feira, e ser forçado a pensar em outras coisas, ainda que
tivesse de aturar a implicância de Draco Malfoy. O garoto não cabia
em si de alegria com a derrota da Grifinória. Retirara finalmente as
bandagens e comemorava a circunstância de poder usar os dois braços
novamente, fazendo espirituosas imitações de Harry caindo da vassoura.
Malfoy passou a maior parte da aula seguinte de Poções, a que assistiram
juntos na masmorra, fazendo imitações dos dementadores; Rony finalmente
se descontrolou e atirou um enorme e gosmento coração de crocodilo
em Malfoy, que o atingiu no rosto, o que fez Snape descontar
cinqüenta pontos da Grifinória.
—
Se Snape vier dar aula de Defesa contra as Artes das Trevas de novo, vou
me mandar — anunciou Rony quando seguiam para a classe de Lupin depois do
almoço. — Vê quem está lá, Mione.
A
garota espiou pela porta da sala.
—
Tudo bem!
O
Profº. Lupin voltara ao trabalho. Sem dúvida tinha a aparência de quem
estivera doente. Suas vestes velhas estavam mais frouxas e havia olheiras
escuras sob seus olhos; ainda assim, ele sorriu para os garotos que
ocupavam seus lugares na classe e, em seguida, desataram a se queixar do
comportamento de Snape na ausência de Lupin.
—
Não é justo, ele estava só substituindo o senhor, por que passou dever de
casa?
—
Não sabemos nada de Lobisomens...
—
Dois rolos de pergaminho!
—
Vocês disseram ao Profº. Snape que ainda não estudamos Lobisomens? — perguntou Lupin, franzindo
ligeiramente a testa.
A
balbúrdia tornou a encher a sala.
—
Dissemos, mas ele respondeu que estávamos muito atrasados...
—
Ele não quis ouvir..
—
Dois rolos de pergaminho!
O
Profº. Lupin sorriu ao ver a expressão indignada nos rostos dos alunos.
—
Não se preocupem. Vou falar com o Profº. Snape. Não precisam fazer a
redação.
—
Ah, não! — exclamou Hermione, muito desapontada. — Já terminei a minha.
Tiveram
uma aula muito gostosa. O Profº. Lupin trouxera uma caixa de vidro
contendo um hinkypunk, uma
criaturinha de uma perna só, que parecia feita de fiapos de fumaça, a
aparência frágil e inofensiva.
—
O hinkypunk atrai os viajantes para
os brejos — informou o professor enquanto os garotos faziam anotações. —
Vocês repararam na lanterna que ele traz pendurada na mão? Ele salta
para frente... A pessoa acompanha a luz... Então...
A
criatura fez um horrível barulho de sucção contra o vidro da caixa.
Quando
a sineta tocou, todos guardaram o material e se dirigiram para a porta,
Harry entre eles, mas...
—
Espere um instante, Harry — chamou Lupin. — Gostaria de dar uma palavrinha
com você.
Harry
deu meia-volta e observou o professor cobrir a caixa do hinkypunk com um pano.
—
Soube do que houve no jogo — disse Lupin, virando-se para sua escrivaninha
e começando a guardar os livros na maleta — e sinto muito pelo acidente com
a sua vassoura. Há alguma possibilidade de consertá-la?
—
Não — respondeu Harry. — A árvore arrebentou-a em mil pedacinhos.
Lupin
suspirou.
—
Plantaram o Salgueiro Lutador no ano em que cheguei em Hogwarts. Os alunos
costumavam brincar de tentar se aproximar do tronco e tocar a árvore com a
mão. No fim, um garoto chamado Davi Gudgeon quase perdeu um olho e fomos
proibidos de chegar perto do salgueiro. Uma vassoura não teria a
menor chance.
—
O senhor soube dos dementadores também? — perguntou Harry com dificuldade.
Lupin
lançou um olhar rápido a Harry.
—
Soube. Acho que nenhum de nós tinha visto o Profº. Dumbledore tão
aborrecido. Há algum tempo, eles estão ficando inquietos... Furiosos com a
recusa do diretor de deixar que entrem na propriedade... Suponho que
tenham sido eles a razão da sua queda.
—
Foram. — Harry hesitou e, então, a pergunta que queria fazer escapou de
sua boca antes que pudesse contê-la. — Por quê? Por que eles me afetam
desse jeito? Será que sou apenas....
—
Não tem nada a ver com fraqueza — respondeu o professor depressa, como se
tivesse lido o pensamento de Harry. — Os dementadores afetam você pior do
que os outros porque existem horrores no seu passado que não existem no
dos outros.
Um
raio de sol de inverno entrou na sala, iluminando os cabelos grisalhos de
Lupin e os traços do seu rosto jovem.
—
Os dementadores estão entre as criaturas mais malignas que vagam pela
Terra. Infestam os lugares mais escuros e imundos, se comprazem com a
decomposição e o desespero, esgotam a paz, a esperança e a felicidade do
ar à sua volta. Até os trouxas sentem a presença deles, embora não possam
vê-los. Chegue muito perto de um dementador e todo bom sentimento, toda
lembrança feliz serão sugados de você. Se puder, o dementador se
alimentará de você o tempo suficiente para transformá-lo em um
semelhante... Desalmado e mau. Não deixará nada em você exceto as piores
experiências de sua vida. E o pior que aconteceu com você, Harry, é
suficiente para fazer qualquer um cair da vassoura. Você não tem do que se
envergonhar.
—
Quando eles chegam perto de mim... — Harry fixou o olhar na mesa de Lupin,
sentindo um nó na garganta —, ouço Voldemort assassinando minha mãe.
Lupin
fez um movimento repentino com o braço como se fosse segurar o ombro de
Harry, mas pensou melhor. Houve um momento de silêncio, depois...
—
Por que é que eles tinham que ir ao jogo? — exclamou o garoto amargurado.
—
Estão ficando famintos — disse Lupin tranquilamente, fechando a maleta com
um estalo. — Dumbledore não permite que eles entrem na escola,
então o suprimento de gente com que contavam secou... Acho que eles
não conseguiram resistir à multidão em torno do campo de Quadribol. Toda
a excitação... As emoções exacerbadas... É a idéia que fazem de um
banquete.
—
Azkaban deve ser horrível — murmurou Harry.
Lupin concordou,
sério.
—
A fortaleza foi construída em uma ilhota, bem longe da costa, mas não
precisam de paredes nem de água para manter os prisioneiros confinados,
não quando eles já estão presos dentro da própria cabeça, incapazes de
um único pensamento agradável. A maioria enlouquece em poucas semanas.
—
Mas Sirius Black escapou — comentou Harry lentamente. — Fugiu...
A
maleta de Lupin escorregou da escrivaninha; ele teve que se abaixar
depressa para apanhá-la no ar.
—
É — disse se endireitando. — Black deve ter encontrado uma maneira de
combatê-los. Eu não teria acreditado que isto fosse possível... Dizem que
os dementadores esgotam os poderes de um bruxo que conviver um tempo
demasiado longo com eles...
—
O senhor fez aquele dementador no trem recuar — disse Harry de repente.
—
Há... Certas defesas que se pode usar — disse Lupin. — Mas no trem havia
apenas um dementador. Quanto maior o número, mais difícil é resistir a
eles.
—
Que defesas? — perguntou Harry em seguida. — O senhor pode me ensinar?
—
Não tenho a pretensão de ser um especialista no combate a dementadores,
Harry... Muito ao contrário...
—
Mas se os dementadores forem a outro jogo de Quadribol, preciso saber
lutar contra eles...
Lupin
avaliou o rosto decidido de Harry, hesitou, depois disse:
—
Bem... Está bem. Vou tentar ajudar. Mas receio que você terá de esperar
até o próximo trimestre. Tenho muito que fazer antes das férias. Escolhi
uma hora muito inconveniente para adoecer.
Com
a promessa de receber aulas antidementadores de Lupin, o pensamento de que
talvez não precisasse mais ouvir a morte da mãe, e o fato de que Corvinal
esmagara Lufa-Lufa na partida de Quadribol no final de novembro, o ânimo
de Harry deu uma guinada definitiva para cima. Afinal, Grifinória não
fora eliminada da competição, embora o time não pudesse se dar ao luxo de
perder mais uma partida. Olívio tornou a ficar possuído por uma energia
obsessiva, e treinou com o time com mais empenho que nunca, na chuvinha
gélida e nevoenta que persistiu até dezembro. Harry não viu nem sinal
de dementador nos terrenos da escola. A fúria de Dumbledore parecia
ter funcionado para mantê-los em seus postos nas entradas.
Duas
semanas antes do fim do trimestre, o céu clareou de repente até atingir um
branco leitoso e ofuscante, e os terrenos enlameados da escola
amanheceram, certo dia, cobertos de cintilante geada. No interior do
castelo, havia um rebuliço de Natal no ar. Flitwick, o professor de
Feitiços, já enfeitara sua sala de aula com luzes pisca-piscas que, quando
foram ver, eram fadinhas voadoras de verdade. Os alunos estavam
satisfeitos discutindo planos para as férias de Natal. Tanto
Rony quanto Hermione haviam decidido permanecer em Hogwarts e, embora
Rony dissesse que era porque não ia conseguir aturar Percy duas
semanas, e Hermione insistisse que precisava consultar a biblioteca, Harry
não se deixou enganar; sabia que era para lhe fazerem companhia e se sentiu
muito grato.
Para
alegria de todos, exceto Harry, houve mais uma visita a Hogsmeade no
último fim de semana do trimestre.
—
Podemos fazer todas as nossas compras de Natal lá! — exclamou Hermione. —
Mamãe e papai iriam adorar receber fios dentais de menta da Dedosdemel!
Resignado
com a idéia de que seria o único aluno do terceiro ano a não ir, Harry
pediu emprestado a Olívio o livro Qual Vassoura, e resolveu passar o
dia lendo sobre as diferentes marcas. Ele andara montando uma vassoura
da escola nos treinos do time, uma velhíssima Shooting Star, que
era demasiado lenta e instável; decididamente precisava de uma vassoura
nova.
Na
manhã de sábado em que os colegas iriam a Hogsmeade, Harry se despediu de
Rony e Hermione, embrulhados em capas e cachecóis, tornou a subir a
escadaria de mármore, sozinho, e tomou o caminho da Torre da Grifinória. A
neve começara a cair do lado de fora das janelas e o castelo estava
muito parado e silencioso.
—
Psiu... Harry!
Ele
se virou, a meio caminho do corredor do terceiro andar, e viu Fred e Jorge
espiando-o atrás da estátua de uma bruxa corcunda, de um olho só.
—
Que é que vocês estão fazendo? — perguntou Harry, curioso.
—
Vocês não vão a Hogsmeade?
—
Antes de ir viemos fazer uma festinha para animar você — disse Fred, com
uma piscadela misteriosa. — Venha até aqui...
O
garoto indicou com a cabeça uma sala de aula vazia, à esquerda da estátua
de um olho só. Harry acompanhou os gêmeos. Jorge fechou a porta sem fazer
barulho e se virou, sorrindo, para Harry.
—
Presente de Natal antecipado para você, Harry — anunciou.
Fred
tirou alguma coisa de dentro da capa com um gesto largo e colocou-a em
cima de uma carteira. Era um pedaço de pergaminho, grande, quadrado e
muito gasto, sem nada escrito na superfície. Harry, desconfiando que fosse
uma daquelas brincadeiras de Fred e Jorge, ficou parado olhando para o presente.
—
E o que é que é isso? — perguntou.
—
Isso, Harry, é o segredo do nosso sucesso — disse Jorge, dando uma
palmadinha carinhosa no pergaminho.
—
Dói na gente dar esse presente para você — disse Fred —, mas decidimos, na
noite passada, que você precisa muito mais dele do que nós. E, de qualquer
maneira, já o conhecemos de cor. É uma herança que vamos lhe deixar. Para
falar a verdade, não precisamos mais dele.
—
E para que eu preciso de um pedaço de pergaminho velho? — perguntou Harry.
—
Um pedaço de pergaminho velho! — exclamou Fred, fechando os olhos com
uma careta, como se Harry o tivesse ofendido mortalmente. — Explique
a ele Jorge.
—
Bem... Quando estávamos no primeiro ano, Harry... Jovens, descuidados e
inocentes...
Harry
abafou uma risada. Duvidava se algum dia os gêmeos teriam sido inocentes.
—
Bem, mais inocentes do que somos hoje... Nos metemos numa certa confusão
com Filch.
—
Soltamos uma bomba de bosta no corredor e por alguma razão ele ficou
aborrecido...
—
Então Filch nos arrastou até a sala dele e começou a nos ameaçar com os
castigos de costume...
—
... Detenção...
—
... Nos arrancar as tripas...
—
... E não pudemos deixar de reparar numa gaveta do arquivo dele em que
estava escrito Confiscado e Muito Perigoso.
—
Não precisam continuar... — exclamou Harry, começando a sorrir.
—
Bem, que é que você teria feito? — perguntou Fred. — Jorge soltou mais uma
bomba de bosta para distrair Filch, eu abri depressa a gaveta e tirei...
Isto.
—
Não foi tão desonesto quanto parece, sabe — comentou Jorge.
—
Calculamos que Filch nunca tivesse descoberto como usar o pergaminho.
—
Mas, provavelmente suspeitou o que era ou não o teria confiscado.
—
E vocês sabem como usar?
—
Ah, sabemos — disse Fred, rindo. — Esta jóia nos ensinou mais do que todos
os professores da escola.
—
Vocês estão me gozando — disse Harry, olhando para o pedaço velho e
rasgado de pergaminho.
—
Ah, é? — disse Jorge.
Ele
apanhou a varinha, tocou o pergaminho de leve e disse:
— “Juro solenemente que não pretendo
fazer nada de bom”.
Na
mesma hora, linhas de tinta muito finas começaram a se espalhar como uma
teia de aranha a partir do ponto em que a varinha de Jorge tocara. Elas
convergiram, se cruzaram, se abriram como um leque para os quatro cantos
do pergaminho; em seguida, no alto, começaram a aflorar palavras, palavras grandes,
floreadas, verdes, que diziam:
Os Srs. Aluado, Rabicho, Almofadinha e
Pontas, fornecedores de recursos para bruxos malfeitores, têm a honra
de apresentar “O MAPA DO MAROTO”.
Era
um mapa que mostrava cada detalhe dos terrenos do castelo de Hogwarts. O
mais notável, contudo, eram os pontinhos mínimos de tinta que se moviam em
torno do mapa, cada um com um rótulo em letra minúscula. Pasmo, Harry se
curvou para examinar melhor. Um pontinho, no canto superior esquerdo,
mostrava que o Profº. Dumbledore estava andando para lá e para
cá em seu escritório; a gata do zelador, Madame Nor-r-ra, rondava o
segundo andar; e Pirraça, o poltergeist, naquele momento
saltitava pela sala de troféus. E quando os olhos de Harry percorreram
os corredores que tão bem conhecia, ele notou mais uma coisa.
O
mapa mostrava um conjunto de passagens em que ele nunca entrara. E muitas
pareciam levar...
—
... Diretamente a Hogsmeade — disse Fred, acompanhando uma delas com o
dedo. — São sete ao todo. Até agora Filch conhece essas quatro — ele as
apontou —, mas temos certeza de que somente nós conhecemos estas outras.
Não se preocupe com a passagem por trás do espelho no quarto andar. Nós a
usamos até o inverno passado, mas já desabou, está completamente
bloqueada. E achamos que ninguém jamais usou esta porque o Salgueiro
Lutador foi plantado bem em cima da entrada. Mas, esta outra aqui
leva diretamente ao porão da Dedosdemel. Nós já a usamos um monte
de vezes. E como você talvez tenha notado, a entrada é bem ali do lado
de fora da sala, na corcunda daquela velhota de um olho só.
—
Aluado, Rabicho, Almofadinhas e Pontas — suspirou Jorge, dando um tapinha
no cabeçalho do mapa. — Devemos tanto a eles.
—
Almas nobres, que trabalharam incansavelmente para ajudar novas gerações
de transgressores — disse Fred solenemente.
—
Certo — acrescentou Jorge depressa. — Não se esqueça de limpar o mapa
depois de usá-lo...
—
... Senão qualquer um pode ler — recomendou Fred.
—
É só bater com a varinha mais uma vez e dizer "Malfeito feito!", e o pergaminho torna a ficar
branco.
—
Portanto, jovem Harry — disse Fred, numa incrível imitação de Percy —,
trate de se comportar.
—
Vejo você na Dedosdemel — despediu-se Jorge, piscando.
Os
gêmeos deixaram a sala, sorrindo satisfeitos consigo mesmos.
Harry
ficou ali, contemplando o mapa milagroso. Acompanhou o pontinho de tinta
Madame Nor-r-ra virar à esquerda e parar para cheirar alguma coisa no
chão. Se Filch realmente não conhecia... Ele não teria que passar pelos
dementadores...
Mas
mesmo enquanto continuava ali, transbordante de excitação, uma coisa que
ouvira, certa vez, o Sr. Weasley dizer aflorou em sua lembrança.
“Nunca confie em nada que é capaz de
pensar, se você não pode ver onde fica o seu cérebro”.
O
mapa era um daqueles objetos mágicos perigosos sobre os quais o Sr.
Weasley o prevenira... Recursos para bruxos malfeitores... Mas então,
raciocinou Harry, ele só queria usar o mapa para ir a Hogsmeade, não era
que quisesse roubar alguma coisa ou atacar alguém... E Fred e Jorge já o usavam
havia anos, sem que nada de terrível tivesse acontecido...
Harry
acompanhou com o dedo a passagem secreta até a Dedosdemel.
Depois,
subitamente, como se obedecesse a uma ordem, enrolou o mapa, guardou-o nas
vestes e correu para a porta da sala de aula. Abriu-a uns dedinhos.
Não havia ninguém do lado de fora. Com muito cuidado, esgueirou-se da
sala até as costas da estátua da bruxa de um olho só.
Que
era mesmo que devia fazer? Puxou outra vez o mapa e viu, para seu espanto,
que um novo boneco de tinta aparecera no pergaminho, rotulado Harry
Potter.
Estava
parado exatamente no mesmo lugar que o verdadeiro Harry, mais ou menos na
metade do corredor do terceiro andar. Harry observou-o atentamente. Seu
pequeno eu de tinta parecia estar tocando a bruxa com uma varinha mínima. O garoto
na mesma hora puxou a varinha real e deu um toque na estátua.
Nada aconteceu. Ele tornou a consultar o mapa. Um balão com um texto
aparecera ao lado do seu boneco. Dentro do balão havia a palavra "Dissendium”.
—
Dissendium! — sussurrou Harry dando
uma nova batida na bruxa de pedra.
Na
mesma hora, a corcunda da estátua se abriu o suficiente para admitir uma
pessoa bem magra. Harry deu uma espiada rápida nos dois lados do corredor,
guardou outra vez o mapa, se içou de cabeça para dentro do buraco e deu
um impulso para frente.
Ele
deslizou um bom pedaço, descendo o que parecia um escorrega de pedra e
aterrissou na terra úmida e fria. Levantou-se, então, olhando a toda
volta. Estava escuro como breu. Harry ergueu a varinha e murmurou:
—
Lumus! — E pôde ver que se encontrava
em uma passagem muito estreita, baixa e terrosa. Ergueu, então, o mapa,
tocou-o com a ponta da varinha e disse baixinho: — Malfeito feito! — O mapa ficou
imediatamente branco. Ele o dobrou cuidadosamente, enfiou-o dentro das
vestes, depois, o coração batendo rápido, ao mesmo tempo excitado e
apreensivo, Harry começou a andar.
A
passagem virava e tornava a virar, mais parecendo uma toca de coelho
gigante do que qualquer outra coisa. Harry caminhou depressa por ela,
tropeçando aqui e ali no chão acidentado, segurando a varinha com firmeza
à sua frente.
Levou
uma eternidade, mas o garoto tinha o pensamento fixo na capacidade da
Dedosdemel repor suas forças. Depois do que lhe pareceu uma hora, a
passagem começou a subir. Ofegante, Harry apertou o passo, o rosto quente,
os pés muito gelados.
Dez
minutos mais tarde, chegou ao pé de uns degraus de pedra muito gastos, que
subiam a perder de vista. Tomando cuidado para não fazer barulho, Harry
começou a subir. Cem degraus, duzentos degraus, perdeu a conta, olhando
para os pés... Então, sem aviso, sua cabeça bateu em alguma coisa dura.
Parecia
um alçapão. Harry ficou parado ali, massageando o cocuruto da cabeça,
apurando os ouvidos. Não conseguia ouvir nenhum som em cima. Muito
devagarinho, empurrou o alçapão e espiou pela borda.
Deparou
com um porão, cheio de caixotes e caixas. Harry subiu pelo alçapão e
tornou a fechá-lo. Ele se fundiu tão
perfeitamente com o soalho empoeirado que era impossível saber que
estava ali. O garoto avançou lentamente até a escada de madeira que levava
ao andar superior. Agora decididamente conseguia ouvir vozes, para
não falar no tilintar de uma sineta e no abre e fecha de uma porta.
Pensando
no que deveria fazer, Harry, de repente, ouviu uma porta se abrir muito
próximo; alguém ia descer a escada.
—
E traga mais uma caixa de lesmas gelatinosas, querido, eles praticamente
levaram tudo... — disse uma voz feminina.
Dois
pés desceram a escada. Harry pulou para trás de um enorme caixote e
esperou os passos se distanciarem. Ouviu o homem deslocando caixas na
parede oposta.
Talvez
não tivesse outra oportunidade...
Rápida
e silenciosamente, o garoto saiu abaixado do esconderijo e subiu as
escadas; ao olhar para trás, viu um enorme traseiro e uma careca
reluzente enfiada em uma caixa. Harry alcançou a porta no patamar da
escada, escapuliu por ela e se encontrou atrás do balcão da Dedosdemel,
abaixou-se, saiu quietinho de lado e por fim se levantou.
A
Dedosdemel estava tão cheia de alunos de Hogwarts que ninguém olhou duas
vezes para Harry. O garoto foi passando entre eles, olhando para os lados
e reprimiu uma risada só de imaginar a expressão que apareceria na cara de
porco do Duda se pudesse ver onde ele estava agora.
Havia
prateleiras e mais prateleiras de doces com a aparência mais apetitosa que
se pode imaginar. Tabletes de nugá, quadrados cor-de-rosa de sorvete de
coco, caramelos cor de mel; centenas de tipos de bombons em fileiras
arrumadinhas; havia uma barrica enorme de feijõezinhos de todos os
sabores, Delícias gasosas — as tais bolas de sorvete de fruta que faziam
levitar que Rony mencionara —, em outra parede havia os doces de
"efeitos especiais": os melhores chicles de baba e bola
(que enchiam a loja de bolas azulonas e se recusavam a estourar durante
dias), o estranho e quebradiço fio dental de menta, minúsculos Diabinhos
negros de pimenta ("sopre fogo
em seus amigos!"), Ratinhos de sorvete ("ouça seus dentes baterem e rangerem!"), Sapos de creme
de menta ("faça sua barriga
saltar para valer!"), frágeis penas de algodão-doce e bombons
explosivos.
Harry
se espremeu entre os alunos do sexto ano que enchiam a loja e viu um
letreiro pendurado no canto mais distante do salão (SABORES INCOMUNS).
Rony e Hermione estavam bem embaixo, examinando uma bandeja de pirulitos
com gosto de sangue. Harry, sorrateiramente, foi parar atrás dos dois.
—
Eca, não, Harry não vai querer esses, são para vampiro, imagino — ia
dizendo Hermione.
—
E esses aqui? — perguntou Rony, enfiando um vidro de cachos de barata
embaixo do nariz de Hermione.
—
Decididamente não — disse Harry.
Rony
quase deixou cair o vidro.
—
Harry! — berrou Hermione. — Que é que você está fazendo aqui? Como... Foi
que você...?
—
Uau! — exclamou Rony, parecendo muito impressionado —, você aprendeu a
aparatar!
—
Claro que não aprendi. — Harry baixou a voz de modo que nenhum dos alunos
de sexto ano pudesse ouvir e contou aos amigos sobre o Mapa do Maroto.
—
Como é que Fred e Jorge nunca me deram esse mapa? — perguntou Rony
indignado. — Eu sou irmão deles!
—
Mas Harry não vai ficar com o mapa! — afirmou Hermione como se a idéia
fosse ridícula. — Vai entregá-lo à Profª. Minerva, não é Harry?
—
Não, não vou não! — disse Harry.
—
Você é maluca? — exclamou Rony, arregalando os olhos para a garota. —
Entregar uma coisa boa dessas?
—
Se eu entregar, vou ter que contar onde foi que o arranjei. Filch ia saber
que Fred e Jorge surrupiaram dele!
—
Mas e o Sirius Black? — sibilou Hermione. — Ele poderia estar usando uma
das passagens do mapa para entrar no castelo! Os professores têm que
saber disso!
—
Ele não pode estar entrando por uma passagem — retrucou Harry depressa. —
Tem sete túneis secretos no mapa, certo? Fred e Jorge calculam que
Filch conheça uns quatro. E os outros três... Um desabou, de modo que
ninguém pode passar. Outro tem o Salgueiro Lutador plantado na entrada,
portanto, não se pode sair. E este que eu usei para chegar aqui... Bem...
É realmente difícil ver a entrada dele no porão. Então, a não ser que
Black soubesse que havia uma passagem...
Harry
hesitou. E se Black soubesse que havia uma passagem ali? Rony, porém,
pigarreou querendo sinalizar alguma coisa e apontou para um aviso colado
dentro da loja de doces.
POR ORDEM DO
MINISTÉRIO DA MAGIA
Lembramos aos nossos
clientes que até nova ordem, os dementadores irão patrulhar as ruas de
Hogsmeade todas as noites após o pôr-do-sol. A medida visa garantir a
segurança dos habitantes de Hogsmeade e será revogada quando Sirius Black
for recapturado, portanto, é aconselhável que os clientes encerrem
suas compras bem antes de anoitecer.
Feliz Natal.
—
Estão vendo só? — falou Rony em voz baixa. — Eu gostaria de ver
Black tentar entrar na Dedosdemel com dementadores pululando por todo
o povoado. Em todo o caso, Hermione, os donos da Dedosdemel ouviriam
se alguém arrombasse a loja, não? Eles moram no primeiro andar!
—
Tá, mas... Mas... — A garota parecia estar fazendo força para encontrar
outro argumento. — Olha, ainda assim Harry não devia ter vindo a
Hogsmeade. Ele não tem autorização! Se alguém descobrir, ele vai ficar
enrascado até as orelhas! E ainda não anoiteceu... E se Sirius Black
aparecer hoje? Agora?
—
Ia ter muito trabalho para encontrar Harry no meio disso aí — disse Rony
indicando com a cabeça as janelas de caixilhos, pelas quais se via a
nevasca rodopiando lá fora. — Vamos, Mione, é Natal. Harry merece uma
folga.
Hermione
mordeu o lábio, parecendo extremamente preocupada.
—
Você vai me denunciar? — perguntou Harry à amiga, sorrindo.
—
AI... Claro que não... Mas sinceramente, Harry...
—
Viu as delícias gasosas, Harry? — perguntou Rony, puxando Harry e
levando-o até a barrica em que se encontravam. — E as lesmas gelatinosas?
E os picolés ácidos? Fred me deu um desses quando eu tinha sete anos, fez
um furo que atravessou a minha língua. Me lembro da mamãe pegando a
vassoura e baixando o pau nele. — Rony ficou mirando, pensativo, a
caixa de picolés ácidos. — Você acha que Fred comeria um cacho de baratas
se eu dissesse a ele que era amendoim?
Depois
que Rony e Hermione pagaram por todos os doces que compraram, os três
saíram da Dedosdemel para enfrentar a nevasca lá fora.
Hogsmeade
parecia um cartão de Natal; as casas e lojas de telhado de colmo estavam
cobertas por uma camada de neve fresca; havia coroas de azevinho nas
portas e fieiras de luzes encantadas penduradas nas árvores.
Harry
estremeceu; ao contrário dos amigos, ele não estava usando casaco. Os três
saíram caminhando pela rua, a cabeça abaixada contra o vento, Rony e
Hermione gritando por dentro dos cachecóis.
—
Ali é o Correio...
—
A Zonko"s fica mais adiante.
—
Podíamos ir até a Casa dos Gritos...
—
Vamos fazer o seguinte — sugeriu Rony com os dentes batendo —, vamos tomar
uma cerveja amanteigada no Três Vassouras?
Harry
estava mais do que a fim; havia um vento cortante e suas mãos estavam
congelando. Então, eles atravessaram a rua e minutos depois entravam na
minúscula estalagem.
A
sala estava cheíssima, barulhenta, quente e enfumaçada.
Uma
mulher tipo violão, com um rosto bonito, estava servindo um grupo
de bruxos desordeiros no bar.
—
Aquela é a Madame Rosmerta — disse Rony. — Vou pegar as bebidas, está bem?
— acrescentou, corando ligeiramente.
Harry
e Hermione foram até o fundo do salão, onde havia uma mesinha desocupada
entre uma janela e uma bela árvore de Natal próxima à lareira. Rony
voltou em cinco minutos, trazendo três canecas espumantes de
cerveja amanteigada.
—
Feliz Natal! — desejou ele alegremente, erguendo a caneca.
Harry
bebeu com gosto. Era a coisa mais deliciosa que já provara e parecia
aquecer cada pedacinho dele, de dentro para fora.
Uma
brisa repentina despenteou seus cabelos. A porta do Três Vassouras tornou
a se abrir. Harry olhou por cima da borda da caneca e se engasgou.
Os
professores McGonagall e Flitwick tinham acabado de entrar no bar em meio
a uma rajada de flocos de neve, seguidos de perto por Hagrid, que vinha
absorto em uma conversa com um homem corpulento de chapéu-coco verde-limão
e uma capa de risca de giz — Cornélio Fudge, Ministro da Magia.
Numa
fração de segundo, Rony e Hermione, ao mesmo tempo, tinham posto as mãos
na cabeça de Harry e feito o amigo escorregar do banquinho para baixo da
mesa.
Pingando
cerveja amanteigada e se encolhendo para sumir de vista, Harry, agarrado à
caneca, espiou os pés dos professores e de Fudge caminharem até o bar,
pararem e, em seguida, darem meia-volta e se dirigirem para onde ele
estava.
Em
algum lugar acima de sua cabeça, Hermione sussurrou:
—
Mobiliarbus!
A
árvore de Natal ao lado da mesa se ergueu alguns centímetros do chão,
flutuou de lado e desceu com um baque suave bem diante da mesa
dos garotos, escondendo-os dos professores. Espiando por entre os
ramos mais baixos e densos, Harry viu quatro conjuntos de pés de cadeira
se afastarem da mesa bem ao lado, depois ouviu os resmungos e
suspiros dos professores e do ministro ao se sentarem.
Em
seguida, ele viu mais um par de pés, usando saltos altos, turquesa,
cintilantes, e ouviu uma voz de mulher.
—
Uma água de Gilly pequena...
—
É minha — disse a voz da Profª. Minerva.
—
A jarra de quentão...
—
Obrigado — disse Hagrid.
—
Soda com xarope de cereja, gelo e guarda-sol...
—
Hummm! — exclamou o Profº. Flitwick estalando os lábios.
—
Para o senhor é o rum de groselha, ministro.
—
Obrigado, Rosmerta, querida — disse a voz de Fudge. — É um prazer revê-la,
devo dizer. Não quer nos acompanhar? Venha se sentar conosco...
—
Bem, muito obrigada, ministro.
Harry
acompanhou os saltos cintilantes se afastarem e retornarem.
Seu
coração batia incomodamente na garganta. Por que não lhe ocorrera que este
era o último fim de semana do trimestre também para os professores? E
quanto tempo eles ficariam sentados ali? Ele precisava de tempo para
voltar discretamente à Dedosdemel, se quisesse estar na escola ainda
aquela noite... A perna de Hermione deu uma tremida nervosa perto dele.
—
Então, o que é que o traz a esse fim de mundo, ministro? — perguntou a voz de
Madame Rosmerta.
Harry
viu a parte de baixo do corpo de Fudge se virar na cadeira, como se
verificasse se havia alguém escutando. Depois respondeu em voz baixa:
—
Quem mais se não Sirius Black? Imagino que você deve ter sabido o que
houve em Hogwarts no Dia das Bruxas?
—
Para falar a verdade, ouvi um boato — admitiu Madame Rosmerta.
—
Você contou ao bar inteiro, Hagrid? — perguntou a Profª. Minerva,
exasperada.
—
O senhor acha que Black continua por aqui, ministro? — perguntou Madame
Rosmerta.
—
Tenho certeza — respondeu Fudge laconicamente.
—
O senhor sabe que os dementadores já revistaram o meu bar duas vezes? —
falou Madame Rosmerta, com uma ligeira irritação na voz. — Espantaram
todos os meus fregueses... Isto é muito ruim para o comércio, ministro.
—
Rosmerta, querida, gosto tanto deles quanto você — disse
Fudge, constrangido. — É uma precaução necessária... Infelizmente,
mas veja só... Acabei de encontrar alguns. Estão furiosos
com Dumbledore porque ele não os deixa entrar nos terrenos da escola.
—
É claro que não — disse a Profª. Minerva, rispidamente. — Como é que vamos
ensinar com aqueles horrores por todo o lado?
—
Apoiado, apoiado! — exclamou o Profº. Flitwick com voz esganiçada, os pés
balançando a um palmo do chão.
—
Mesmo assim — disse Fudge em tom de dúvida —, eles estão aqui para
proteger vocês todos de coisa muito pior... Nós todos sabemos o que Black
é capaz de fazer..
—
Sabem, eu ainda acho difícil acreditar — disse
Madame Rosmerta pensativamente. — De todas as pessoas que passaram
para o lado das trevas, Sirius Black é o último em que eu pensaria...
Quero dizer, eu me lembro dele quando era garoto em Hogwarts. Se alguém
tivesse me dito, então, no que ele iria se transformar, eu teria
respondido que a pessoa tinha bebido quentão demais.
—
Você não conhece nem metade do que ele fez Rosmerta — disse Fudge com
impaciência. — A maioria nem sabe o pior.
—
Pior? — exclamou Madame Rosmerta, a voz animada de curiosidade. — O senhor
quer dizer pior do que matar todos aqueles coitados?
—
Isso mesmo.
—
Não posso acreditar. Que poderia ser pior?
—
Você diz que se lembra dele em Hogwarts, Rosmerta — murmurou a Profª.
Minerva. — Você se lembra quem era o melhor amigo dele?
—
Claro — disse Madame Rosmerta, com uma risadinha. — Nunca se via um sem o
outro, não é mesmo? O número de vezes que os dois estiveram aqui,
ah, me faziam rir o tempo todo. Uma dupla incrível, Sirius Black e
Tiago Potter!
Harry
deixou cair a caneca com estrépito. Rony deu-lhe um pontapé.
—
Exatamente — disse a Profª. Minerva. — Black e Potter líderes de uma
turminha. Os dois muito inteligentes, é claro, na verdade excepcionalmente
inteligentes, mas acho que nunca tivemos uma dupla de criadores de
confusões igual...
—
Não sei — disse Hagrid, dando uma risadinha. — Fred e Jorge Weasley seriam
páreo duro para os dois.
—
Poder-se-ia até pensar que Black e Potter eram irmãos!
O
Profº. Flitwick entrou na conversa.
—
Inseparáveis!
—
Claro que eram — comentou Fudge. — Potter confiava mais em Black do que em
qualquer outro amigo. Nada mudou quando os dois terminaram a escola. Black
foi o padrinho quando Tiago se casou com Lílian. Depois, eles o escolheram
para padrinho de Harry. O garoto nem tem idéia disso, é claro. Vocês
podem imaginar como isto o atormentaria.
—
Por que Black acabou se aliando a Você-Sabe-Quem? — cochichou Madame
Rosmerta.
—
Foi muito pior do que isso, minha querida... — Fudge baixou a voz e
continuou numa espécie de sussurro grave. — Muita gente desconhece que
os Potter sabiam que Você-Sabe-Quem queria pegá-los. Dumbledore, que
naturalmente trabalhava sem descanso contra Você-Sabe-Quem, tinha um bom
número de espiões úteis. Um deles avisou-o e ele, na mesma hora,
alertou Tiago e Lílian, Dumbledore aconselhou os dois a se esconderem. Bem,
é claro que não era fácil alguém se esconder de Você-Sabe-Quem.
Dumbledore
sugeriu aos dois que teriam maiores chances de escapar se apelassem para o
Feitiço Fidelius.
—
Como é que é isso? — perguntou Madame Rosmerta, ofegando de interesse, O
Profº. Flitwick pigarreou.
—
Um feitiço extremamente complexo — explicou com a sua vozinha fina —, que
implica esconder o segredo, por meio da magia, em uma única pessoa viva. A
informação é guardada no íntimo da pessoa escolhida, ou fiel do segredo, e torna-se impossível encontrá-la, a não
ser, é claro, que o fiel do segredo resolva contar a alguém. Enquanto
ele se mantiver calado, Você-Sabe-Quem poderia revistar o povoado em que Lílian e Tiago
viviam durante anos sem jamais encontrá-los, mesmo que ficasse com o
nariz grudado na janela da sala deles!
—
Então Black era o fiel do segredo dos Potter? — sussurrou Madame Rosmerta.
—
Naturalmente — respondeu a Profª. Minerva. — Tiago Potter contou
a Dumbledore que Black preferiria morrer a contar onde eles estavam,
que Black estava pensando em se esconder também... Mesmo assim,
Dumbledore continuou preocupado. Eu me lembro que ele próprio se ofereceu
para ser o fiel do segredo dos Potter.
—
Ele suspeitava de Black? — exclamou Madame Rosmerta.
—
Ele tinha certeza de que alguém intimo dos Potter tinha mantido
Você-Sabe-Quem informado dos movimentos do casal — respondeu a Profª.
Minerva sombriamente.
—
De fato, ele vinha suspeitando havia algum tempo de que alguém do nosso
lado virara traidor e estava passando muita informação para
Você-Sabe-Quem.
—
Mas Tiago Potter insistiu em
usar Black ?
—
Insistiu — disse Fudge com a voz carregada. — E então, pouco mais de uma
semana depois de terem realizado o Feitiço
Fidelius...
—
Black traiu os Potter? — murmurou Madame Rosmerta.
—
Traiu. Black estava cansado do papel de agente duplo, estava pronto a
declarar abertamente o seu apoio a Você-Sabe-Quem, e parece que planejou
fazer isso assim que os Potter morressem. Mas, como todos sabem,
Você-Sabe-Quem encontrou sua perdição no pequeno Harry Potter. Despojado de poderes, extremamente enfraquecido, ele fugiu. E isto deixou Black numa posição realmente muito difícil. Seu mestre caíra no exato momento em que ele, Black, mostrara quem de fato era, um traidor. Não teve outra escolha senão fugir...
Você-Sabe-Quem encontrou sua perdição no pequeno Harry Potter. Despojado de poderes, extremamente enfraquecido, ele fugiu. E isto deixou Black numa posição realmente muito difícil. Seu mestre caíra no exato momento em que ele, Black, mostrara quem de fato era, um traidor. Não teve outra escolha senão fugir...
—
Vira-casaca imundo e podre! — exclamou Hagrid tão alto que metade do bar
se calou.
—
Psiu! — fez a Profª. Minerva.
—
Eu o encontrei! — rosnou Hagrid, — Devo ter sido a última pessoa que viu
Black antes de ele matar toda aquela gente! Fui eu que salvei Harry
da casa de Lílian e Tiago depois que o casal morreu! Tirei o garoto
das ruínas, coitadinho, com um grande corte na testa, e os pais mortos...
E Sirius Black aparece naquela moto voadora que ele costumava usar. Nunca
me ocorreu o que ele estava fazendo ali. Eu não sabia que ele era o fiel
do segredo de Lílian e Tiago. Pensei que tivesse acabado de saber da
notícia do ataque de Você-Sabe-Quem e vindo ver o que era possível fazer.
Estava tremendo, branco. E vocês sabem o que eu fiz? EU CONSOLEI O TRAIDOR ASSASSINO! — bradou Hagrid.
—
Hagrid, por favor! — pediu a Profª. Minerva. — Fale baixo!
—
Como é que eu ia saber que ele não estava abalado com a morte de Lílian e
Tiago? Que estava preocupado era com Você-Sabe-Quem!
Então
ele disse:
—
"Me dá o Harry, Hagrid. Sou o
padrinho dele, vou cuidar dele”... Ah! Mas eu tinha recebido ordens
de Dumbledore, e disse não, Dumbledore tinha me mandado levar
Harry para a casa dos tios. Black discordou, mas no fim cedeu. Me disse,
então, que eu podia pegar a moto dele para levar Harry. "Não vou precisar mais dela",
falou. Eu devia ter percebido, naquela hora, que alguma coisa não estava
cheirando bem. Black adorava a moto. Por que estava dando ela para mim?
Por que não ia precisar mais da moto? A questão é que a moto era muito
fácil de localizar. Dumbledore sabia que ele tinha sido o fiel do segredo
dos Potter. Black sabia que ia ter que se mandar àquela noite, sabia
que era uma questão de horas até o Ministério sair à procura dele. Mas e
se eu tivesse entregado Harry a Black, hein?
Aposto como ele teria jogado o garoto no mar no meio do caminho. O
filho dos melhores amigos dele! Mas quando um bruxo se alia ao lado
das trevas, não tem mais nada nem ninguém que tenha importância para
ele...
À
história de Hagrid seguiu-se um longo silêncio. Então, Madame Rosmerta
falou com uma certa satisfação.
—
Mas ele não conseguiu desaparecer, não foi? O Ministério da Magia o
agarrou no dia seguinte!
—
Ah, se ao menos isso fosse verdade — lamentou Fudge com amargura. — Não
fomos nós que o encontramos. Foi o pequeno Pedro Pettigrew, outro
amigo dos Potter. Com certeza, enlouquecido de pesar e sabendo que Black
fora o fiel do segredo dos Potter, Pedro foi pessoalmente atrás dele.
—
Pettigrew... Aquele gordinho que sempre andava atrás dos dois em Hogwarts?
— perguntou Madame Rosmerta.
—
Ele venerava Black e Potter como se fossem heróis — disse a Profª. Minerva. —
Não estava bem à altura deles em termos de talento. Muitas vezes
fui severa demais com ele. Podem imaginar agora como me... Como me
arrependo disso... — Sua voz parecia a de alguém que apanhara de repente
um resfriado.
—
Vamos, Minerva — consolou-a Fudge, com bondade. — Pettigrew teve uma morte
de herói. Testemunhas oculares, trouxas, é claro, depois limpamos a
memória deles, nos contaram como Pettigrew encurralou Black. Dizem que
ele soluçava: "Lílian e Tiago,
Sirius! Como é que você pôde?" Então fez menção de apanhar a
varinha. Bem, naturalmente, Black foi
mais rápido. Fez Pettigrew em pedacinhos...
A
Profª. Minerva assoou o nariz e disse com a voz embargada:
—
Menino burro... Menino tolo... Nunca teve jeito para duelar... Deveria ter
deixado isso para o ministério...
—
E vou dizer uma coisa, se eu tivesse chegado ao Black antes de
Pettigrew, não teria apelado para varinhas, eu teria despedaçado ele aos
bocadinhos — rosnou Hagrid.
—
Você não sabe o que está dizendo, Hagrid — disse Fudge com severidade. —
Ninguém, a não ser bruxos de elite do Esquadrão de Execução das Leis
da Magia, teria tido uma chance contra Black depois que ele foi
encurralado. Na época, eu era ministro júnior no Departamento de Catástrofes
Mágicas, e fui um dos primeiros a chegar à cena depois que Black
liquidou aquelas pessoas, nunca vou me esquecer. Ainda sonho com o que vi,
às vezes. Uma cratera no meio da rua, tão funda que rachou a tubulação
de esgoto embaixo. Cadáveres por toda a parte. Trouxas berrando. E Black
parado ali, dando gargalhadas, diante do que restava de Pettigrew... Um
monte de vestes ensangüentadas e uns poucos, uns poucos fragmentos...
A
voz de Fudge parou abruptamente. Ouviu-se o barulho de cinco narizes sendo
assoados.
—
Bem, aí tem você, Rosmerta — disse Fudge com a voz carregada. — Black foi
levado por vinte policiais do Esquadrão de Execução das Leis da Magia
e Pettigrew recebeu a Ordem de Merlim, Primeira Classe, o que acho que
foi algum consolo para a coitada da mãe dele. Black tem estado preso
em Azkaban desde então.
Madame
Rosmerta deu um longo suspiro.
—
É verdade que ele é doido, ministro?
—
Eu gostaria de poder dizer que é — disse Fudge lentamente. — Acredito que
é certo que a derrota do mestre o desequilibrou por algum tempo. O
assassinato de Pettigrew e de todos aqueles trouxas foi trabalho de um
homem desesperado e acuado, cruel... Sem sentido. Mas eu encontrei
Black na última inspeção que fiz à Azkaban. Vocês sabem que a maioria dos
prisioneiros lá ficam sentados no escuro resmungando; não dizem coisa com
coisa... Mas fiquei chocado com a aparência normal de Black.
Conversou comigo muito racionalmente. Me deixou nervoso. Deu a impressão
de estar meramente entediado, perguntou se eu já tinha acabado de ler o
meu jornal, com toda a tranqüilidade, disse que sentia falta das palavras
cruzadas. Fiquei realmente espantado de
ver o pouco efeito que os dementadores estavam causando nele, e,
vejam, ele era um dos prisioneiros mais fortemente guardados do lugar. Dementadores à porta da cela dia e noite.
—
Mas para que o senhor acha que ele fugiu? — perguntou Madame Rosmerta. —
Por Deus, ministro, ele não está tentando se juntar a Você-Sabe-Quem,
está?
—
Eu diria que esse é o plano dele, hum, a longo prazo — disse Fudge
evasivamente. — Mas temos esperança de pegar Black bem antes disso. Devo
dizer que Você-Sabe-Quem sozinho e sem amigos é uma coisa... Mas se tiver
de volta o seu serviçal mais dedicado, estremeço só em pensar na rapidez
com que se reergueria...
Ouviu-se
um leve tilintar de copo em
madeira. Alguém pousara o copo.
—
Sabe, Cornélio, se você vai jantar com o diretor, é melhor voltarmos para
o castelo — sugeriu a Profª. Minerva.
Um
por um, os pares de pés à frente de Harry retomaram o peso dos seus donos;
barras de capas rodopiaram no ar e os saltos cintilantes de Madame
Rosmerta desapareceram atrás do balcão do bar. A porta do Três Vassouras
tornou a se abrir, deixando entrar mais uma rajada de flocos de neve
e os professores desapareceram.
—
Harry?
Os
rostos de Rony e Hermione surgiram embaixo da mesa. Os dois o encararam,
sem encontrar palavras para falar.
CAPÍTULO
ONZE
A
Firebolt
Harry
não tinha uma idéia muito clara de como conseguira voltar ao porão da
Dedosdemel, atravessar o túnel e sair mais uma vez no castelo. Só sabia
que a viagem de volta parecia não ter demorado nada, e que ele mal se
apercebera do que estava fazendo, porque sua cabeça continuava a latejar
com a conversa que acabara de ouvir.
Por
que ninguém lhe contara? Dumbledore, Hagrid, o Sr. Weasley, Cornélio
Fudge... Por que ninguém jamais mencionara o fato de que seus pais tinham
morrido porque o melhor amigo deles os traíra?
Rony
e Hermione observavam Harry, muito nervosos, durante o jantar, sem sequer
se atrever a conversar com ele sobre o que tinham ouvido, porque Percy
estava sentado perto deles. Quando subiram para a concorrida sala comunal,
foi para descobrir que Fred e Jorge tinham soltado meia dúzia de
bombas de bosta num arroubo de animação de fim de trimestre. Harry, que
não queria que os gêmeos lhe perguntassem se tinha chegado ou não a
Hogsmeade, subiu sorrateira e silenciosamente para o dormitório vazio
e foi direto ao seu armário de cabeceira. Empurrou os livros para um lado
e não demorou nada a encontrar o que estava procurando — o álbum
de fotografias encadernado em couro que Hagrid lhe dera havia dois
anos, repleto de fotos mágicas de seus pais. O garoto se sentou na
cama, fechou o cortinado e começou a virar as páginas, procurando,
até que...
Parou
numa foto do dia do casamento dos pais. Lá estava seu pai acenando para
ele, sorridente, os rebeldes cabelos negros que Harry herdara apontando
para todas as direções. Lá estava sua mãe, radiante de felicidade, de
braço dado com o seu pai. E lá... Aquele devia ser ele. O padrinho...
Harry jamais lhe dera atenção antes.
Se
não tivesse sabido que era a mesma pessoa, jamais teria pensado que era
Black naquela velha foto. Seu rosto não era encovado e macilento, mas
bonito e risonho. Já estaria trabalhando para Voldemort quando a foto fora
tirada?
Já
estaria planejando as mortes das duas pessoas ao seu lado? Saberia que ia
enfrentar doze anos em Azkaban, doze anos que o tornariam irreconhecível?
Mas
os dementadores não o afetam, pensou Harry examinando atentamente aquele
rosto bonito e risonho. Ele não tem que ouvir minha mãe gritando quando
eles chegam muito perto...
Harry
fechou com violência o álbum e, abaixando-se, guardou-o de novo no
armário, tirou as vestes e os óculos e foi dormir, cuidando para que o
cortinado o escondesse de todos.
A
porta do dormitório se abriu.
—
Harry? — chamou a voz de Rony, hesitante.
Mas
Harry continuou quieto, fingindo que estava dormindo. Ouviu o amigo se
retirar e virou de barriga para cima, os olhos muito abertos.
Um
ódio que ele jamais conhecera começou a crescer dentro dele como veneno.
Viu Black rindo-se dele no escuro, como se alguém tivesse colado a foto do
álbum em seus olhos. Assistiu, como se estivesse vendo um filme, a Sirius
Black explodir Pedro Pettigrew, (que lembrava Neville Longbottom), em
mil pedaços. Ouviu (embora não tivesse a menor idéia do som que teria
a voz de Black) um murmúrio baixo e excitado. "Aconteceu, meu Senhor... os Potter me escolheram para fiel do seu
segredo”. E então ouviu outra voz, rindo-se histericamente, a mesma
risada que Harry ouvia mentalmente sempre que os dementadores se
aproximavam...
—
Harry, você... Você está com uma cara horrível. O garoto só adormecera
quando o dia ia raiando. Ao acordar, encontrou o dormitório vazio,
deserto, se vestiu e desceu para a sala comunal, também vazia exceto
pela presença de Rony, que comia sapos de creme de menta e massageava a
barriga, e Hermione que espalhara os deveres de casa em cima de três
mesas.
—
Onde foi todo mundo? — perguntou Harry.
—
Embora! Hoje é o primeiro dia das férias, está lembrado? — respondeu Rony,
observando o amigo atentamente. — É quase hora do almoço; eu ia subir para
acordá-lo daqui a pouquinho.
Harry
afundou em uma poltrona junto à lareira. A neve continuava a cair lá
fora. Bichento estava esparramado diante da lareira como um grande tapete
amarelo-avermelhado.
—
Realmente você não está com uma cara muito boa, sabe — disse Hermione,
examinando ansiosa o rosto do garoto.
—
Estou ótimo — retrucou ele.
—
Harry, escuta aqui — disse Hermione trocando um olhar com Rony —, você
deve estar realmente perturbado com o que ouviu ontem. Mas o importante é
não fazer nenhuma bobagem.
—
Como o quê?
—
Como tentar ir atrás de Black — disse Rony depressa.
Harry
percebeu que os dois tinham ensaiado aquela conversa enquanto ele estivera
dormindo. Não respondeu nada.
—
Você não vai, não é mesmo, Harry? — insistiu Hermione.
—
Porque não vale a pena morrer por causa do Black — disse Rony.
Harry
olhou para os amigos. Eles pareciam não ter entendido o problema.
—
Vocês sabem o que eu vejo e ouço cada vez que um dementador se aproxima de
mim? — Rony e Hermione sacudiram a cabeça, apreensivos. — Ouço
minha mãe gritar e suplicar a Voldemort. E se alguém ouve a mãe gritar
daquele jeito, pouco antes de morrer, não dá para esquecer depressa. E
se descobre que alguém que ela acreditava ser amigo foi o traidor que
pôs Voldemort na pista dela...
—
Mas não tem nada que você possa fazer! — disse Hermione impressionada. —
Os dementadores vão capturar Black e ele vai voltar a Azkaban e... E
é muito bem feito para ele!
—
Você ouviu o que Fudge disse. Black não é afetado por Azkaban como as
pessoas normais. Não é um castigo para ele como é para os outros.
—
Então o que é que você está dizendo? — perguntou Rony muito tenso. — Você
quer... Matar Black ou coisa parecida?
—
Não seja bobo — disse Hermione, cuja voz transparecia pânico. — Harry não
quer matar ninguém, não é mesmo?
Mais
uma vez Harry não respondeu. Ele não sabia o que queria fazer. Só sabia
que a idéia de não fazer nada, enquanto Black continuava em liberdade, era
quase insuportável.
—
Malfoy sabe — disse ele de repente. — Vocês lembram do que ele me disse na
aula de Poções? "Se fosse eu, ia
atrás dele sozinho... Ia querer vingança.”
—
Você vai seguir o conselho de Malfoy em vez do nosso? — perguntou Rony,
enfurecido. — Escuta aqui... Você sabe o que a mãe do Pettigrew recebeu
depois que Black acabou com o filho dela? Papai me contou... A Ordem de
Merlim, Primeira Classe, e o dedo de Pettigrew em uma caixa. Foi o maior
pedaço dele que conseguiram encontrar. Black é um louco, Harry, e é
perigoso...
—
O pai de Malfoy deve ter contado a ele — disse Harry, não dando atenção a
Rony. — Fazia parte do círculo íntimo de Voldemort...
—
Faz favor de dizer Você-Sabe-Quem? — exclamou Rony com raiva.
—
... Então obviamente, os Malfoy sabiam que Black estava trabalhando para
Voldemort...
—
... e Malfoy adoraria ver você desintegrado em um milhão de pedaços, como
Pettigrew! Caia na real, Harry. A esperança de Malfoy é que você seja
morto antes de ele precisar jogar Quadribol contra você.
—
Harry, por favor — pediu Hermione, os olhos agora brilhantes de lágrimas
—, por favor, tenha juízo. Black fez uma coisa horrível demais, mas não
corra riscos, é isso que Black quer... Ah, Harry, você vai fazer o
jogo do Black se for atrás dele. Seus pais não iam querer que você se
machucasse, iam? Jamais iam querer que você saísse procurando o Black!
—
Eu nunca vou saber o que eles iam querer, porque, graças ao Black, nunca conversei
com eles — disse Harry com rispidez.
Houve
um silêncio em que
Bichento se espreguiçou com desenvoltura, flexionando as
garras. O bolso de Rony estremeceu.
—
Escuta — disse o garoto, obviamente procurando mudar de assunto —, estamos
de férias! Já é quase Natal! Vamos... Vamos descer para ver o Hagrid. Não
o visitamos há uma eternidade!
—
Não! — disse Hermione depressa. — Harry não pode sair do castelo, Rony...
—
É, vamos — disse Harry se endireitando na poltrona —, assim posso
perguntar a ele por que nunca mencionou o Black quando me contou a
história dos meus pais!
Continuar
a discussão sobre Sirius Black não era obviamente o que Rony tinha em
mente.
—
Ou poderíamos jogar uma partida de xadrez — disse ele depressa — ou de
bexigas. Percy deixou um jogo...
—
Não, vamos visitar Hagrid — disse Harry com firmeza.
Então
os três apanharam as capas nos dormitórios e saíram pelo buraco do retrato
(Levantem-se para lutar, seus vira-latas
covardes!), desceram pelo castelo vazio e cruzaram as portas de
carvalho.
Os
garotos caminharam sem pressa pelos jardins, deixando uma vala rasa na
neve faiscante e solta, as meias e as bainhas das capas foram se molhando
e congelando.
A
Floresta Proibida parecia que fora encantada, cada árvore se cobrira
de salpicos prateados e a cabana de Hagrid lembrava um bolo com glacê.
Rony
bateu, mas não teve resposta.
—
Será que ele saiu? — perguntou Hermione, que tremia embaixo da capa.
Rony
encostou o ouvido na porta.
—
Tem um barulho esquisito — disse. — Escuta só, será o Canino?
Harry
e Hermione encostaram os ouvidos na porta também. De dentro da cabana
vinham uns gemidos baixos e soluçantes.
—
Será que não é melhor a gente ir chamar alguém? — perguntou Rony, nervoso.
—
Hagrid! — chamou Harry, dando socos na porta. — Hagrid, você está aí?
Ouviu-se
um som de passos pesados, depois a porta se abriu com um rangido. Hagrid
estava ali parado, com os olhos vermelhos e inchados, as lágrimas
caindo pelo seu colete de couro.
—
Vocês souberam? — berrou ele, e se atirou no pescoço de Harry.
Tendo
Hagrid no mínimo duas vezes o tamanho de um homem normal, isso não foi
brincadeira. O garoto, quase desabando sob o peso do gigante, foi salvo
por Rony e Hermione, que seguraram um em cada braço de Hagrid, e o
puxaram para dentro da cabana. O guarda-caça deixou-se conduzir
até uma cadeira e se largou em cima da mesa, soluçando descontrolado,
o rosto brilhante de lágrimas que escorriam por sua barba embaraçada.
—
Hagrid, o que foi? — perguntou Hermione perplexa.
Harry
reparou em uma carta de aparência oficial aberta em cima da mesa.
—
Que é isso, Hagrid?
Os
soluços de Hagrid redobraram, mas ele empurrou a carta para o garoto, que
a apanhou e leu em voz alta:
Prezado Sr. Hagrid.
Dando prosseguimento ao
nosso inquérito sobre o ataque do hipogrifo a um aluno seu, aceitamos as
ponderações do Profº. Dumbledore de que o senhor não é
responsável pelo lamentável incidente.
—
Bem, então está tudo certo, Hagrid! — exclamou Rony, dando uma palmadinha
no ombro do amigo.
Mas
Hagrid continuou a soluçar, e fez sinal com uma de suas gigantescas
mãos, convidando Harry a continuar a leitura da carta.
No entanto, devemos
registrar a nossa preocupação quanto ao hipogrifo em pauta. Decidimos
acolher a reclamação oficial do Sr. Lúcio Malfoy, e o caso
será encaminhado à Comissão para Eliminação de Criaturas Perigosas.
A audiência terá lugar em 20 de abril, e solicitamos que o senhor
se apresente com o seu hipogrifo nos escritórios da Comissão, em
Londres, nessa data.
Entrementes, o animal
deverá ser mantido preso e isolado.
Atenciosamente...
Seguia-se
uma lista com os nomes dos conselheiros da escola.
—
Ah! — exclamou Rony. — Mas você disse que o Bicuço não é um hipogrifo
bravo, Hagrid. Aposto como ele vai se
safar...
—
Você não conhece as gárgulas da Comissão para Eliminação de Criaturas
Perigosas! — respondeu Hagrid com a voz engasgada, enxugando os olhos na
manga. — Eles têm má vontade com as criaturas interessantes!
Um
som repentino vindo de um canto da cabana fez Harry, Rony e Hermione se
virarem depressa. Bicuço, o hipogrifo, estava deitado a um canto,
mastigando alguma coisa que fazia escorrer sangue por todo o soalho.
—
Eu não podia deixar ele amarrado lá fora na neve! — explicou Hagrid,
sufocado. — Sozinho! No Natal.
Harry,
Rony e Hermione se entreolharam. Nunca tinham concordado com Hagrid sobre
o que o guarda-caça chamava de "criaturas
interessantes” e outras pessoas chamavam de "monstros aterrorizantes". Por outro lado, não parecia
haver nenhuma maldade especifica em Bicuço. De fato, pelos
padrões normais de Hagrid, o bicho era sem dúvida engraçadinho.
—
Você terá que preparar uma boa defesa, Hagrid — falou Hermione,
sentando-se e pondo a mão no braço maciço do amigo. — Tenho certeza de que você
pode provar que Bicuço é seguro.
—
Não vai fazer nenhuma diferença! — soluçou Hagrid. — Aqueles demônios da
Eliminação, eles são controlados por Lúcio Malfoy! Têm medo dele! E se eu
perder o caso, Bicuço...
Hagrid
passou o dedo rapidamente pela garganta, depois deixou escapar um lamento,
e caiu para frente, deitando a cabeça nos braços.
—
E Dumbledore, Hagrid? — perguntou Harry.
—
Ele já fez mais do que o suficiente por mim — gemeu Hagrid. — Já tem muito
com que se ocupar só para segurar os dementadores fora do castelo e o
Sirius Black rondando...
Rony
e Hermione olharam depressa para Harry como se esperassem que o garoto
fosse começar a criticar Hagrid por não ter contado a verdade sobre Black.
Mas Harry não teve coragem de perguntar nada, não naquele momento em
que estava vendo o amigo tão infeliz e amedrontado.
—
Escuta aqui, Hagrid — disse Harry —, você não pode desistir. Hermione tem
razão, você só precisa é de uma boa defesa. Pode nos chamar como
testemunhas...
—
Tenho certeza de que já li um caso de alguém que provocou um hipogrifo —
disse Hermione, pensativa — e o bicho foi inocentado. Vou procurar
para você Hagrid, e verificar exatamente o que aconteceu.
Hagrid
chorou ainda mais alto. Harry e Hermione olharam para Rony, pedindo ajuda.
—
Hum... E se eu fizesse uma xícara de chá para nós? — ofereceu-se o garoto.
Harry
olhou para ele, espantado.
—
É o que a minha mãe faz sempre que alguém está chateado — murmurou Rony,
encolhendo os ombros.
Finalmente,
depois de muitas reafirmações de ajuda, e uma caneca de chá fumegante
diante dele, Hagrid assoou o nariz com um lenço do tamanho de uma toalha
de mesa e disse:
—
Vocês têm razão. Não posso me entregar assim. Tenho que me controlar...
Canino,
o cão de caçar javalis, saiu timidamente debaixo da mesa e descansou a
cabeça no joelho do dono.
—
Não tenho andado muito bem ultimamente — disse Hagrid, acariciando Canino
com uma das mãos e enxugando o rosto com a outra. — Preocupado com o
Bicuço e com a turma que não está gostando das minhas aulas...
—
Nós gostamos! — mentiu Hermione na mesma hora.
—
É, elas são ótimas! — acrescentou Rony, cruzando os dedos embaixo da mesa.
— É... Como é que vão os vermes?
—
Mortos — disse Hagrid sombriamente. — Alface demais.
—
Ah, não! — exclamou Rony, com um trejeito de riso na boca.
—
E esses dementadores fazendo eu me sentir péssimo e tudo o mais — disse Hagrid
com um súbito estremecimento. — Tenho que passar por eles todas
as vezes que quero beber alguma coisa no Três Vassouras. É como se
eu estivesse de volta a Azkaban...
Ele
se calou e tomou um pouco de chá. Harry, Rony e Hermione o observaram
prendendo a respiração. Nunca tinham ouvido Hagrid falar de sua breve
estada em Azkaban. Depois de uma pausa, Hermione perguntou timidamente:
—
Lá é muito ruim, Hagrid?
—
Vocês não fazem idéia — disse ele com a voz contida. — Nunca estive em
nenhum lugar assim. Pensei que ia endoidar. Ficava lembrando de
coisas horríveis... O dia em que fui expulso de Hogwarts... O dia em que
meu pai morreu... O dia em que tive de mandar Norberto embora...
Seus
olhos se encheram de lágrimas. Norberto era o bebê dragão que Hagrid ganhara
certa vez em um jogo de cartas.
—
A pessoa não consegue mais se lembrar de quem é depois de algum tempo. E
começa a achar que não vale a pena viver. Eu tinha esperança de morrer
durante o sono... Quando me soltaram, foi como se eu estivesse renascendo,
tudo voltou como uma avalanche, foi a melhor sensação do mundo. E vejam
bem, os dementadores não gostaram nada de me deixar sair.
—
Mas você era inocente! — exclamou Hermione.
Hagrid
riu pelo nariz.
—
Você acha que eles se importam com isso? Que nada. Desde que tenham umas
centenas de seres humanos trancafiados com eles, para poder sugar
toda a felicidade deles, não estão nem aí se alguém é ou não é
culpado.
Hagrid
ficou calado por um instante, olhando para o chá.
Depois
disse em voz baixa:
—
Pensei em deixar Bicuço
ir embora... Tentar fazê-lo fugir.. Mas como é que a gente explica para um
hipogrifo que ele tem que se esconder? E... E tenho medo de
desrespeitar a lei... — Ele ergueu os olhos para os garotos, as lágrimas
outra vez escorrendo pelo rosto. — Não quero nunca mais na vida voltar
para Azkaban.
A
ida à cabana de Hagrid, embora não tivesse sido divertida, em todo o caso,
produzira o efeito que Rony e Hermione esperavam. Ainda que Harry não
tivesse de modo algum esquecido Black, não iria poder ficar pensando o
tempo todo em vingança se quisesse ajudar Hagrid a vencer a causa contra a
Comissão para Eliminação de Criaturas Perigosas. Ele, Rony e Hermione
foram, no dia seguinte, à biblioteca, e voltaram ao vazio
salão comunal, carregados de livros que poderiam ajudar a preparar a
defesa para o Bicuço. Os três se sentaram diante do fogo forte que havia
na lareira e folhearam lentamente as páginas de livros empoeirados
sobre casos famosos de feras que saíram para roubar ou atacar gente,
falando-se, ocasionalmente, quando deparavam com alguma coisa que
servisse.
—
Aqui tem uma coisa... Houve um caso em 1722... Mas o hipogrifo foi
condenado, eca, olhem só o que fizeram com ele, que coisa horrível...
—
Esse aqui pode ajudar, olhem... Um Manticora
atacou alguém ferozmente em 1296, e deixaram o bicho livre... Ah...
Não, foi só porque todos estavam com medo de se aproximar dele...
Nesse
meio tempo, tinham sido armadas no resto do castelo as magníficas
decorações de Natal, apesar de poucos alunos terem permanecido na escola
para apreciá-las.
Grossas
serpentinas de folhas e frutos de azevinho foram penduradas
pelos corredores, luzes misteriosas brilhavam dentro de cada armadura, e
o Salão Principal tinha as doze árvores de Natal de sempre,
fulgurantes de estrelas douradas. Um cheiro forte e gostoso de comida
invadia os corredores e, na altura da noite de Natal, estava tão
forte que até Perebas, no bolso de Rony, botou o nariz de fora
para cheirar, esperançoso, o ar.
Na
manhã de Natal, Harry foi acordado com Rony atirando um travesseiro nele.
—
Os Presentes!
Harry
apanhou os óculos e colocou-os no rosto, tentando enxergar, na penumbra,
os pés da cama, onde aparecera um montinho de pacotes. Rony já estava
rasgando o papel que embrulhava os dele.
—
Mais uma suéter de mamãe... Outra vez marrom-avermelhada... Veja se você também
ganhou uma.
Harry
ganhara. A Sra. Weasley lhe mandara uma suéter vermelha com o leão da
Grifinória no peito, uma dúzia de tortas de frutas secas e nozes, um bolo
de Natal e uma caixa com crocantes de nozes. Quando empurrou tudo isso
para um lado, ele viu um pacote fino e longo por baixo.
—
Que é isso? — perguntou Rony, espiando, enquanto segurava nas mãos um par
de meias marrom-avermelhadas que acabara de abrir.
—
Não sei...
Harry
rasgou o pacote e prendeu a respiração ao ver a magnífica e reluzente
vassoura que rolara sobre sua cama. Rony largou as meias e pulou da cama
dele para olhar mais de perto.
—
Eu não acredito — disse com a voz rouca.
Era
uma Firebolt, idêntica à vassoura de
sonho que Harry tinha ido ver todas as manhãs no Beco Diagonal. O cabo
brilhou quando ele a ergueu. Sentiu a vassoura vibrar e a soltou;
ela ficou flutuando no ar, sem apoio, na altura exata para ele montá-la.
Os
olhos de Harry correram da placa de ouro com o número do registro para a
superfície do cabo, dali para as lascas de bétula perfeitamente lisas e
aerodinâmicas que formavam a cauda.
—
Quem lhe mandou essa vassoura? — perguntou Rony em voz baixa.
—
Procure aí o cartão — disse Harry.
Rony
rasgou o resto do papel de embrulho da Firebolt.
—
Nada! Caramba, quem gastaria tanto dinheiro com você?
—
Bem — disse Harry atordoado —, aposto que não foram os Dursley.
—
Aposto que foi Dumbledore — disse Rony, agora rodeando a Firebolt,
apreciando cada centímetro de sua glória. — Ele lhe mandou a Capa da
Invisibilidade anonimamente...
—
Mas era do meu pai — respondeu Harry. — Dumbledore só estava passando a
capa para mim. Ele não gastaria centenas de galeões comigo. Não pode sair
dando coisas assim para alunos...
—
Por isso mesmo é que não ia dizer que foi ele! — concluiu Rony. —
Para um debilóide feito o Malfoy não dizer que é favoritismo. — Ei, Harry... —
Rony deu uma grande gargalhada. — Malfoy! Espera até ele ver você montado
nisso! Vai ficar doente de inveja! É uma
vassoura de padrão internacional, ah, isso é!
—
Não consigo acreditar — murmurou Harry, alisando a Firebolt, enquanto Rony
afundava na cama dele, rindo de se acabar só de pensar no Malfoy. —
Quem...?
—
Eu sei — disse Rony se controlando. — Eu sei quem poderia ter sido... O
Lupin.
—
Quê? — disse Harry, agora começando a rir também. — Lupin? Olha, se ele
tivesse tanto ouro assim, poderia comprar umas vestes novas.
—
É, mas ele gosta de você. E estava ausente quando a sua Nimbus se
arrebentou, e talvez tenha ouvido falar do acidente e resolvido visitar o
Beco Diagonal e comprar a vassoura para você...
—
Que é que você quer dizer com estava ausente? — perguntou Harry. — Ele
estava doente quando eu joguei aquela partida.
—
Bem, ele não estava na ala hospitalar — disse Rony. — Eu estava lá
limpando comadres, cumprindo aquela detenção que o Snape me deu, se
lembra?
Harry
franziu a testa para Rony.
—
Não posso imaginar Lupin comprando um presente desses.
—
Do que é que vocês estão rindo?
Hermione
acabara de entrar, vestindo um robe e segurando Bichento, que estava com a
cara de extremo mau humor e um fio de lantejoulas em volta do pescoço.
—
Não entra aqui com ele! — disse Rony, apanhando Perebas depressa das
profundezas de sua cama e guardando-o no bolso do pijama. Mas Hermione não ouviu.
Largou Bichento na cama vazia de Símas e grudou os olhos, boquiaberta, na
Firebolt.
—
Ah, Harry! Quem lhe mandou isso?
—
Não tenho a menor idéia. Não tinha cartão nem nada.
Para
sua surpresa, Hermione não pareceu nem excitada nem intrigada com a informação.
Pelo contrário, ficou desapontada e mordeu o lábio.
—
Que é que você tem? — perguntou Rony.
—
Não sei — respondeu Hermione lentamente —, mas é meio esquisito, não é?
Quero dizer, essa é uma vassoura muito boa, não é?
Rony
suspirou, exasperado.
—
É a melhor vassoura que existe no mundo, Hermione.
—
Então deve ter sido realmente cara...
—
Provavelmente custou mais do que todas as vassouras da Sonserina, juntas —
disse Rony alegremente.
—
Bem... Quem iria mandar a Harry uma coisa tão cara e nem ao menos dizer
que mandou? — perguntou Hermione.
—
Quem quer saber disso? — retrucou Rony, impaciente. — Escuta aqui, Harry,
posso dar uma voltinha? Posso?
—
Acho que ninguém devia montar essa vassoura por enquanto! — disse Hermione
com a voz esganiçada.
Harry
e Rony encararam a garota.
—
Que é que você acha que Harry vai fazer com ela... Varrer o chão?
Mas
antes que Hermione pudesse responder, Bichento saltou da cama de Simas
direto para o peito de Rony.
—
TIRE-O-DAQUI! — berrou Rony, ao mesmo tempo em que as garras de Bichento
rasgaram seu pijama e Perebas tentou uma fuga desesperada por cima do
seu ombro. Rony agarrou Perebas pelo rabo e mirou em Bichento um pontapé
mal calculado que acabou acertando o malão aos pés da cama de
Harry, derrubou-o, e fez Rony pular pelo quarto uivando de dor.
O
pêlo de Bichento de repente ficou em
pé. Um assobio alto e fino começou a invadir o quarto. O
bisbilhoscópio de bolso saltara de dentro das meias velhas do tio
Válter e saíra rodopiando e cintilando pelo chão.
—
Eu tinha me esquecido dele! — exclamou Harry, que se abaixou e recolheu o
bisbilhoscópio. — Nunca uso estas meias se posso evitar...
O
pequeno pião girava e assobiava na palma da mão do garoto. Bichento
sibilava e bufava para ele.
—
É melhor você levar esse gato daqui, Hermione — disse Rony furioso,
sentando-se na cama de Harry e massageando o dedão do pé. — Será que dá
para você guardar essa coisa? — acrescentou ele para Harry quando Hermione
ia se retirando do quarto. Os olhos amarelos de Bichento continuavam fixos nele,
cheios de malícia.
Harry
tornou a enfiar o bisbilhoscópio nas meias e atirou-o de volta ao malão.
Tudo que se ouvia agora eram os gemidos de dor e raiva que Rony abafava.
Perebas estava aninhado nas mãos do dono. Já fazia tempo que Harry o vira
fora do bolso do amigo e teve a desagradável surpresa de observar que
Perebas, antigamente tão gordo, estava agora magérrimo; e também tinha
perdido pêlos em alguns pontos do corpo.
—
Ele não está com uma aparência muito boa, não é? — comentou Harry.
—
É estresse! — respondeu Rony. — Ele até estaria bem se aquela bola idiota
de pêlos o deixasse em paz.
Mas
Harry, se lembrando que a mulher na loja de Animais Mágicos dissera que os
ratos só viviam três anos, não pôde deixar de sentir que, a não ser que
Perebas tivesse poderes jamais revelados, ele estava chegando ao fim da
vida. E, apesar das queixas freqüentes do amigo de que o rato estava
chato e inútil, ele tinha certeza de que Rony ficaria muito infeliz
se o bicho morresse.
O
espírito de Natal estava decididamente em baixa no salão comunal da
Grifinória àquela manhã. Hermione prendera Bichento no dormitório das
meninas, mas estava furiosa com Rony por ter tentado chutá-lo; Rony
continuava fumegando de raiva com a nova tentativa que o gato fizera de
comer seu rato. Harry desistiu de tentar fazer os dois se falarem e
se ocupou em examinar a Firebolt, que trouxera com ele para a sala. Por
alguma razão isto pareceu aborrecer Hermione também;
Ela
não fez comentário algum, mas não parava de lançar olhares carrancudos à
vassoura, como se esta também tivesse criticado Bichento.
À
hora do almoço eles desceram para o Salão Principal e descobriram que as
mesas das casas tinham sido encostadas nas paredes outra vez e que uma
única mesa fora posta para doze pessoas no meio do salão. Os professores
Dumbledore, Minerva MeGonagall, Snape, Sprout e Flitwick estavam sentados
à mesa, bem como Filch, o zelador, que tirara o avental marrom de uso
diário e estava enfatiotado com uma casaca muito velha de aspecto mofado.
Havia apenas mais três alunos, dois novatos extremamente nervosos e
um garoto mal-humorado da Sonserina.
—
Feliz Natal! — desejou Dumbledore quando Harry, Rony e Hermione se
aproximaram da mesa. — Como éramos tão poucos, me pareceu uma tolice usar
as mesas das casas... Sentem-se, sentem-se!
Harry,
Rony e Hermione se sentaram lado a lado na ponta da mesa.
—
Balas de estalo! — disse Dumbledore entusiasmado, oferecendo a ponta de um
tubo prateado a Snape, que o pegou com relutância e puxou. Com um
estampido, a bala se rompeu e surgiu um grande chapéu cônico de bruxo
encimado por um urubu empalhado.
Harry,
lembrando-se do bicho-papão, procurou
os olhos de Rony e os dois sorriram; a boca de Snape se comprimiu e ele
empurrou o chapéu para Dumbledore, que o trocou pelo próprio chapéu
de bruxo na mesma hora.
—
Podem avançar! — convidou ele aos presentes, sorrindo para todos.
Quando
Harry estava se servindo de batatas assadas, as portas do salão se
abriram. Era a Profª. Sibila Trelawney, deslizando em direção à mesa como
se andasse sobre rodas. Tinha posto um vestido verde de paetês em
homenagem à ocasião, o que a fazia parecer mais que nunca uma libélula
enorme e cintilante.
—
Sibila, mas que surpresa agradável! — saudou-a Dumbledore, levantando-se.
—
Estive consultando a minha bola de cristal, diretor — disse a professora
com a voz mais etérea e distante do mundo —, e para meu espanto, me
vi abandonando o meu almoço solitário para vir me reunir a vocês. Quem
sou eu para recusar uma inspiração do destino? Na mesma hora me apressei
a deixar minha torre e peço que me perdoem o atraso...
—
É claro — disse Dumbledore com os olhos cintilantes. Deixe-me apanhar uma
cadeira para você...
E,
dizendo isso, usou a varinha para trazer, pelo ar, uma cadeira que girou
alguns segundos e pousou com um baque entre os professores Snape e
Minerva.
A
Profª. Sibila, porém, não se sentou; seus enormes olhos começaram
a passear pela mesa e ela subitamente deixou escapar um gritinho.
—
Não me atrevo, diretor! Se eu me sentar, seremos treze! Nada poderia ser mais azarado! Não vamos
esquecer que quando treze comem juntos, o primeiro a se levantar será o
primeiro a morrer!
—
Vamos correr o risco, Sibila — disse a Profª. Minerva, impaciente. — Por
favor, sente, o peru está esfriando.
Sibila
hesitou, depois se acomodou na cadeira vazia, os olhos fechados e a boca
contraída, como se estivesse à espera de um raio atingir a mesa.
Minerva enfiou uma grande colher na terrina mais próxima.
—
Tripas, Sibila?
A
professora fingiu não ouvir. Reabriu os olhos, correu-os ao redor da mesa,
mais uma vez, e perguntou:
—
Mas onde está o nosso caro Profº. Lupin?
—
Receio que o coitado esteja doente outra vez — disse Dumbledore, fazendo
um gesto para que todos começassem a se servir. — Pouca sorte que isso
fosse acontecer no dia de Natal.
—
Mas com certeza você já sabia disso, não, Sibila? — disse a Profª. Minerva
com as sobrancelhas erguidas.
Sibila
lançou a Minerva um olhar gelado.
—
Claro que sabia, Minerva — disse com a voz controlada. — Mas a pessoa não
deve fazer alarde de tudo que sabe. Muitas vezes finjo que não possuo Visão Interior para não deixar os outros
nervosos.
—
Isto explica muita coisa — disse a outra com azedume.
A
voz da Profª. Sibila subitamente se tornou bem menos etérea.
—
Se você quer saber, Minerva, vi que o coitado do Profº. Lupin não vai estar
conosco por muito tempo. E ele próprio parece saber que seu tempo é
curto. Decididamente fugiu quando eu me
ofereci para consultar a bola de cristal para ele...
—
Imagine só — comentou Minerva secamente.
—
Tenho minhas dúvidas — disse Dumbledore, com a voz alegre, mas
ligeiramente mais alta, o que pôs um ponto final na conversa das duas — de
que o Profº. Lupin corra algum perigo iminente. Severo, você preparou a
poção para ele outra vez?
—
Preparei, diretor — respondeu Snape.
—
Ótimo. Então logo ele deverá estar de pé... Derek, você já se serviu
dessas salsichas apimentadas? Estão excelentes.
O
garoto do primeiro ano ficou vermelhíssimo quando Dumbledore se dirigiu a
ele, e apanhou a travessa de salsichas com as mãos trêmulas.
A
Profª. Sibila se comportou quase normalmente até o finzinho do almoço de
Natal, duas horas depois. Empapuçados com a comida e ainda usando os
chapéus da festa, Harry e Rony se levantaram primeiro da mesa e ela deu um
grito agudo.
—
Meus queridos! Qual dos dois se levantou da cadeira primeiro? Qual?
—
Não sei — respondeu Rony olhando preocupado para Harry.
—
Duvido que vá fazer muita diferença — disse a Profª. Minerva com frieza —,
a não ser que o tarado da machadinha esteja esperando aí fora para matar o
primeiro que sair para o saguão.
Até
Rony riu. Sibila pareceu muitíssimo ofendida.
—
Vem com a gente? — perguntou Harry a Hermione.
—
Não — respondeu a garota. — Quero falar uma coisa com a Profª. McGonagall.
—
Provavelmente vai tentar ver se pode assistir a mais aulas — bocejou Rony
quando se encaminhavam para o saguão de entrada, onde não encontraram
nenhum louco da machadinha.
Quando
chegaram ao buraco do retrato, encontraram Sir Cadogan desfrutando um
almoço de Natal com dois frades, vários ex-diretores de Hogwarts e seu
gordo pônei. O cavaleiro levantou a viseira e brindou aos dois garotos com
uma jarra de quentão.
—
Feliz... Hic... Natal! Senha!
—
Cão desprezível — disse Rony.
—
E o mesmo para o senhor, meu senhor! — berrou Sir Cadogan quando o quadro
se afastou para admitir os garotos.
Harry
foi diretamente ao dormitório, apanhou a Firebolt e o Estojo para
Manutenção de Vassouras que Hermione lhe dera de presente de aniversário,
levou-os para baixo e tentou encontrar o que fazer com a vassoura; mas não
havia lascas levantadas para aparar e o cabo ainda estava tão reluzente
que não tinha sentido lhe dar polimento. Ele e Rony ficaram ali
admirando a vassoura de todos os ângulos até que o buraco do retrato se
abriu e Hermione entrou, acompanhada da Profª. Minerva.
Embora
Minerva McGonagall fosse diretora da Grifinória, Harry só a vira antes na
sala comunal uma vez, e para dar um aviso muito sério.
Ele
e Rony a olharam, os dois segurando a Firebolt. Hermione contornou o lugar
em que eles estavam, se sentou, apanhou o livro mais próximo e escondeu o
rosto nele.
—
Então é isso? — perguntou a professora com o seu olhar penetrante,
aproximando-se da lareira para examinar a Firebolt. — A Srta. Granger acabou
de me informar que alguém lhe mandou uma vassoura, Potter.
Harry
e Rony se viraram para olhar Hermione. Surpreenderam sua testa corando por
cima do livro, que ela segurava de cabeça para baixo.
—
Posso? — perguntou McGonagall, mas não esperou resposta para tirar a
vassoura das mãos dos garotos. Examinou-a atentamente, do cabo às lascas.
— Hum. E não havia nenhum bilhete, nenhum cartão, Potter? Nenhuma
mensagem de nenhum tipo?
—
Não — disse Harry sem compreender.
—
Entendo... Bem, receio que tenha de levar a vassoura, Potter.
—
Q... Quê? — exclamou Harry, ficando em pé. — Por quê?
—
Teremos que verificar se não está enfeitiçada.
Naturalmente eu não sou especialista nesse assunto, mas imagino
que Madame Hooch e o Profº. Flitwick possam desmontá-la...
—
Desmontá-la? — repetiu Rony, como se a professora fosse maluca.
—
Não deve levar mais do que umas semanas. Você a receberá de volta se
tivermos certeza de que está limpa.
—
A vassoura não tem nada errado! — exclamou Harry, a voz ligeiramente
trêmula. — Francamente, professora..
—
Você não pode saber, Potter — disse a professora com bondade —, pelo menos
até ter voado nela, e receio que isto esteja fora de questão até
nos certificarmos de que ninguém a alterou. Eu o manterei informado.
A
Profª. McGonagall deu meia-volta levando a Firebolt, e atravessou o buraco
do retrato, que se fechou em
seguida. Harry ficou observando a professora
partir, a latinha de cera de polimento ainda na mão. Rony, porém, se
voltou contra Hermione.
—
Para que você foi correndo contar à Profª. Minerva?
Hermione
largou o livro de lado. Seu rosto continuava vermelho, mas ela se levantou
e enfrentou Rony, desafiando-o.
—
Porque achei, e a Profª. McGonagall concorda comigo, que provavelmente a
vassoura foi mandada a Harry por Sirius Black!
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