sábado, 10 de dezembro de 2011
Harry Potter e o Cálice de Fogo (5/7)
CAPÍTULO VINTE E UM
A Frente de Liberação dos Elfos Domésticos
Harry, Rony e Hermione foram ao corujal naquela noite à procura de Pichitinho para Harry poder enviar uma carta a Sirius, contando-lhe que conseguira passar ileso pelo dragão. No caminho, Harry pôs Rony a par de tudo que Sirius lhe informara sobre Karkaroff. Embora, de início, Rony tivesse se chocado em saber que o bruxo fora um Comensal da Morte, na altura em que chegaram ao corujal ele já estava dizendo que os três deviam ter desconfiado disso o tempo todo.
— Se encaixa direitinho, não é! — disse ele. — Você se lembra do que Malfoy disse no trem, que o pai dele era amigo de Karkaroff? Hora a gente já sabe onde se conheceram. Provavelmente estavam correndo mascarados na Copa Mundial... Mas vou dizer uma coisa, Harry, se foi Karkaroff que pôs o seu nome no Cálice de Fogo, ele agora vai estar se sentindo muito idiota, não acha? Não funcionou, não é? Você só levou um arranhão! Vem até aqui, eu faço isso...
Pichitinho estava demasiado excitado com a idéia de fazer uma entrega, voava sem parar à volta da cabeça de Harry, piando continuamente. Rony agarrou a coruja no ar e segurou-a quieta para que o amigo pudesse prender a carta à perna da ave.
— Acho que não é possível que as outras tarefas sejam tão perigosas. Como poderiam ser? — prosseguiu Rony enquanto levava Pichitinho até a janela.
— Sabe de uma coisa? Acho que você poderia vencer esse torneio, Harry, estou falando sério.
Harry sabia que Rony só estava dizendo isso para compensar o seu comportamento nas últimas semanas, mas assim mesmo gostou. Hermione, no entanto, encostou-se à parede do corujal, cruzou os braços e amarrou a cara para Rony.
— Harry tem um longo caminho a percorrer até o fim do torneio — disse ela séria. — Se essa foi a primeira tarefa, nem quero pensar qual vai ser a próxima.
— Você é um raio luminoso de sol, não é não? Você e Professora Sibila deviam se reunir um dia desses.
E, dizendo isso, Rony lançou Pichitinho pela janela. A ave mergulhou quase quatro metros antes de conseguir se sustentar; a carta amarrada a sua perna era muito mais comprida e pesada que o normal — Harry não pôde resistir à tentação de contar a Sirius, lance a lance, exatamente como voara para cá e para lá, circulara e se desviara do Rabo-Córneo.
Os três acompanharam Pichitinho desaparecer na noite, e então Rony falou:
— Bom, é melhor descermos para a sua festa surpresa, Harry, a esta altura, Fred e Jorge já devem ter pilhado comida suficiente das cozinhas.
Não deu outra. Quando entraram, a sala comunal da Grifinória explodiu de vivas e gritos outra vez. Havia montanhas de bolos e garrafões de suco de abóbora e cerveja amanteigada em cima de cada móvel, Lino Jordan soltara alguns dos seus Fogos Fabulosos do Dr. Filibusteiro Sem Fumaça Nem Calor, por isso o ar estava denso de estrelas e faíscas e Dino Thomas, que era muito bom em desenho, tinha pendurado magníficos galhardetes novos, a maioria dos quais mostrava Harry voando na Firebolt em volta da cabeça do dragão, embora houvesse uns dois que mostravam Cedrico com os cabelos em chamas.
Harry se serviu da comida, quase esquecera como era se sentir realmente faminto, e se sentou com Rony e Hermione. Não conseguia acreditar na felicidade que sentia, recuperara o apoio de Rony, dera conta da primeira tarefa e só teria que enfrentar a segunda dali a três meses.
— Putz, isso é pesado — comentou Lino Jordan, levantando o ovo dourado, que Harry deixara em cima de uma mesa, e pesando-o nas mãos. — Abra, Harry, vamos! Vamos ver o que tem dentro!
— Ele tem que decifrar a pista sozinho — disse Hermione depressa. — É a regra do torneio...
— Eu devia arranjar um jeito de passar pelo dragão sozinho, também — murmurou Harry, de modo que somente Hermione o ouvisse, e ela deu um sorriso culpado.
— É, anda, Harry, abra! — fizeram coro vários colegas.
Lino passou o ovo a Harry e o garoto enfiou as unhas no sulco que corria a toda volta do objeto, forçando o ovo a abrir. Estava oco e completamente vazio, mas no momento em que Harry o abriu, um som terrível, alto e agudo como um agouro, encheu a sala. A coisa mais próxima àquilo que Harry já ouvira fora a orquestra fantasma na festa do aniversário de morte de Nick Quase Sem Cabeça, em que todos os componentes tocavam um serrote musical.
— Fecha isso! — berrou Fred, as mãos tampando os ouvidos.
— Que é isso? — perguntou Simas Finnigan, olhando o ovo enquanto Harry tornava a fechá-lo com um estalo. — Parecia um espírito agourento... quem sabe você vai ter que passar por um deles da próxima vez, Harry!
— Era alguém sendo torturado! — arriscou Neville, que ficara muito pálido e largara os pães de salsicha no chão. — Você vai ter que enfrentar a Maldição Cruciatus!
— Deixa de ser babaca, Neville, isso é ilegal — disse Jorge. — Não usariam a Maldição Cruciatus contra os campeões. Achei que lembrava um pouco o Percy cantando... Quem sabe você vai ter que atacar ele quando estiver debaixo do chuveiro, Harry.
— Quer uma tortinha de geléia, Mione? — ofereceu Fred.
Hermione olhou com ar de dúvida para o prato que o garoto lhe estendia.
Fred sorriu.
— Pode se servir. Não fiz nada com elas. É com os cremes de caramelo que você tem de se cuidar...
Neville, que acabara de encher a boca de creme, se engasgou e o cuspiu fora. Fred deu uma risada.
— É só uma brincadeirinha, Neville...
Hermione apanhou uma tortinha de geléia. Depois perguntou:
— Você apanhou tudo isso na cozinha, Fred?
— Foi — respondeu ele sorrindo para a garota. Ele fez uma voz de falsete e imitou um elfo doméstico: — "O que pudermos lhe arranjar, meu senhor, qualquer coisa!" São superprestativos... Me arranjariam um boi assado se eu dissesse que estava faminto.
— Como é que você entra lá? — perguntou Hermione com uma voz inocentemente desinteressada.
— É fácil, tem uma porta escondida atrás da pintura de uma fruteira. É só fazer "cosquinha" na pêra, ela ri e... — Ele parou olhou desconfiado para a garota. — Por quê?
— Nada — apressou-se Hermione a dizer.
— Vai tentar liderar uma greve de elfos domésticos, é? Vai desistir dos folhetos e incitar os caras a se revoltarem?
Algumas pessoas riram. Hermione não respondeu.
— Não vai perturbar os elfos dizendo que têm que pedir roupas e salários! — avisou-a Fred. — Vai desviar os caras do preparo da comida!
Nesse instante, Neville provocou uma ligeira distração transformando-se em um grande canário.
— Ah... Me desculpe, Neville — gritou Fred, abafando as risadas.
— Me esqueci... Foram os cremes de caramelo que enfeitiçamos...
Um minuto depois, Neville entrava na muda e quando as penas acabaram de cair ele reapareceu tal qual era. E até engrossou o coro de gargalhadas.
— Cremes de Canários! — anunciou Fred para os alunos facilmente excitáveis. — Jorge e eu inventamos, sete sicles cada, pechincha!
Era quase uma hora da manhã quando Harry finalmente foi para o dormitório em companhia de Rony, Neville, Simas e Dino. Antes de fechar as cortinas de sua cama, o garoto colocou a miniatura do Rabo-Córneo húngaro em cima da mesa-de-cabeceira onde o dragão bocejou, se enroscou e fechou os olhos. Para ser sincero, pensou Harry, ao correr as cortinas da cama, Hagrid tinha uma certa razão... Eles eram realmente legais, os dragões...
O começo de dezembro trouxe chuva e neve granulada a Hogwarts. Mesmo cheio de correntes de ar como costumava ser o castelo no inverno, Harry se sentia grato por suas lareiras e paredes grossas todas as vezes que passava pelo navio de Durmstrang no lago, jogando com os ventos fortes, as velas negras enfunadas contra o céu escuro. Ocorreu-lhe que a carruagem de Beauxbaton provavelmente era bem fria também. Hagrid, reparou ele, estava mantendo os cavalos de Madame Maxime bem abastecidos do uísque que preferiam, os vapores que subiam do cocho a um picadeiro eram suficientes para deixar tonta a classe inteira de Trato das Criaturas Mágicas. Isto não ajudava nada, porque os garotos continuavam cuidando dos horrorosos explosivins e precisavam ficar sóbrios.
— Não tenho bem certeza se eles hibernam ou não — disse Hagrid, na aula seguinte, à classe que tremia de frio na horta de abóboras varrida pelo vento. — Achei que devíamos tentar ver se os bichos querem tirar uma soneca... Vamos colocá-los nessas caixas...
Agora só restavam dez, aparentemente ainda não haviam se fartado de se matar uns aos outros. Cada um agora chegava quase a um metro e oitenta centímetros de comprimento. A carapaça grossa e cinzenta, as perninhas curtas em movimento, as caudas que expeliam fogo, os ferrões e os sugadores se somavam para tornar os explosivins as coisas mais repugnantes que Harry já vira.
A turma olhou desanimada para as enormes caixas que Hagrid trouxera, todas forradas com almofadas e cobertores macios.
— Vamos levá-los para as caixas — disse Hagrid —, tampá-las, e ver o que acontece.
Mas os explosivins, pelo que se viu, não hibernavam, e não gostavam de ser enfiados à força em caixas forradas com almofadas com uma tampa por cima.
Hagrid logo começou a gritar:
— Não entrem em pânico, não entrem em pânico! — Enquanto os bichos desembestavam pela horta de abóboras agora juncada com os restos de caixas fumegantes.
A maioria da turma, Malfoy, Crabbe e Goyle à frente, tinha fugido para a cabana de Hagrid pela porta dos fundos e se barricara lá dentro, Harry, Rony e Hermione, no entanto, estavam entre os alunos que tinham ficado do lado de fora tentando ajudar o professor. Juntos, conseguiram dominar e prender nove dos explosivins, embora ao custo de vários cortes e queimaduras, finalmente, faltou apenas uma das criaturas.
— Não vão assustá-lo! — gritou Hagrid, enquanto Rony e Harry usavam as varinhas para lançar fagulhas no bicho, que avançava ameaçadoramente para os garotos, o ferrão nas costas estremecendo em riste. — Tentem passar a corda pelo ferrão para ele não poder atacar os outros.
— Ah, é, nós nem íamos querer uma coisa dessas! — gritou Rony zangado, enquanto ele e Harry recuavam contra a parede da cabana de Hagrid, ainda mantendo o explosivin afastado com fagulhas.
— Ora, ora, ora... Isso parece realmente divertido!
Rita Skeeter estava debruçada na cerca do jardim de Hagrid, apreciando a confusão. Usava uma grossa capa carmim com uma gola de peles e trazia a bolsa de crocodilo no braço.
Hagrid se atirou em cima do bicho que acuava Harry e Rony e achatou-o, um jorro de fogo disparou de sua cauda, queimando os pés de abóbora mais próximos.
— Quem é a senhora? — perguntou Hagrid à jornalista, enquanto passava a corda no ferrão do explosivin e apertava o laço.
— Rita Skeeter, repórter do Profeta Diário — respondeu a moça, sorrindo para ele. Seu dente de ouro brilhou.
— Pensei ter ouvido Dumbledore dizer que a senhora não podia mais entrar na escola? — disse Hagrid erguendo ligeiramente as sobrancelhas enquanto saía de cima do bicho achatado e começava a arrastá-lo para junto dos companheiros.
Rita fez de conta que não ouviu o que Hagrid acabara de dizer.
— Como é o nome dessas criaturas fascinantes? — perguntou ela, com um sorriso ainda maior.
— Explosivins — resmungou Hagrid.
— Sério? — disse ela, parecendo vivamente interessada. — Nunca ouvi falar deles antes... E de onde é que eles vêm?
Harry notou uma vermelhidão subir da barba negra e desgrenhada de Hagrid e sentiu um súbito desânimo. Onde é que Hagrid arranjara aqueles bichos?
Hermione que parecia estar pensando mais ou menos a mesma coisa, disse depressa:
— Eles são muito interessantes, não é mesmo? Não são, Harry?
— Quê? Ah, são... Ai... Interessantes — disse o garoto quando a amiga pisou seu pé.
— Ah, você está aqui, Harry! — exclamou Rita olhando para o lado. — Então você gosta da aula de Trato das Criaturas Mágicas? Uma de suas matérias preferidas?
— É — disse Harry corajosamente. Hagrid lhe deu um grande sorriso.
— Que beleza! — disse Rita. — Realmente uma beleza. Está ensinando isso há muito tempo? — perguntou ela a Hagrid.
Harry reparou que os olhos da jornalista corriam de Dino (que recebera um corte feio no rosto) para Lilá (cujas vestes estavam bastante chamuscadas), para Simas (que estava cuidando de vários dedos queimados), e dele para as janelas da cabana, onde se encontrava a maior parte da turma, de nariz colado na vidraça, esperando ver se era seguro sair.
— Este é o meu segundo ano — respondeu o professor.
— Que beleza... O senhor não gostaria de dar uma entrevista? Contar sua experiência com criaturas mágicas? O Profeta publica uma coluna zoológica toda quarta-feira, como o senhor com certeza já sabe. Nós poderíamos falar desses... Hum... Estouradins?
— Explosivins — apressou-se a corrigir Hagrid. — Hum... Claro, por que não?
Harry teve uma sensação ruim sobre o convite, mas não havia como se comunicar com Hagrid sem Rita ver, por isso ele foi obrigado a ficar em silêncio observando Hagrid e Rita combinarem se encontrar no Três Vassouras para uma longa entrevista, mais para o fim da semana. Então a sineta tocou no castelo, anunciando o fim da aula.
— Bem, tchau, Harry! — gritou Rita alegremente para o garoto, enquanto ele se afastava com Rony e Hermione. — Até sexta-feira à noite, então, Hagrid!
— Rita vai distorcer tudo que ele disser — comentou Harry baixinho.
— Desde que ele não tenha importado aqueles explosivins ilegalmente nem nada do gênero — disse Hermione desesperada. Eles se entreolharam, era exatamente o tipo de coisa que Hagrid seria capaz de fazer.
— Hagrid já se meteu em montes de confusão antes e Dumbledore nunca o despediu — disse Rony em tom de consolo. — O pior que pode acontecer é Hagrid ter que se livrar dos bichos. Desculpe... Eu disse o pior? Quis dizer o melhor.
Harry e Hermione caíram na gargalhada e, sentindo-se mais animados, foram almoçar.
Harry gostou imensamente da aula de Adivinhação naquela tarde, a turma ainda estava fazendo mapas e predições, mas agora que ele e Rony tinham voltado a ser amigos a coisa recuperara a antiga graça. A Professora Sibila, que andara tão satisfeita com os garotos quando eles estiveram predizendo mortes horrendas para si mesmos, não tardou a se irritar quando os dois ficaram de risadinhas na hora em que ela explicava as várias maneiras com que Plutão era capaz de desorganizar a vida diária.
— Seria de pensar — disse ela, num sussurro místico que não ocultava seu óbvio aborrecimento — que alguns de nós — e olhou significativamente para Harry — seriam um pouquinho menos frívolos se tivessem visto o que vi quando consultei a minha bola de cristal ontem à noite. Eu estava sentada bordando, muito absorta, quando fui tomada por um impulso de consultar a bola. Levantei-me e me sentei diante dela e contemplei suas profundezas cristalinas... E o que acham que vi olhando para mim?
— Uma morcega velha com os óculos maiores do que a cara? — cochichou Rony.
Harry fez muita força para ficar com a cara séria.
— A morte, meus queridos.
Parvati e Lilá levaram as mãos à boca, fazendo cara de horror.
— Sim, senhores — disse a professora, acenando a cabeça de modo impressionante —, ela está se aproximando, cada vez mais, descrevendo círculos no céu como um urubu, cada vez mais baixa... Sempre mais baixa sobre o castelo...
Ela olhou diretamente para Harry, que bocejou com a boca escancarada e de maneira óbvia.
— Teria sido mais impressionante se ela não tivesse anunciado isso oito vezes antes — disse Harry, quando finalmente recuperaram o ar fresco na escada sob a sala de Sibila. — Mas se eu caísse duro toda vez que ela diz que vou cair, eu seria um milagre da medicina.
— Seria uma espécie de fantasma super-concentrado — disse Rony rindo, ao passarem pelo Barão Sangrento que ia em sentido contrário, um olhar sinistramente fixo nos olhos enormes. — Pelo menos ela não passou dever de casa. Espero que a Professora Vector tenha passado um monte para Hermione, adoro ficar à toa quando ela está ocupada...
Mas a garota não apareceu para jantar, nem estava na biblioteca quando eles foram procurá-la. A única pessoa que estava lá era Vítor Krum. Rony ficou parado um tempo atrás das estantes, observando Krum e discutindo aos cochichos com Harry se deveria pedir um autógrafo, mas então percebeu que havia umas seis ou sete garotas rondando entre as estantes ao lado, discutindo exatamente a mesma coisa, e perdeu o entusiasmo pela idéia.
— Onde será que ela se meteu? — indagou Rony quando os dois rumavam para a Torre da Grifinória.
— Sei lá... Asnice.
Mas a Mulher Gorda mal começara a girar para frente quando o ruído de alguém correndo às costas dos garotos anunciou a chegada de Hermione.
— Harry! — ofegou ela, derrapando até parar ao lado dele (a Mulher Gorda olhou para a garota, com as sobrancelhas erguidas).
— Harry, você tem de vir comigo... Tem de vir, aconteceu a coisa mais fantástica... Por favor...
Ela agarrou o braço de Harry e tentou arrastar o garoto de volta ao corredor.
— Que é que aconteceu? — perguntou Harry.
— Eu mostro a você quando a gente chegar lá, ah, anda logo, depressa...
Harry olhou para Rony; este olhou para Harry intrigado.
— OK — disse Harry, começando a retroceder pelo corredor com Hermione, Rony correndo para acompanhá-los.
— Ah, não se incomodem comigo! — gritou a Mulher Gorda irritada para os garotos. Não peçam desculpas por terem me incomodado! Vou continuar pendurada aqui, aberta, até vocês voltarem, não é isso?
— É, obrigado — gritou Rony por cima do ombro.
— Hermione, onde é que estamos indo? — perguntou Harry, depois que a garota os fizera descer seis andares e já estavam na escadaria de mármore do saguão de entrada.
— Você vai ver, você vai ver já, já! — disse Hermione excitada.
Ela virou à esquerda ao pé da escada e correu para a porta que Cedrico cruzara na noite seguinte ao Cálice de Fogo ter regurgitado o seu nome e o de Harry.
O garoto jamais passara ali antes. Ele e Rony acompanharam Hermione, desceram um lance de escadas de pedra, mas em vez destas terminarem em uma sombria passagem subterrânea, como a que levava à masmorra do Snape, os garotos se viram em um corredor de pedra, largo, muito bem iluminado com archotes, e decorado com alegres pinturas, na maioria, de comida.
— Ah, espera aí... — disse Harry lentamente, a meio caminho do corredor. — Espera um instante, Hermione...
— Quê? — Ela se virou para olhá-lo, o rosto que era só expectativa.
— Já sei do que se trata — disse Harry.
O garoto cutucou Rony e apontou para o quadro logo atrás de Hermione.
Era a pintura de uma enorme fruteira de prata.
— Hermione! — exclamou Rony, entendendo. — Você não está tentando nos pegar a laço para aquela história do fale outra vez?
— Não, não, não estou! — apressou-se ela a dizer. — E não é fale, Rony...
— Você mudou o nome? — perguntou Rony, franzindo a testa. — Que somos então? A Frente de Liberação dos Elfos Domésticos? Não vou invadir a cozinha para fazer eles pararem de trabalhar, não vou fazer isso...
— Não estou lhe pedindo isso! — disse Hermione impacientemente. — Desci aqui agora há pouco para conversar com eles e encontrei... Ah, anda, Harry, quero lhe mostrar!
A garota tornou a agarrá-lo pelo braço, puxou-o para diante do quadro da fruteira, esticou o dedo indicador e fez cócegas na enorme pêra verde. A fruta começou a se contorcer e rir e, de repente, transformou-se em uma grande maçaneta verde. Hermione segurou-a, abriu a porta e empurrou Harry pelas costas, com força, obrigando-o a entrar.
O garoto teve apenas uma breve visão de um amplo aposento de teto alto, grande como o Salão Principal acima, repleto de tachos e panelas de latão empilhados ao redor das paredes de pedra, um grande fogão de tijolos no extremo oposto, quando alguma coisa pequena se precipitou do meio do aposento ao encontro dele, guinchando:
— Harry Potter, meu senhor! Harry Potter!
No segundo seguinte todo o ar dos seus pulmões foi expelido, o elfo, aos guinchos, colidiu com ele na altura do diafragma, abraçando-o com tanta força que o garoto pensou que suas costelas iam partir.
— D-Dobby? — ofegou Harry.
— Dobby, meu senhor, é sim! — guinchou a voz na altura do seu umbigo. –Dobby teve muita esperança de ver Harry Potter, meu senhor, e Harry Potter veio ver ele, meu senhor!
Dobby soltou o garoto e recuou alguns passos, sorrindo para Harry de orelha a orelha, seus enormes olhos verdes, redondos como bolas de tênis, se enchendo de lágrimas de felicidade. Tinha quase exatamente a mesma aparência com que Harry o conhecera: o nariz fino e reto, as orelhas de morcego, as mãos e os pés compridos — exceto pelas roupas, que eram muito diferentes.
Quando Dobby trabalhara para os Malfoy, sempre usara a mesma fronha velha e imunda. Agora, porém, vestia a combinação mais extravagante de roupas que Harry já vira na vida; fizera uma escolha de peças pior do que a dos bruxos na Copa Mundial. Usava um abafador de chá à guisa de chapéu, no qual estavam presos vários distintivos coloridos, uma gravata com estampa de ferraduras de cavalo sobre o peito nu, calções que pareciam os de uma criança jogar futebol e meias desaparelhadas. Uma delas, Harry reparou, era a preta que ele tirara do próprio pé e induzira o Sr. Malfoy a jogar para Dobby, e ao fazer isso, libertara-o. A outra era listrada de rosa e laranja.
— Dobby, que é que você está fazendo aqui? — perguntou Harry surpreso.
— Dobby veio trabalhar em Hogwarts, meu senhor! — guinchou o elfo excitado. — O Professor Dumbledore deu emprego a Dobby e Winky meu senhor!
— Winky? — exclamou Harry. — Ela também está aqui?
— Está, sim, senhor, está! — disse Dobby, e agarrando a mão de Harry puxou-o para dentro da cozinha entre quatro longas mesas de madeira que estavam ali. Cada uma das mesas, o garoto notou ao passar, estava colocada exatamente embaixo das quatro mesas das Casas em cima, no Salão Principal.
Naquele momento não havia comida nelas, o jantar já terminara, mas ele supôs que uma hora antes estivessem carregadas de travessas que então eram mandadas pelo teto para as suas correspondentes no andar superior.
No mínimo uns cem elfos estavam parados pela cozinha, sorrindo, inclinando a cabeça e fazendo reverências quando Dobby passou com Harry por eles. Todos usavam o mesmo uniforme, uma toalha de chá estampada com o timbre de Hogwarts e amarrada como uma toga, como a de Winky.
Dobby parou diante do fogão de tijolos e apontou.
— Winky, meu senhor! — disse ele.
Ela estava sentada em um banquinho junto ao fogo. Ao contrário de Dobby, obviamente não saíra catando roupas. Usava uma saia e uma blusa comportadas, e um chapéu azul combinando, com aberturas laterais para suas orelhonas. Mas, enquanto cada peça da estranha coleção de roupas de Dobby estava impecavelmente limpa e bem cuidada, pois até pareciam novas em folha, era visível que Winky não estava cuidando das próprias roupas. Havia manchas de sopa na blusa e um chamuscado na saia.
— Olá, Winky — cumprimentou Harry.
Os lábios de Winky tremeram. Então ela rompeu em lágrimas, que transbordaram dos seus grandes olhos castanhos e caíram pela roupa, exatamente como acontecera na Copa Mundial de Quadribol.
— Ah meu Deus! — exclamou Hermione. Ela e Rony tinham seguido Harry e Dobby até o fundo da cozinha. — Winky, não chore, por favor, não...
Mas Winky chorava com mais vontade que nunca. Dobby, por outro lado, sorria radiante para Harry.
— Harry Potter gostaria de tomar uma xícara de chá? — guinchou ele alto, abafando os soluços de Winky.
— Hum... Ah, OK — disse o garoto.
Instantaneamente, uns seis elfos domésticos vieram correndo atrás dele, trazendo uma grande bandeja de prata com um bule de chá, xícaras para Harry, Rony e Hermione, uma jarrinha de leite e um grande prato de biscoitos.
— Serviço de primeira! — exclamou Rony, com admiração na voz. Hermione franziu a testa para ele, mas os elfos pareciam encantados da vida, fizeram uma grande reverência e se retiraram.
— Há quanto tempo está aqui, Dobby? — perguntou Harry, quando o elfo serviu o chá para todos.
— Só uma semana, Harry Potter, meu senhor! — respondeu Dobby alegremente. — Dobby veio ver o Professor Dumbledore, meu senhor. Sabe, meu senhor, é muito difícil um elfo doméstico que foi dispensado arranjar outro emprego, meu senhor, muito difícil, mesmo...
Ao ouvir isso, Winky chorou ainda mais alto, seu nariz de tomate amassado pingando pela frente da blusa, embora ela não fizesse o menor esforço para estancar essa pingadeira.
— Dobby viajou pelo país durante dois anos, meu senhor, tentando encontrar trabalho! Mas Dobby não encontrou nada, meu senhor, porque agora ele quer receber ordenado!
Os elfos domésticos por toda a cozinha, que estavam escutando e observando com interesse, desviaram os olhos ao ouvirem isso, como se Dobby tivesse dito alguma coisa grosseira e constrangedora. Hermione, porém, exclamou:
— Assim é que se faz, Dobby!
— Muito obrigado, senhorita! — disse o elfo, dando a ela um sorriso que era só dentes. — Mas a maioria dos bruxos não quer um elfo doméstico que exige ordenado, senhorita. "Isto não é próprio de um elfo doméstico", dizem eles e batem a porta na cara de Dobby! Dobby gosta de trabalhar, mas quer se vestir e quer receber ordenado, Harry Potter... Dobby gosta de ser livre!
Os elfos domésticos de Hogwarts agora começaram a se afastar discretamente de Dobby, como se ele tivesse alguma doença contagiosa. Winky, no entanto, continuou onde estava, embora se notasse um decidido aumento no volume do seu choro.
— E, então, Harry Potter, Dobby vai visitar Winky e descobre que ela foi libertada, também! — conta Dobby com satisfação.
Ao ouvir isso, Winky se atirou para frente e caiu do banquinho, de rosto no chão de lajotas, batendo os pequenos punhos e positivamente urrando de infelicidade.
Hermione imediatamente se ajoelhou ao lado dela e tentou consolá-la, mas nada que dissesse produzia a menor diferença. Dobby continuou sua história, guinchando alto para abafar o choro estridente de Winky.
— Então Dobby teve a idéia, Harry Potter, meu senhor! "Por que Dobby e Winky não procuram um trabalho juntos?" Onde é que existe trabalho suficiente para dois elfos domésticos?", pergunta Winky. E Dobby pensa e se lembra, meu senhor! Hogwarts! Então Dobby e Winky vieram ver o Professor Dumbledore, meu senhor e o professor nos contratou!
Dobby sorriu muito animado e lágrimas de felicidade brotaram, mais uma vez, dos seus olhos.
— E o Professor Dumbledore diz que vai pagar a Dobby, meu senhor, se Dobby quer pagamento! E, assim, Dobby é um elfo livre, meu senhor, e Dobby recebe um galeão por semana e um dia de folga por mês!
— Isso é muito pouco! — exclamou Hermione indignada, ainda curvada para os gritos incessantes e os murros no chão de Winky.
— O Professor Dumbledore ofereceu a Dobby dez galeões por semana e folgas nos fins de semana — disse Dobby, estremecendo de repente como se a perspectiva de tanto lazer e riqueza o assustasse —, mas Dobby fez ele baixar a oferta, senhorita... Dobby gosta da liberdade, senhorita, mas não quer tanto assim, senhorita, ele gosta mais do trabalho.
— E quanto é que o Professor Dumbledore está pagando a você Winky? — perguntou Hermione bondosamente.
Se a garota achou que isso ia animar Winky, estava delirando. Winky realmente parou de chorar, mas, quando se sentou, ficou encarando Hermione com seus imensos olhos castanhos, seu rosto lavado de lágrimas e inesperadamente furioso.
— Winky é um elfo em desgraça, mas Winky ainda não está aceitando pagamento — guinchou ela. — Winky não decaiu a esse ponto! Winky está devidamente envergonhada de ter sido libertada!
— Envergonhada? — perguntou Hermione perplexa. — Mas... Winky, espera aí! É o Sr. Crouch que devia estar envergonhado e não você! Você não fez nada errado, ele é que foi realmente horrível com você...
Mas ao ouvir isso, Winky levou as mãos às aberturas laterais do chapéu e achatou as orelhas para não poder ouvir nem mais uma palavra e guinchou:
— A senhorita não vai insultar o meu amo! A senhorita não vai insultar o Sr. Crouch! O Sr. Crouch é um bruxo bom, senhorita! O Sr. Crouch fez bem em mandar a feia Winky embora!
— Winky está tendo dificuldades para se adaptar, Harry Potter — guinchou Dobby confidencialmente. — Winky se esquece que não está mais presa ao Sr. Crouch, que pode dizer o que pensa agora, mas não quer fazer isso.
— Os elfos domésticos não podem dizer o que pensam dos amos, então? — perguntou Harry.
— Ah, não, não meu senhor — disse Dobby repentinamente serio. — Faz parte da escravidão do elfo doméstico, meu senhor. Guardamos silêncio e os segredos dos amos, meu senhor, defendemos a honra da família e nunca falamos mal dela, embora o Professor Dumbledore tenha dito a Dobby que não faz questão disso. O Professor Dumbledore disse que a gente é livre para... Para...
Dobby pareceu subitamente nervoso e chamou Harry mais para perto.
Harry se inclinou para ele. Dobby cochichou:
— Disse que a gente é livre para chamar ele de... De velho caduco se quiser, meu senhor! — Dobby deu uma risadinha assustada. — Mas Dobby não quer, Harry Potter — disse ele voltando a falar normalmente e balançando a cabeça de modo que suas orelhas abanavam. — Dobby gosta muito do Professor Dumbledore, meu senhor, e tem orgulho de guardar os segredos dele.
— Mas você pode dizer o que quiser sobre os Malfoy agora? — perguntou Harry sorrindo.
Um olhar de temor surgiu nos olhos imensos de Dobby.
— Dobby... Dobby poderia — disse cheio de dúvida. Aprumou então seus ombrinhos. — Dobby poderia dizer a Harry Potter que seus antigos amos eram... Eram... Bruxos malvados das trevas!
Dobby ficou parado um instante, o corpo todo tremendo, horrorizado com a sua própria coragem, então correu até a mesa mais próxima e começou a bater a cabeça nela, com força, guinchando:
— Dobby mau! Dobby mau!
Harry agarrou o elfo por trás da gravata e afastou-o da mesa.
— Obrigado, Harry Potter, obrigado — disse Dobby sem fôlego, esfregando a cabeça.
— Você só precisa de um pouco de prática — disse Harry.
— Prática! — guinchou Winky furiosa. — Você devia era ter vergonha, Dobby, falando desse jeito dos seus amos!
— Eles não são mais meus amos, Winky! — disse Dobby em tom de desafio. -Dobby não se importa mais com o que eles pensam!
— Ah, você é um elfo mau, Dobby! — lamentou-se Winky, as lágrimas escorrendo mais uma vez pelo seu rosto. — O coitadinho do meu Sr. Crouch, que é que ele está fazendo sem a Winky? Está precisando de mim, está precisando da minha ajuda! Eu cuidei dos Crouch a vida inteira e minha mãe fez isso antes de mim e minha avó antes dela... Ah, o que elas diriam se soubessem que Winky foi libertada? Ah, que vergonha, que vergonha! — Ela escondeu o rosto na saia e abriu um berreiro.
— Winky — disse Hermione com firmeza —, tenho certeza de que o Sr. Crouch vai indo muitíssimo bem sem você. A gente o viu, sabe...
— A senhorita tem visto o meu amo? — perguntou Winky sem fôlego, erguendo o rosto manchado de lágrimas da saia, mais uma vez, e arregalando os olhos para Hermione. — A senhorita tem visto ele aqui em Hogwarts?
— Tenho. Ele e o Sr. Bagman são juizes no Torneio Tribruxo.
— O Sr. Bagman vem também? — guinchou Winky e, para grande surpresa de Harry (e de Rony e Hermione também, pela expressão no rosto deles), ela pareceu novamente zangada. — O Sr. Bagman é um bruxo malvado! Um bruxo muito malvado! Meu amo não gosta dele, ah, não, nem um pouquinho!
— Bagman... Malvado? — exclamou Harry.
— Ah é — disse Winky, acenando furiosamente com a cabeça. — Meu dono contou a Winky umas coisas! Mas Winky não vai repetir... Winky... Winky guarda os segredos do amo... — E mais uma vez ela se debulhou em lágrimas; os garotos a ouviam soluçar escondida na saia. — Coitado do meu amo, coitado do meu amo, não tem mais a Winky para ajudar!
Os garotos não conseguiram extrair de Winky nem mais uma palavra que fizesse sentido. Deixaram-na chorar e terminaram o chá, enquanto Dobby tagarelava alegremente sobre sua vida de elfo liberto e seus planos para o seu ordenado.
— A próxima coisa que Dobby vai comprar é um suéter sem mangas, Harry Potter! — disse ele alegremente, apontando para o peito nu.
— Vou lhe dizer o que vou fazer — disse Rony, que parecia ter se afeiçoado muito ao elfo. — Vou lhe dar o suéter que minha mãe tricotar para mim este Natal, eu sempre ganho um. Você não tem nada contra a cor marrom, tem?
Dobby ficou encantado.
— Talvez a gente tenha que dar uma encolhida nele para caber em você, mas vai combinar bem com o seu abafador de chá.
Quando se preparavam para ir embora, muitos elfos que os cercavam se aproximaram, oferecendo lanchinhos para os garotos levarem. Hermione recusou, com uma expressão constrangida, ao ver a maneira com que os elfos continuavam a se curvar e fazer reverências, mas Harry e Rony encheram os bolsos com bolos e tortas.
— Muito obrigado! — disse Harry aos elfos, que tinham se agrupado em torno da porta para lhes desejar boa noite. — Até à vista, Dobby.
— Harry Potter... Dobby pode ir ver o senhor de vez em quando, meu senhor? — perguntou Dobby hesitante.
— Claro que pode — disse o garoto e o elfo abriu um sorriso.
— Sabe de uma coisa? — disse Rony, depois que ele, Hermione e Harry haviam deixado a cozinha para trás e já estavam subindo as escadas para o saguão de entrada. — Todos esses anos sempre fiquei realmente impressionado com a capacidade de Fred e Jorge pegarem comida na cozinha, ora não é nada difícil, não é mesmo? Os caras mal podem esperar para dar a comida!
— Acho que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a esses elfos, sabe — disse Hermione seguindo à frente para subir a escadaria de mármore. — Dobby ter vindo trabalhar aqui, quero dizer. Os outros elfos vão ver como ele está feliz, depois de libertado, e devagarinho vão se lembrar de desejar a mesma coisa!
— Vamos esperar que eles não prestem muita atenção na Winky — disse Harry.
— Ah, ela vai se animar — disse Hermione, embora parecesse meio em dúvida. — Depois que passar o choque e ela se acostumar a Hogwarts, vai ver que está muito melhor sem o tal do Crouch.
— Mas ela parece que ama o cara — disse Rony com a voz enrolada (acabara de morder o bolo).
— Mas ela não tem uma boa opinião do Bagman, não é — comentou Harry. — Que será que Crouch diz dele em casa?
— Provavelmente diz que Bagman não é um bom chefe de departamento — disse Hermione —, e vamos ser sinceros... Ele tem razão, não acham?
— Mesmo assim, eu preferia trabalhar para ele do que para o velho Crouch — disse Rony. — Pelo menos Bagman tem senso de humor.
— Não deixa o Percy escutar você dizendo isso — falou Hermione, dando um sorrisinho.
— É, Percy não iria querer trabalhar para ninguém que tivesse senso de humor, não é mesmo? — disse Rony, agora começando a comer a bomba de chocolate. — Percy não reconheceria uma piada nem que ela dançasse pelada na frente dele, usando só o abafador de chá do Dobby na cabeça.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
A tarefa Inesperada
— Potter! Weasley! Querem prestar atenção?
A voz irritada da Professora McGonagall estalou como um chicote pela aula de Transformação de quinta-feira, os dois garotos levaram um susto e ergueram a cabeça.
A aula chegava ao fim, eles tinham terminado a tarefa dada: as galinhas-da-guiné que tentavam transformar em porquinhos-da-índia já estavam trancadas em uma grande gaiola sobre a escrivaninha da professora (o porquinhos-da-índia de Neville ainda conservava as penas), tinham copiado do quadro-negro o dever de casa ("Descreva, com exemplos, como os Feitiços de Transformação devem ser adaptados ao se fazerem trocas cruzadas entre espécies").
A sineta devia tocar a qualquer momento e Harry e Rony, que andavam travando uma luta de espadas com umas varinhas falsas de Fred e Jorge, no fundo da sala, ergueram a cabeça, Rony agora segurando um papagaio de lata e Harry, um hadoque de borracha.
— Agora que Potter e Weasley tiveram a bondade de parar com as criancices — disse a professora, lançando um olhar feio aos dois no momento em que a cabeça do hadoque de Harry se pendurou para o lado e caiu silenciosamente no chão, o bico do papagaio de Rony se partira momentos antes —, tenho um aviso para dar a todos. O Baile de Inverno está próximo, é uma tradição do Torneio Tribruxo e uma oportunidade para convivermos socialmente com os nossos hóspedes estrangeiros. Agora, o baile só será franqueado aos alunos do quarto ano em diante, embora vocês possam convidar um aluno mais novo se quiserem...
Lilá Brown deixou escapar uma risadinha aguda. Parvari Patil deu-lhe uma cutucada nas costelas com força, o rosto contraindo-se furiosamente enquanto ela, também, lutava para não rir feito boba. As duas viraram a cabeça para olhar Harry. A professora fingiu não vê-las, o que Harry achou que era uma nítida injustiça, pois acabara de chamar a atenção dele e de Rony.
— O traje é a rigor — continuou a professora —, e o baile, no Salão Principal, começará às oito horas e terminara a meia-noite, no dia de Natal. Então...
A Professora McGonagall olhou deliberadamente para a turma.
— O Baile de Inverno naturalmente é uma oportunidade para todos nós... Hum... Para nos soltarmos — disse ela em tom de desaprovação.
Lilá deu mais risadinhas que nunca, tampando a mão com a boca para abafar o som. Dessa vez Harry pôde entender qual era a graça: a Professora McGonagall, com os cabelos presos, não tinha jeito de que algum dia fosse se soltar em nenhum sentido.
— Mas isto não significa — continuou ela — que vamos relaxar os padrões de comportamento que se espera dos alunos de Hogwarts. Ficarei seriamente aborrecida se, de alguma maneira, um aluno da Grifinória envergonhar a escola.
A sineta tocou e ouviram-se os costumeiros ruídos de gente guardando o material nas mochilas e atirando-as por cima dos ombros.
A professora chamou, sobrepondo-se ao barulho geral:
— Potter, uma palavrinha, por favor.
Supondo que fosse alguma coisa relacionada com o hadoque de borracha decapitado, Harry dirigiu-se, com ar de desânimo à escrivaninha da professora. A Professora McGonagall esperou até o resto da turma sair e então disse:
— Potter, os campeões e seus pares...
— Que pares? — perguntou Harry.
A professora olhou desconfiada para o garoto, como se achasse que ele estava querendo ser engraçado.
— Os pares para o Baile de Inverno, Potter — explicou ela com frieza. — Os pares de dança.
As entranhas de Harry pareceram se enroscar e murchar.
— Pares de dança?— Ele sentiu que estava corando. — Eu não danço — disse depressa.
— Ah, dança sim, senhor — disse a professora irritada. — É o que estou lhe dizendo. Tradicionalmente os campeões abrem o baile com os seus pares.
Harry teve uma súbita visão de si mesmo, de casaca e cartola, acompanhado por uma garota com aquele tipo de vestido de babadinhos que a tia Petúnia sempre usava nas festas de negócios do tio Válter.
— Eu não vou dançar.
— É a tradição — disse a Professora Minerva com firmeza. — Você é um dos campeões de Hogwarts e vai fazer o que se espera de você como representante de sua escola. Portanto providencie um par, Potter.
— Mas eu... Não...
— Você me ouviu, Potter — disse ela, em tom de quem encerra a conversa.
Há uma semana, Harry teria dito que arranjar um par para dançar era moleza se comparado a enfrentar um Rabo-Córneo húngaro. Mas agora que cumprira aquela tarefa e se confrontava com a perspectiva de convidar uma garota para o baile, ele achou que preferia enfrentar mais uma rodada com o dragão.
Harry nunca vira tanta gente inscrever os nomes para passar o Natal em Hogwarts, ele sempre se inscrevia, naturalmente, porque sua alternativa, em geral, era regressar à Rua dos Alfeneiros, mas até agora ele sempre fora minoria.
Este ano, porém, todo mundo do quarto ano para cima parecia querer ficar, e todos pareciam a Harry obcecados pelo tal baile — ou, pelo menos, todas as garotas estavam, e era espantoso quantas garotas Hogwarts de repente parecia abrigar; ele nunca reparara muito bem nisso.
Garotas que davam risadinhas e cochichavam pelos corredores, garotas que riam alto quando os garotos passavam por elas, garotas que comparavam informações, excitadas, sobre o que iam usar na noite de Natal...
— Por que é que elas têm que andar em bandos? — perguntou Harry a Rony, quando uma dúzia de garotas passou por eles, rindo e olhando para Harry. — Como é que se vai encontrar uma sozinha para se convidar?
— Que tal laçar uma — sugeriu Rony. — Já tem idéia de quem é que você vai tentar convidar?
Harry não respondeu. Sabia perfeitamente quem é que ele gostaria de convidar, mas arranjar coragem para fazê-lo era outra conversa... Cho era um ano mais velha do que ele; era muito bonita, era uma boa jogadora de Quadribol e também muito popular.
Rony parecia saber o que se passava na cabeça de Harry.
— Escuta, você não vai ter nenhuma dificuldade. Você é campeão. Acabou de derrotar o Rabo-Córneo húngaro. Aposto como elas vão fazer fila para ir com você.
Em homenagem à amizade recém-remendada entre os dois, Rony procurou deixar um mínimo absoluto de amargura transparecer em sua voz. Além disso, para sua surpresa, Harry descobriu que o amigo tinha razão.
Uma terceiranista da Lufa-Lufa, de cabelos crespos, com quem Harry jamais falara na vida, convidou-o para ir ao baile com ela, logo no dia seguinte. Ele ficou tão surpreso que respondeu "não" antes mesmo de parar para refletir sobre o convite.
A garota se afastou parecendo bem magoada, e Harry teve que aturar as piadas de Dino, Simas e Rony sobre ela durante toda a aula de História da Magia.
No dia seguinte, mais duas garotas o convidaram, uma do segundo ano e (para seu horror) uma do quinto ano, que parecia ser capaz de nocauteá-lo se ele recusasse.
— Ela era bem jeitosa — disse Rony querendo ser justo, depois que parou de dar risadas.
— Ela era bem uns trinta centímetros mais alta que eu — disse Harry, ainda nervoso. — Imagina com que cara eu ia ficar tentando dançar com ela.
As palavras de Hermione a respeito de Krum não paravam de lhe voltar à lembrança: "Elas só gostam dele porque ele é famoso!" Harry duvidava muito que as garotas que até então o haviam convidado para ser seu par iriam querer acompanhá-lo ao baile se ele não fosse campeão da escola. Depois se perguntou se isto o incomodaria se fosse Cho que o convidasse.
Mas, de modo geral, Harry teve que admitir que, mesmo com a perspectiva constrangedora de abrir o baile dali a uns dias, a vida decididamente melhorara desde que ele cumprira a primeira tarefa.
Não atraía mais tantos comentários desagradáveis no corredor, no que ele suspeitava que havia dedo de Cedrico — tinha a impressão de que o campeão talvez tivesse dito ao pessoal da Lufa-Lufa para deixar Harry em paz, em gratidão pela dica que recebera sobre os dragões. Parecia haver menos “Apóie CEDRICO DIGGORY” pela escola, também. Draco Malfoy, naturalmente, continuava a citar o artigo de Rita Skeeter para ele sempre que encontrava oportunidade, mas cada dia arrancava menos risadas — e só para melhorar a sensação de bem-estar de Harry, não aparecera história alguma sobre Hagrid no Profeta Diário.
— Ela não parecia muito interessada em criaturas mágicas, para lhe dizer a verdade — contou Hagrid, quando Harry, Rony e Hermione lhe perguntaram como correra sua entrevista com a jornalista na última aula de Trato das Criaturas Mágicas do trimestre. Para grande alívio dos garotos, Hagrid desistira do contato direto com os explosivins, e os alunos tinham simplesmente se abrigado nos fundos da cabana, sentados a uma mesa de cavalete, para preparar uma seleção fresca de alimentos com os quais tentar os bichos.
— Ela só queria que eu falasse sobre você, Harry —, continuou Hagrid em voz baixa. — Bem, eu contei que somos amigos desde que fui buscá-lo na casa dos Dursley. “Nunca teve que ralhar com ele em quatro anos?", ela perguntou. "Nunca fez bagunça na sua aula?" Eu disse que não e parece que ela não gostou nem um pouco da resposta. Acho que queria que eu dissesse que você era uma dor de cabeça, Harry.
— Claro que queria — disse Harry, atirando pedaços de fígado de dragão numa grande tigela de metal e apanhando a faca para continuar a cortar. — Ela não pode continuar a escrever que sou um heroizinho trágico, vai acabar ficando chato.
— Ela quer um novo ângulo — comentou Rony sensatamente enquanto descascava ovos de salamandra. — Queria que você dissesse que Harry era um delinqüente doidão!
— Mas ele não é! — exclamou Hagrid parecendo sinceramente chocado.
— A Rita devia ter entrevistado Snape — disse Harry sério. — Ele teria dado o serviço completo sobre mim sem pestanejar. “Potter tem transgredido limites desde que chegou a esta escola...”
— Ele disse isso, foi? — perguntou Hagrid enquanto Rony e Hermione davam risadas. — Você pode ter atropelado algumas regras, Harry, mas sinceramente você é um bom menino, não é?
— Obrigado, Hagrid — disse Harry rindo.
— Você vai a esse tal baile no dia de Natal, Hagrid? — perguntou Rony.
— Pensei em dar uma passada lá — respondeu ele com impaciência. — Vai ser legal, acho. Você vai abrir o baile, não é, Harry? Quem é que você vai levar?
— Por enquanto ninguém — respondeu o garoto, sentindo que estava corando.
Hagrid não insistiu no assunto.
A última semana do trimestre foi ficando cada vez mais animada à medida que os dias passavam. Corriam boatos sobre o Baile de Inverno por todo lado, embora Harry não acreditasse nem na metade. Por exemplo, que Dumbledore comprara oitocentos barris de quentão de Madame Rosmerta. Mas parecia ser verdade que ele contratara as Esquisitonas. Exatamente quem ou o quê eram as Esquisitonas o garoto não sabia, pois nunca tivera acesso à rádio bruxa, mas deduzia, pela excitação gerada nos garotos que haviam crescido ouvindo a RRB (Rede Radiofônica dos Bruxos), que eram um famoso grupo musical.
Alguns professores, como o nanico Professor Flitwick, desistiram de tentar ensinar aos garotos alguma coisa quando suas cabecinhas estavam tão visivelmente longe dali, ele os deixou fazerem jogos durante a aula de quarta-feira, e passou a maior parte do tempo conversando com Harry sobre maneiras de aperfeiçoar o Feitiço Convocatório que ele usara durante a primeira tarefa do Torneio Tribruxo. Outros professores não foram tão generosos. Nada poderia jamais desviar o Professor Binns, por exemplo: continuou a dar as revoltas dos duendes — como Binns não permitira sequer que a própria morte o impedisse de continuar ensinando, os garotos supunham que uma bobagem feito o Natal não fosse perturbá-lo. Era espantoso como o professor conseguia fazer até as revoltas mais sangrentas e encarniçadas parecerem tão tediosas quanto o relatório de Percy sobre os fundos dos caldeirões.
Os professores McGonagall e Moody também fizeram os garotos trabalhar até o último segundo de aula, e quanto a Snape, seria mais fácil ele adotar Harry do que deixar seus alunos fazerem jogos durante a aula. Contemplando a turma com um ar malvado, informou-a de que aplicaria um teste sobre antídotos de venenos na última aula do trimestre.
— Perverso é o que ele é — disse Rony, com amargura, àquela noite na sala comunal da Grifinória. — Dar um teste no último dia. Estragar o finalzinho do trimestre com um monte de revisões.
— Hum... Mas não se pode dizer que você esteja se matando de estudar, não é? — comentou Hermione, olhando para o garoto por cima dos seus apontamentos sobre Poções. Rony estava entretido construindo um castelo de cartas com o baralho de Snap Explosivo, um passatempo muito mais interessante do que o que se faz com o baralho dos trouxas, dada a possibilidade da coisa toda explodir a qualquer instante.
— É Natal, Hermione — disse Harry cheio de preguiça, o garoto estava relendo Voando com os Cannons, pela décima vez, numa poltrona ao lado da lareira.
Hermione lhe lançou, também, um olhar severo.
— Pensei que você estaria fazendo alguma coisa construtiva, Harry, mesmo que não queira aprender os antídotos!
— Como o quê? — perguntou Harry, enquanto acompanhava Joey Jenkins dos Cannons rebater violentamente um balaço contra o artilheiro do Ballycastle Bats.
— Aquele ovo! — sibilou Hermione.
— Ah, vai, Hermione, tenho até o dia vinte e quatro de fevereiro — respondeu o garoto.
Harry guardara o ovo de ouro em seu malão no dormitório e não o abrira desde a festa de comemoração da primeira tarefa. Afinal, ainda faltavam dois meses até que lhe exigissem o significado daquele grito de agouro.
— Mas pode levar semanas para você chegar a uma conclusão! Você vai parecer um perfeito idiota se os outros campeões souberem a resposta para a próxima tarefa e você não.
— Deixa ele em paz, Mione, ele conquistou o direito de tirar uma folga — disse Rony enquanto colocava as duas últimas cartas no topo do castelo e a coisa toda explodia chamuscando suas sobrancelhas.
— Ficou legal, Rony... Vai combinar bem com as suas vestes a rigor, ah, isso vai. Eram Fred e Jorge. Sentaram-se à mesa com os três garotos enquanto Rony apalpava o rosto para avaliar o estrago.
— Rony, podemos pedir Pichitinho emprestado? — perguntou Jorge.
— Não, ele está fora entregando uma carta. Por quê?
— Porque Jorge quer convidar sua coruja para ir ao baile — disse Fred sarcasticamente.
— Porque nós gostaríamos de mandar uma carta, seu panacão — disse Jorge.
— Para quem é que você tanto escreve, hein? — perguntou Rony.
— Não mete o nariz, Rony, ou vou queimar ele para você, também — disse Fred, acenando a varinha num gesto de ameaça. — Então... Vocês já arranjaram par para o baile?
— Não — respondeu Rony.
— Então é melhor andarem depressa, companheiros, ou todas as garotas legais vão estar ocupadas — disse Fred.
— Com quem é que vocês vão, então?
— Angelina — disse Fred prontamente, sem o menor constrangimento.
— Quê? — disse Rony espantado. — Você já a convidou?
— Bem lembrado — disse Fred. E virando a cabeça gritou para o outro extremo da sala comunal: — Oi! Angelina!
Angelina, que estava conversando com Alicia Spinnet perto da lareira, olhou para o garoto.
— Que foi? — perguntou em resposta.
— Quer ir ao baile comigo?
Angelina lançou um olhar a Fred como se o avaliasse.
— Tudo bem — disse ela e tornou a se virar para Alicia para retomar a conversa, com um sorrisinho no rosto.
— Pronto — disse Fred a Harry e Rony —, moleza. Levantou-se, então, se espreguiçou e disse:
— É melhor usarmos uma coruja da escola, então, Jorge, vamos...
Os dois saíram. Rony parou de apalpar as sobrancelhas e olhou para Harry por cima dos restos fumegantes do seu castelo de cartas.
— A gente devia começar a se mexer, sabe... Convidar alguém. Ele tem razão. Não queremos acabar com um par de trasgos.
Hermione deixou escapar uma exclamação de indignação.
— Com licença... Um par do quê?
— Bom... Sabe — respondeu Rony, encolhendo os ombros —, eu prefiro ir sozinho do que com... Com Heloisa Midgeon, digamos.
— A acne dela melhorou à beça ultimamente, e ela é bem legal!
— Tem o nariz fora de esquadro.
— Ah, entendo — disse Hermione, encrespando. — Então, basicamente, você vai levar a garota mais bonita que aceitar você, mesmo que ela seja completamente intragável?
— Hum... É, é por aí — disse Rony.
— Eu vou dormir — retorquiu Hermione e saiu num repelão em direção à escada para o dormitório das garotas, sem dizer mais nada.
Os funcionários de Hogwarts, demonstrando um constante interesse em impressionar os visitantes de Beauxbatons e Durmstrang pareciam decididos a mostrar o castelo em sua melhor forma neste Natal.
Quando armaram as decorações, Harry reparou que eram as mais fantásticas que ele já vira no interior da escola. Pingentes de gelo perene tinham sido presos nos balaústres da escadaria de mármore, as doze árvores de Natal que sempre eram montadas no Salão Principal estavam enfeitadas com tudo, desde frutinhas vermelhas luminosas até corujas douradas vivas que piavam, e as armaduras tinham sido enfeitiçadas para cantar canções tradicionais de Natal quando alguém passasse por elas. Era impressionante ouvir "O vinde adoremos” cantado por um elmo vazio que só sabia metade da letra.
Várias vezes, Filch, o zelador, teve que retirar Pirraça de dentro da armadura, onde ele pegara a mania de se esconder, preenchendo as lacunas das canções com palavras de sua própria invenção, todas muito grosseiras.
E Harry ainda não convidara Cho para o baile. Ele e Rony estavam ficando muito nervosos agora, embora Harry lembrasse que o amigo pareceria muito menos idiota sem par do que ele, Harry teria que abrir o baile com os outros campeões.
— Imagino que sempre tem a Murta Que Geme — disse Harry desanimado, referindo-se ao fantasma que assombrava o banheiro das garotas no segundo andar.
— Harry, a gente só tem que cerrar os dentes e mandar ver — disse Rony na sexta-feira pela manhã, num tom que sugeria que os dois estavam planejando tomar de assalto uma fortaleza inexpugnável. — Quando voltarmos ao salão comunal hoje à noite, teremos arranjado dois pares, topa?
— Hum... OK — disse Harry.
Mas todas as vezes que ele viu Cho naquele dia — no intervalo das aulas, depois do almoço, e uma vez a caminho da aula de História da Magia — ela estava cercada de amigas. Será que a garota nunca ia a lugar algum sozinha? Será que ele talvez pudesse surpreendê-la quando estivesse entrando no banheiro?
Mas não, parecia até que ela entrava ali também com um séqüito de quatro ou cinco colegas. Contudo, se ele não a convidasse logo, quando o fizesse ela já teria sido convidada por outro.
Harry achou difícil se concentrar no teste de Snape sobre antídotos e, em conseqüência, esqueceu de acrescentar um ingrediente básico — o benzoar —, o que significou que recebeu uma nota baixa. Mas ele não se incomodou, estava ocupado demais reunindo coragem para o que pretendia fazer. Quando a sineta tocou, ele agarrou a mochila e correu para a porta da masmorra.
— Encontro vocês na hora do jantar — disse a Rony e Hermione, e saiu correndo escada acima. Teria que pedir a Cho uma palavrinha em particular, só isso... Assim, saiu apressado pelos corredores apinhados procurando a garota e encontrou-a (mais cedo do que esperava), saindo da aula de Defesa contra as Artes das Trevas.
— Hum... Cho? Posso dar uma palavrinha com você?
Risadinhas deviam ser proibidas por lei, pensou Harry furioso, quando as garotas à volta de Cho começaram a rir. Mas ela não. Respondeu:
— OK — e acompanhou-o até ficarem fora do alcance dos ouvidos das colegas. Harry virou-se para olhá-la e seu estômago afundou de um jeito esquisito, como se ele tivesse descido dois degraus de uma vez, sem querer.
— Hum — começou ele.
Não podia convidá-la. Não podia. Mas tinha que convidá-la.
Cho ficou parada ali com uma expressão intrigada, olhando para ele. As palavras saíram antes que Harry conseguisse tirar a língua do caminho.
— Quer ir ao baile comigo?
— Desculpe, não ouvi — disse Cho.
— Você quer... Você quer ir ao baile comigo? — disse Harry. Por que tinha que ficar vermelho justamente agora? Por quê?
— Ah! — exclamou Cho, corando também. — Ah, Harry, sinceramente sinto muito — e seu rosto parecia confirmar isso. — Eu já disse que iria com outro garoto.
— Ah — disse Harry.
Era estranho, um momento antes suas entranhas estavam revirando como cobras, mas de repente ele parecia não ter mais entranhas.
— Ah, OK, não faz mal.
— Sinto muito mesmo — repetiu a garota.
— Tudo bem.
Eles ficaram ali parados se olhando, então Cho disse:
— Bom...
— É — disse ele.
— Então, tchau — disse a garota ainda muito vermelha. E se afastou.
Harry chamou-a antes que pudesse se conter.
— Com quem é que você vai?
— Ah... Cedrico. Cedrico Diggory.
— Ah, certo.
As entranhas dele tinham voltado ao lugar. Pareciam ter-se enchido de chumbo durante a ausência. Esquecendo-se completamente do jantar, ele subiu devagarinho a escada para a Torre da Grifinória. A voz de Cho ecoava em seus ouvidos a cada passo. "Cedrico... Cedrico Diggory". Harry tinha até começado a gostar de Cedrico — se dispusera a esquecer o fato de que o garoto o derrotara no Quadribol, e era bonito e popular, e era praticamente o campeão favorito da escola. Agora, de repente, ele se dava conta de que Cedrico era na realidade um garoto bonito e inútil que não tinha cérebro suficiente para encher um oveiro.
— Luzes encantadas — disse secamente à Mulher Gorda, a senha fora trocada na véspera.
— Com certeza, meu querido! — chilreou ela, acertando a faixa de lantejoulas nos cabelos ao girar para a frente para admitir o garoto.
Ao entrar na sala comunal, Harry correu os olhos pelo aposento, e para sua surpresa, viu Rony sentado, de rosto branco, num canto distante. Gina estava ao seu lado conversando, aparentemente numa voz baixa de quem consola.
— Que aconteceu, Rony? — perguntou Harry se juntando aos dois.
Rony ergueu os olhos para Harry, uma expressão de horror no rosto.
— Por que fiz aquilo? — perguntou ele enlouquecido. — Não sei o que me obrigou a fazer aquilo!
— O quê?
— Ele... Hum... Convidou Fleur Delacour para ir ao baile — disse Gina. Parecia que estava fazendo força para não rir, mas continuou a dar palmadinhas no braço de Rony, demonstrando sua solidariedade.
— Você o quê?
— Não sei o que me obrigou a fazer aquilo! — exclamou Rony outra vez. — Quem é que eu estava fingindo que era? Havia gente, a toda volta, fiquei maluco, todo mundo olhando! Eu estava passando por ela no saguão de entrada, Fleur estava parada conversando com Diggory, e uma coisa parece que se apoderou de mim, e convidei!
Rony gemeu e enterrou o rosto nas mãos. Ele não parava de falar embora fosse difícil distinguir o que dizia.
— A garota olhou para mim como se eu fosse um verme ou coisa parecida.
Nem me respondeu. E então... Não sei... Parece que recuperei o juízo e me mandei dali.
— Ela é parte Veela — disse Harry. — Você tinha razão, a avó dela era Veela. Não foi sua culpa, aposto como você passou na hora em que ela estava jogando charme para Diggory e você foi atingido, mas ela está perdendo tempo. Ele vai levar Cho.
Rony levantou a cabeça.
— Eu acabei de convidá-la para ir comigo — disse Harry sem emoção —, e ela me contou.
Gina de repente parara de sorrir.
— Isso é uma piração — disse Rony —, somos os únicos que não têm ninguém, bem, tirando o Neville. Ei, adivinha quem ele convidou? Mione!
— Quê! — exclamou Harry, completamente distraído pela surpreendente notícia.
— É, eu sei! — disse Rony, um pouco de cor voltando ao seu rosto quando ele começou a rir. — Neville me contou depois da aula de Poções! Disse que ela sempre foi muito legal, que o ajudava nos estudos, mas Mione falou que já estava indo com alguém. Ah! Como se fosse! Ela só não queria ir com o Neville... Quero dizer, quem iria querer?
— Não! — disse Gina aborrecida. — Não ria...
Naquele instante Hermione vinha passando pelo buraco do retrato.
— Por que vocês dois não foram jantar? — perguntou ela, vindo se reunir ao grupo.
— Por que... Ah, parem de rir, vocês dois... Porque as garotas que eles convidaram acabaram de recusar o convite! — disse Gina.
Isso fez os dois calarem a boca.
— Obrigado, Gina — disse Rony azedo.
— Todas as garotas bonitas já estão ocupadas, Rony? — perguntou Hermione com um ar superior. — A Heloisa Midgen está começando a parecer bem bonita, agora, não está não? Bem, tenho certeza de que vocês vão encontrar em algum lugar alguém que queira vocês.
Mas Rony estava encarando Hermione como se, de repente, a visse sob uma luz totalmente nova.
— Hermione, Neville tem razão, você é uma garota...
— Bem observado — respondeu ela com azedume.
— Então... Você poderia acompanhar um de nós!
— Não, não poderia — retorquiu Hermione.
— Ah, vai — disse ele impaciente —, precisamos de pares, vamos fazer um papel realmente idiota se não tivermos nenhum, todos os outros têm...
— Não posso ir com vocês — disse Hermione, agora corando —, porque já estou indo com uma pessoa.
— Não, não está! — disse Rony. — Você só disse isso para se livrar de Neville!
— Ah, foi? — Os olhos de Hermione faiscaram perigosamente. — Só porque você levou três anos para reparar, Rony, não significa que mais ninguém tenha percebido que eu sou uma garota!
Rony arregalou os olhos para ela. Depois tornou a sorrir.
— OK, OK, sabemos que você é uma garota. Satisfeita? Você vai com a gente agora?
— Eu já falei! — disse Hermione muito zangada. — Estou indo com outra pessoa!
E saiu decidida em direção à escada para o dormitório das garotas.
— Ela está mentindo — sentenciou Rony, acompanhando-a com o olhar.
— Não está não — disse Gina baixinho.
— Quem é a pessoa, então?
— Não vou dizer, não é da sua conta.
— Certo — disse ele, que parecia ofendido —, essa história está ficando idiota. Gina você pode ir com o Harry e eu vou...
— Não posso — respondeu Gina, e ela ficou vermelha também.
— Estou indo com... Com Neville. Ele me convidou quando Hermione disse não e eu achei... Bem... De outro jeito eu não poderia ir, não estou no quarto ano. — Ela parecia infelicíssima. — Acho que vou descer para jantar — e dizendo isso, se levantou e saiu pelo buraco do retrato, de cabeça baixa.
Rony ficou olhando abobado para Harry.
— Que será que deu nelas? — perguntou.
Mas Harry acabara de ver Parvati e Lilá entrando pelo buraco do retrato.
Chegara a hora de tomar atitudes drásticas.
— Espere aqui — disse ele a Rony, se levantou, saiu numa linha reta até Parvati e disse:
— Parvati? Quer ir ao baile comigo?
Parvati teve um acesso de risinhos. Harry esperou que ela terminasse, os dedos cruzados dentro do bolso das vestes.
— Tudo bem — disse por fim a garota, corando furiosamente.
— Obrigado — disse Harry, aliviado. — Lilá, você quer ir com o Rony?
— Ela vai com o Simas — respondeu Parvati e as duas tiveram outro acesso de risinhos ainda mais forte.
Harry suspirou.
— Sabem de alguém que pudesse ir com o Rony? — disse ele, baixando a voz de modo que o amigo não o ouvisse.
— Que tal a Hermione Granger? — sugeriu Parvati.
— Ela está indo com outra pessoa.
A garota fez cara de espanto.
— Aaaah... Quem? — perguntou interessada.
Harry encolheu os ombros.
— Não faço idéia. Então, e o Rony?
— Bem... — disse Parvati lentamente. — Imagino que minha irmã talvez... Padma, sabe... Da Corvinal. Eu pergunto a ela se você quiser.
— Quero, seria ótimo. Me avisa, está bem?
E ele voltou para onde Rony estava, com a sensação de que esse tal baile dava muito mais trabalho do que merecia, e desejou que o nariz de Padma Patil fosse bem centrado no rosto.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
O Baile de Inverno
Apesar da pesada carga de deveres de casa que os alunos do quarto ano tinham recebido para as férias, Harry não estava com a menor vontade de estudar quando o trimestre terminou, e passou a semana que antecedeu o Natal divertindo-se o máximo possível como todos os outros alunos. A Torre da Grifinória não parecia mais vazia agora do que estivera durante o tempo de aulas, parecia até ter encolhido ligeiramente, porque seus moradores estavam muito mais barulhentos do que o normal.
Fred e Jorge fizeram grande sucesso com os seus Cremes de Canário e, nos primeiros dois dias de férias, as pessoas não paravam de explodir em penas por todo o lado. Não tardou muito, porém, todos os alunos da Grifinória aprenderam a olhar a comida que outras pessoas ofereciam com extrema cautela, para a eventualidade de ter Creme de Canário escondido no meio e Jorge confidenciou a Harry que ele e Fred agora estavam trabalhando em outra invenção.
Harry fez uma anotação mental para, no futuro, jamais aceitar sequer uma batata frita de Fred e Jorge. Ele ainda não esquecera Duda e o Caramelo Incha- Língua.
Caía muita neve sobre o castelo e seus terrenos agora. A carruagem azul clara da Beauxbatons parecia uma enorme abóbora coberta de gelo ao lado da casinha de bolo glaçado que era a cabana de Hagrid, enquanto as escotilhas do navio de Durmstrang estavam foscas e o cordame branco de gelo. Os elfos domésticos na cozinha se desdobravam para preparar pratos nutritivos, ensopados que aqueciam e sobremesas deliciosas, e somente Fleur Delacor parecia ser capaz de encontrar de que reclamar.
— É pesada demais, essa comida de Hogwarts — ouviram-na reclamar mal-humorada, quando, certa noite, deixavam a Salão Principal atrás dela (Rony escondendo-se atrás de Harry, cuidando para não ser visto por Fleur). — Não vou caberr nas minhas vestes de baile!
— Aaah, mas que tragédia — comentou Hermione na hora em que Fleur ia chegando ao saguão de entrada. — Ela realmente se acha muito importante, essa aí, não é?
— Hermione, com quem você vai ao baile? — perguntou Rony.
O garoto não parava de assediá-la com essa pergunta, na esperança de fazê-la responder sem querer ao ser perguntada quando menos esperasse. No entanto, Hermione meramente franzia a testa e dizia:
— Não vou lhe contar porque você iria caçoar de mim.
— Você está brincando, Weasley? — disse Malfoy às costas deles. — Você está dizendo que alguém convidou isso para ir ao baile? Não foi o sangue-ruim de molares compridos, foi?
Harry e Rony se viraram na mesma hora, mas Hermione disse em voz alta, acenando para alguém por cima do ombro de Malfoy:
— Olá, Professor Moody!
Malfoy ficou pálido e pulou para trás, procurando Moody com um olhar alucinado, mas o professor ainda estava à mesa, terminando seu ensopado.
— Que doninha nervosinha você é, hein? — comentou Hermione demonstrando desprezo, e ela, Rony e Harry subiram a escadaria de mármore dando boas risadas.
— Hermione — disse Rony, olhando para ela de esguelha e, de repente, franzindo a testa —, os seus dentes...
— Que têm eles?
— Bem, estão diferentes... Acabei de notar...
— Claro que estão, você esperava que eu ficasse com aquelas presas que Malfoy me deu?
— Não, quero dizer, eles estão diferentes do que eram antes de ele lançar o feitiço em você... Estão... Retos e... Do tamanho normal.
Hermione de repente sorriu muito travessamente, e Harry também reparou: Era um sorriso diferente do que ele lembrava.
— Bem... Quando fui procurar Madame Pomfrey para consertar os dentes, ela segurou um espelho e me disse para mandar ela parar quando os dentes voltassem ao tamanho normal. E eu deixei ela demorar um pouco mais. -Hermione deu um sorriso ainda maior.
— Papai e mamãe não vão ficar muito satisfeitos. Estou tentando convencer os dois a me deixar reduzir os dentes há séculos, mas eles queriam que eu continuasse com o aparelho. Sabe, eles são dentistas, daí acharem que dentes e magia não devem... Olhem lá! Pichitinho voltou!
A corujinha de Rony piava feito louca no alto da balaustrada enfeitada de pingentes de gelo, um rolo de pergaminho amarrado à perna. As pessoas que passavam apontavam e riam, e um grupo de alunas do terceiro ano parou para comentar: "Ah, olha só que corujinha mínima! Não é uma gracinha?”
— Seu penoso babaca! — sibilou Rony correndo escada acima e agarrando Pichitinho. — Você entrega as cartas direto ao destinatário! Não fica por aí se exibindo! — Pichitinho piou alegremente, a cabeça espichando por cima da mão fechada de Rony. As garotas do terceiro ano pareceram muito chocadas.
— Caiam fora! — disse Rony rispidamente, sacudindo a mão que segurava a coruja, que piou ainda mais alegremente ao sair voando pelos ares. — Aqui, toma, Harry — acrescentou Rony em voz baixa, enquanto as garotas saíam correndo com o ar escandalizado. Ele puxou a resposta da perna de Pichitinho, Harry embolsou-a e os três correram a lê-la na Torre da Grifinória.
Todos na sala comunal estavam demasiado ocupados extravasando a agitação das férias para observar o que alguém mais estivesse fazendo. Harry, Rony e Hermione se sentaram afastados dos colegas, junto a uma janela escura que lentamente se cobria de neve e Harry leu em voz alta.
“Caro Harry,
Parabéns por conseguir passar pelo Rabo-Córneo, quem pôs o seu nome naquele cálice não deve estar se sentindo muito feliz no momento! Eu ia sugerir um Feitiço Conjunctivitus, porque os olhos do dragão são o seu ponto mais fraco...
— Foi o que Krum usou! — murmurou Hermione.
Mas do seu jeito foi melhor, estou impressionado.
Porém, não fique se sentindo muito satisfeito consigo mesmo, Harry. Você só deu conta de uma tarefa, quem o inscreveu no torneio vai ter muitas outras oportunidades se quer realmente lhe fazer mal.
Mantenha os olhos abertos — particularmente quando a pessoa de quem já falamos estiver por perto — e se concentre em não se meter em confusões.
Mande notícias, contínuo querendo saber de qualquer coisa anormal.
Sirius”.
— Ele está falando exatamente a mesma coisa que Moody — disse Harry em voz baixa, guardando a carta dentro das vestes. — "Vigilância constante!" Parece até que eu ando por aí com os olhos fechados, ricocheteando nas paredes...
— Mas ele tem razão, Harry — disse Hermione —, você ainda tem duas tarefas a cumprir. Devia realmente dar uma olhada naquele ovo, sabe, e começar a estudar o que significa...
— Hermione, ainda faltam séculos! — disse Rony com rispidez. — Quer jogar uma partida de xadrez, Harry?
— OK — disse Harry. Depois, vendo a expressão de Hermione. — Vamos, como é que vou me concentrar nessa barulheira? Não vou conseguir nem ouvir o ovo com essa turma berrando.
— Ah, imagino que não — suspirou ela, se sentando para assistir à partida, que terminou num excitante xeque-mate de Rony, envolvendo dois peões corajosos, mas imprudentes e um bispo muito violento.
Harry acordou, de repente, na manhã de Natal. Imaginando o que teria causado o seu abrupto retorno à consciência, ele abriu os olhos e viu uma coisa de olhos muito grandes, verdes e redondos que o encarava na escuridão, tão próximo que a coisa e ele estavam quase nariz contra nariz.
— Dobby!— berrou Harry, afastando-se do elfo tão depressa que quase caiu da cama. — Não faz isso!
— Dobby sente muito, meu senhor! — esganiçou-se o elfo com a voz cheia de ansiedade, saltando pra trás com os longos dedos cobrindo a boca. — Dobby só está querendo desejar a Harry Potter "Feliz Natal" e lhe trazer um presente, meu senhor! Harry Potter disse que Dobby podia vir vê-lo um dia desses, meu senhor!
— Tudo bem — disse Harry, ainda respirando muito acelerado, enquanto seu coração voltava ao normal. — Da próxima vez é só me cutucar ou outra coisa assim, não se debruça sobre mim desse jeito...
Harry afastou as cortinas da cama, apanhou os óculos na mesa de cabeceira e colocou-os. Seu berro acordara Rony, Simas, Dino e Neville. Os quatro estavam espiando entre as cortinas de suas camas, as pálpebras pesadas e os cabelos desmanchados.
— Alguém está atacando você, Harry? — perguntou Simas sonolento.
— Não, é só o Dobby — resmungou Harry. — Pode voltar a dormir.
— Ah... Presentes! — exclamou Simas, vendo a montanha aos pés de sua cama.
Rony, Dino e Neville resolveram que, uma vez que estavam acordados, era melhor começarem a abrir os presentes, também. Harry se voltou para Dobby, que agora estava de pé, nervoso, ao lado de sua cama, ainda com o ar preocupado por ter perturbado o garoto. Havia um enfeite de Natal preso à argola do seu abafador.
— Dobby pode dar o presente dele a Harry Potter? — perguntou ele hesitante.
— Claro que pode. Hum... Também tenho uma coisinha para você.
Era mentira; não comprara nada para Dobby, mas abriu depressa o seu malão e tirou um par de meias enrolado, e particularmente cheias de bolotinhas.
Eram suas meias mais velhas e piores, amarelo-mostarda e, tempos atrás, tinham pertencido ao tio Válter. A razão por que estavam tão emboloradas é que Harry as usava para embrulhar o bisbilhoscópio. Ele desembrulhou o objeto e entregou as meias a Dobby, dizendo:
— Desculpe, me esqueci de embrulhar...
Mas Dobby ficou absolutamente encantado.
— As meias são as peças favoritas, favoritas mesmo, de Dobby, meu senhor! — disse o elfo rasgando as meias velhas que calçava e pondo as do tio Válter.
— Agora tenho sete, meu senhor... Mas, meu senhor... — disse ele arregalando os olhos, depois de puxar as meias até onde pôde, de modo que elas chegaram à bainha dos seus shorts — eles se enganaram na loja, Harry Potter, lhe venderam duas meias iguais!
— Ah, não, Harry, como foi que você não viu isso! — exclamou Rony, rindo lá de sua cama, que agora estava juncada de papel de embrulho. — Vou dizer o que vou fazer, Dobby, aqui, tome mais duas e você pode combiná-las como deve ser. E aqui está seu suéter.
O garoto atirou para Dobby um par de meias roxas que acabara de desembrulhar e o suéter tricotado à mão que a Sra. Weasley lhe mandara.
Dobby não coube em si de contentamento.
— Meu senhor, o senhor é muito bondoso! — guinchou ele com os olhos transbordantes de lágrimas, fazendo profundas reverências para Rony. — Dobby sabia que o senhor devia ser um grande bruxo, porque é o maior amigo de Harry Potter, mas Dobby não sabia que também era tão grande em generosidade de alma, tão nobre, tão sem egoísmo...
— São apenas meias — disse Rony, cujas orelhas coraram ligeiramente, embora ele parecesse muito satisfeito. — Uau, Harry — ele acabara de abrir o presente de Harry, um boné do Chudley Cannon. — Maneiro! — Enfiou o boné na cabeça, onde a cor se chocou violentamente com os seus cabelos.
Dobby em seguida entregou um pacotinho a Harry, que continha nada menos que... Meias.
— Dobby fez elas com as próprias mãos, meu senhor! — disse o elfo alegremente. — Comprou a lã com o ordenado dele, meu senhor!
A meia esquerda era vermelho-berrante e tinha uns desenhos de vassouras, a direita era verde, com um desenho de nós.
— Elas são... Elas são realmente... Ah, muito obrigado, Dobby — disse Harry e calçou-as, fazendo os olhos de Dobby marejarem novamente de felicidade.
— Dobby precisa ir agora, meu senhor, já estamos preparando o almoço de Natal na cozinha! — E saiu apressado do dormitório, acenando um adeus para Rony e os outros garotos ao passar.
Os outros presentes de Harry foram muito mais satisfatórios do que as meias desparelhadas de Dobby — com exceção óbvia do presente dos Dursley, que consistia em uma única folha de papel absorvente, o mais pobre que já recebera, Harry supôs que eles, também, deviam estar se lembrando do Caramelo Incha-Língua.
Hermione dera a Harry um livro intitulado Os Times de Quadribol da Grã-Bretanha e da Irlanda, Rony, uma grande sacola de bombas de bosta, Sirius, um canivete maneiro com acessórios para abrir qualquer porta e desfazer qualquer nó e Hagrid, uma enorme caixa de doces com todos os que Harry mais gostava — Feijõezinhos de Todos os Sabores Bertie Botts, Sapos de Chocolate, Chicles de Baba-Bola e Delícias Gasosas. Ganhara, também, é claro, o pacote habitual da Sra. Weasley, incluindo um novo suéter (verde com a estampa de um dragão — Harry imaginou que Carlinhos lhe contara tudo sobre o Rabo-Córneo) e uma grande quantidade de tortas caseiras de frutas secas.
Harry e Rony se encontraram com Hermione na sala comunal e desceram juntos para tomar o café da manhã. Os três passaram a maior parte da manhã na Torre da Grifinória, onde todos se divertiam com os presentes recebidos, depois voltaram ao Salão Principal para um almoço magnífico, que incluía no mínimo uns cem perus e pudins de Natal e montanhas de Bolachas Mágicas de Cribbage.
Os garotos saíram para os jardins à tarde, a neve estava intocada, exceto pelas valas fundas feitas pelos estudantes de Durmstrang e Beauxbatons a caminho do castelo. Hermione preferiu assistir à batalha de bolas de neve de Harry com os Weasley, em vez de tomar parte nela e, às cinco horas, disse que ia subir para se preparar para o baile.
— Quê, você precisa de três horas? — perguntou Rony, olhando para ela incrédulo e pagando por esse lapso de concentração: uma enorme bola, atirada por Jorge, atingiu-o com força do lado da cabeça. — Com quem é que você vai? — gritou ele para Hermione, mas a garota apenas acenou e desapareceu pela escada de acesso ao castelo.
Não houve o chá de Natal àquela tarde porque o baile incluía um banquete, de modo que às sete horas, quando ficou difícil fazer pontaria direito, os garotos abandonaram a batalha de bolas de neve e marcharam de volta ao salão comunal.
A Mulher Gorda estava sentada em sua moldura com a amiga Violeta do andar de baixo, as duas extremamente tontas, caixas vazias de bombons recheados de licor amontoadas sob o quadro.
— Lutas de Covil é isso aí! — riu-se ela quando os garotos disseram a senha, e ela girou o quadro para frente para deixá-los passar.
Harry, Rony, Simas, Dino e Neville trocaram a roupa por vestes a rigor no dormitório, todos se sentindo muito constrangidos, mas nenhum tanto quanto Rony, que se examinou no comprido espelho a um canto, com cara de desgosto.
Não havia como contornar o fato de que as vestes dele pareciam mais um vestido do que qualquer outra coisa. Numa tentativa desesperada de fazê-las parecer mais masculinas, ele usou um Feitiço de Corte nos babados do decote e das mangas. Funcionou bastante bem, pelo menos se livrara das rendas, embora não tivesse feito um trabalho muito caprichado, e as barras ainda parecessem lastimavelmente esfiapadas quando eles desceram.
— Eu ainda não consigo entender como foi que vocês dois ficaram com as garotas mais bonitas do ano — murmurou Dino.
— Magnetismo animal — disse Rony deprimido, puxando fiapos das bainhas dos punhos.
O salão comunal estava com um ar estranho, cheio de gente usando diferentes cores em lugar da massa negra de sempre. Parvati esperava Harry ao pé da escada. Estava realmente muito bonita, com vestes rosa-choque, sua longa trança negra entrelaçada com ouro e pulseiras de ouro reluzindo nos braços.
Harry se sentiu aliviado de ver que ela não estava dando risadinhas.
— Você... Hum... Está bonita — disse ele sem jeito.
— Obrigada. Padma vai se encontrar com você no saguão de entrada — acrescentou para Rony.
— Certo — disse Rony, olhando à volta. — Cadê Hermione?
Parvati deu de ombros.
— Vamos descer, então, Harry?
— OK — concordou o menino, desejando poder continuar no salão comunal.
Fred piscou para ele ao passar pelo buraco do retrato.
O saguão de entrada também estava apinhado de estudantes, todos andando por ali à espera de que dessem oito horas, quando as portas para o Salão Principal seriam abertas. As pessoas que iam encontrar pares de outras Casas procuravam atravessar a aglomeração, tentando localizar uns aos outros.
Parvati encontrou a irmã Padma e levou-a até Harry e Rony.
— Oi — cumprimentou Padma, que estava tão bonita quanto Parvati, de vestes turquesa-forte. Mas não parecia muito entusiasmada com a idéia de ter Rony como par, seus olhos escuros se demoraram nas mangas e no decote esfiapados das vestes do garoto quando o examinou de alto a baixo.
— Oi — disse Rony sem olhar para ela, mas espiando os convidados. — Ah, não...
Ele dobrou ligeiramente os joelhos para se esconder atrás de Harry, porque Fleur Delacour ia passando, absolutamente fantástica com suas vestes de cetim cinza-prateado, acompanhada pelo capitão do time de Quadribol da Corvinal, Rogério Davies. Quando os dois desapareceram, Rony se endireitou e ficou examinando as cabeças das pessoas que estavam de costas.
— Cadê a Hermione? — indagou outra vez.
Um grupo de alunos da Sonserina vinha subindo as escadas do seu salão comunal na masmorra.
Malfoy à frente; usava vestes de veludo negro com a gola alta, que na opinião de Harry o faziam parecer um padre. Pansy Parkinson estava agarrada ao braço de Malfoy, com vestes rosa-claro cheias de babadinhos. Crabbe e Goyle vinham de verde, pareciam pedregulhos cobertos de limo e nenhum dos dois, Harry ficou satisfeito de constatar, conseguira encontrar um par.
As portas de carvalho da entrada se abriram e todos se viraram para olhar os alunos de Durmstrang entrarem com o Professor Karkaroff. Krum vinha à frente da delegação, acompanhado por uma garota bonita, de vestes azuis, que Harry não conhecia.
Por cima das cabeças do grupo, ele viu que a área do gramado logo à entrada do castelo fora transformada em uma espécie de gruta cheia de luzes encantadas — ou seja, centenas de fadinhas vivas encontravam-se sentadas nas roseiras que tinham sido conjuradas ali e esvoaçavam sobre as estátuas que pareciam representar Papai Noel e suas renas.
Então a voz da Professora Minerva McGonagall chamou:
— Campeões aqui, por favor!
Parvati ajeitou as franjas, sorridente, ela e Harry disseram "Vemos vocês daqui a pouco", para Rony e Padma, e se adiantaram, a aglomeração de pessoas que conversavam se abriu para deixá-los passar. A professora, que trajava vestes a rigor de tartan vermelho, e enfeitara a aba do chapéu com uma guirlanda bem feiosa de cardos — a flor nacional da Escócia —, mandou-os esperar a um lado das portas, enquanto os demais entravam. Eles deviam entrar no Salão Principal em cortejo, quando os outros estudantes se sentassem. Fleur Delacour e Rogério Davies pararam mais próximos às portas. Davies parecia tão aturdido com a sua sorte de ter Fleur como par que mal conseguia desgrudar os olhos dela.
Cedrico e Cho ficaram ao lado de Harry, o garoto desviou o olhar para não precisar conversar com eles. Em lugar disso, seu olhar recaiu sobre a garota ao lado de Krum. Seu queixo caiu.
Era Hermione.
Mas ela não parecia nadinha com a Hermione. Fizera alguma coisa com os cabelos, não estavam mais lanzudos, mas lisos e brilhantes e enrolados num elegante nó na nuca. Estava usando vestes feitas de um tecido etéreo azul-pervinca, e tinha uma postura um tanto diferente — ou talvez fosse meramente a ausência dos vinte e tantos livros que ela normalmente carregava às costas. E sorria — um sorriso um pouco nervoso, era verdade — mas a redução no tamanho dos dentes da frente era mais visível que nunca.
Harry não conseguia compreender como não a vira antes.
— Oi, Harry! — disse ela. — Oi, Parvati!
Parvati mirava Hermione com depreciativa incredulidade. E não era a única, tampouco, quando as portas do Salão Principal se abriram, o fã-clube de Krum que fazia ponto na biblioteca passou, lançando a Hermione olhares de profundo desprezo. Pansy Parkinson boquiabriu-se ao passar com Malfoy, e mesmo ele não pareceu capaz de encontrar uma ofensa para atirar a Hermione. Rony, porém, passou direto por ela sem sequer olhar.
Depois que estavam todos sentados no salão, a Professora Minerva mandou os campeões e seus pares formarem um cortejo, de dois em dois, e a seguiram. Os garotos obedeceram e todos no salão aplaudiram, quando eles entraram e se dirigiram a uma grande mesa redonda no fundo do salão, onde estavam sentados os juizes.
As paredes do salão estavam cobertas de gelo prateado e cintilante, com centenas de guirlandas de visco e azevinho cruzando o teto escuro salpicado de estrelas.
As mesas das Casas haviam desaparecido; em lugar delas havia umas cem mesinhas iluminadas com lanternas, que acomodavam, cada uma, doze pessoas.
Harry se concentrou em não tropeçar nos próprios pés. Parvati parecia estar se divertindo, sorria radiante para todos, conduzindo Harry com tanta firmeza que ele teve a sensação de que era um cachorrinho de concurso que ela estava ensinando a desfilar. Ele avistou Rony e Padma ao se aproximar da mesa principal. Rony observava Hermione passar com os olhos apertados. Padma parecia chateada.
Dumbledore sorriu feliz quando os campeões se aproximaram da mesa principal, mas Karkaroff tinha uma expressão parecidíssima com a de Rony ao ver Krum e Hermione se aproximarem.
Ludo Bagman, esta noite de vestes roxo-berrante, com grandes estrelas amarelas, batia palmas com tanto entusiasmo quanto qualquer estudante e Madame Maxime, que trocara o uniforme costumeiro de cetim negro por um vestido rodado de seda lilás, os aplaudia educadamente. Mas o Sr. Crouch, Harry percebeu de súbito, não estava presente. A quinta cadeira à mesa estava ocupada por Percy Weasley.
Quando os campeões e seus pares chegaram à mesa, Percy puxou uma cadeira vazia ao seu lado, olhando significativamente para Harry. Harry entendeu a deixa e se sentou ao lado do garoto, que trajava vestes a rigor azul-marinho, novíssimas, e exibia uma expressão de grande presunção.
— Fui promovido — disse Percy, antes mesmo que Harry lhe perguntasse e, pelo seu tom, parecia estar anunciando sua eleição para Supremo Dirigente do Universo. — Agora sou assistente pessoal do Sr. Crouch, e estou aqui para representá-lo.
— Por que é que ele não veio? — perguntou Harry. Não se sentia nada ansioso para passar o jantar ouvindo uma aula sobre o fundo dos caldeirões.
— Receio que o Sr. Crouch não esteja passando bem, nada bem. Não tem estado bem desde a Copa Mundial. O que não chega a surpreender, excesso de trabalho. Já não é tão jovem quanto era, embora continue genial, é claro, a cabeça continua brilhante como sempre foi. Mas a Copa Mundial foi um fiasco para todo o Ministério, e depois, o Sr. Crouch sofreu um grande choque pessoal com o mau comportamento do seu elfo doméstico, Blinky, ou sei lá que nome tinha. Naturalmente ele a dispensou em seguida, mas, bem, como disse, meu chefe está ficando velho, precisa de alguém para cuidar dele, e acho que seu conforto em casa sofreu um decidido baque desde que o elfo foi embora. Depois, então, tivemos que organizar o torneio, e o rescaldo da Copa Mundial para resolver, aquela nojenta da Skeeter xeretando por toda parte, não, coitado, ele está passando um tranqüilo e merecido Natal. Só fico satisfeito por ele saber que tem alguém de confiança para substituí-lo.
Harry teve muita vontade de perguntar se o Sr. Crouch já parara de chamar Percy de "Wearherby", mas resistiu à tentação. Ainda não havia comida nas travessas de ouro, apenas pequenos menus diante de cada conviva. Harry apanhou o dele hesitante e espiou para os lados — não havia garçons.
Dumbledore, no entanto, examinou atentamente o próprio menu, depois ordenou muito claramente ao seu prato:
— Costeletas de porco!
E as costeletas de porco apareceram. Entendendo a idéia, os demais ocupantes da mesa também fizeram os pedidos aos seus pratos. Harry olhou para Hermione a ver o que ela achava desse novo e complicado método de jantar — certamente significava muito mais trabalho para os elfos domésticos! —, mas, ao menos uma vez na vida, Hermione não parecia estar pensando no F.A.L.E. Estava profundamente absorta conversando com Vítor Krum e parecia nem notar o que estava comendo.
Agora ocorria a Harry que ele nunca chegara a ouvir Krum falar antes, mas sem dúvida o garoto estava falando agora e, pelo visto, com muito entusiasmo.
— Pom, temos um castelo também, non é ton grrande quanto este, nem ton conforrtável, acho — ia ele dizendo a Hermione. — Temos só quatro andarres, e as larreirras só são acesas parra finalidades mágicas. Mas a prroprriedade em que ecstá a escola é ainda maiorr do que esta, emborra no inverrno a gente tenha muito pouca luz solarr, porr isso não aprroveitamos muito os jarrdins. Mas no verrão todo o dia sobrrevoamos os lagos e montanhas...
— Ora, ora, Vítor! — disse Karkaroff, com uma risada que não se estendeu aos seus olhos frios. — Não vá contar mais nada, agora, ou a nossa encantadora amiga vai saber exatamente onde nos encontrar!
Dumbledore sorriu, seus olhos cintilando.
— Igor, tanto segredo... A pessoa poderia até pensar que você não quer visitas.
— Bom, Dumbledore — disse Karkaroff, mostrando os dentes amarelos —, todos protegemos os nossos domínios, não? Todos não guardamos zelosamente os templos de saber que nos foram confiados? Não estamos certos em nos orgulhar de que somente nós conhecemos os segredos de nossas escolas, e, mais uma vez, certos em protegê-las?
— Ah, eu nunca sonharia em presumir que conheço todos os segredos de Hogwarts, Igor — disse Dumbledore amigavelmente. — Ainda hoje de manhã, por exemplo, a caminho do banheiro, virei para o lado errado e me vi em um aposento de belas proporções que eu nunca vira antes, e que continha uma coleção realmente magnífica de penicos. Quando voltei para investigá-lo mais de perto, descobri que o aposento desaparecera. Mas preciso ficar atento para reencontrá-lo. É possível que só esteja acessível às cinco e meia da manhã. Ou talvez só apareça com a lua em quartil ou quando quem procura está com a bexiga excepcionalmente cheia.
Harry riu para dentro do prato de gulache. Percy franziu a testa, mas Harry poderia jurar que Dumbledore lhe dera uma piscadela quase imperceptível.
Entrementes, Fleur Delacour criticava as decorações de Hogwarts com Rogério Davies.
— Isse non é nada — disse ela contemplando as paredes cintilantes do Salão Principal com ar de pouco caso. — No Palace de Beauxbatons, tems esculturres de gelo em volta da sala de jantarr no Natall. Eles não derretem, é clarro... parrecem enorrmes estátues de diamante, faiscande pela sala. E a comida é simplesman superrbe. E temes corres de ninfes das mates, cantando serrenatas enquanto comemes. Não temes essas armadurras feies nos corrredorres e se um dia um polterrgeisr entrrasse em Beauxbatons, serria expulso assim. — E ela bateu a mão com impaciência na mesa.
Rogério Davies observava a garota falar com uma expressão aturdida no rosto e a toda hora errava ao levar o garfo à boca. Harry teve a impressão de que o garoto estava ocupado demais admirando Fleur para escutar uma única palavra do que ela dizia.
— Absolutamente certa — disse ele depressa, batendo com a própria mão na mesa como fizera Fleur. — Assim. É claro.
Harry correu os olhos pelo salão. Hagrid estava sentado a uma das mesas reservadas aos professores, voltara a vestir o seu horrível terno peludo marrom, e tinha os olhos fixos na mesa principal.
Harry o viu dar um discreto aceno e, ao olhar para os lados, viu Madame Maxime retribuir o aceno, suas opalas faiscando à luz das velas. Hermione agora ensinava Krum a pronunciar seu nome corretamente; ele não parava de chamá-la de Hermy-on.
— Her-mi-o-ne — dizia ela lenta e claramente.
— Herm-on-nini.
— Está bastante parecido — disse ela, encontrando os olhos de Harry e sorrindo.
Quando toda a comida fora consumida, Dumbledore se levantou e pediu aos estudantes que fizessem o mesmo. Então, a um aceno de sua varinha, as mesas se encostaram às paredes, deixando o salão vazio, em seguida ele conjurou uma plataforma ao longo da parede direita. Sobre ela foram colocados uma bateria, alguns violões, um alaúde, um violoncelo e algumas gaitas de foles.
As Esquisitonas subiram, então, no palco sob aplausos delirantemente entusiásticos, eram todas extremamente cabeludas, trajavam vestes negras que haviam sido artisticamente rasgadas. Apanharam seus instrumentos e Harry, que estivera tão interessado em observá-las que quase esqueceu o que viria a seguir, de repente percebeu que as lanternas de todas as outras mesas tinham se apagado e que os outros campeões e seus pares estavam em pé.
— Anda! — sibilou Parvati. — Temos que dançar!
Harry tropeçou nas vestes ao se levantar. As Esquisitonas tocaram uma música lenta e triste, Harry entrou na pista de dança bem iluminada, evitando cuidadosamente o olhar dos colegas (ele viu Simas e Dino acenarem para ele entre risinhos), e no momento seguinte, Parvati agarrara suas mãos, colocara uma em torno da própria cintura e segurava a outra na dela. Não foi tão mal como poderia ter sido, pensou Harry, girando lentamente no mesmo lugar (Parvati o conduzia). Mantinha os olhos fixos sobre as cabeças das pessoas que assistiam, mas dali a pouco muitas delas também vieram para a pista de dança, de modo que os campeões deixaram de ser o centro das atenções. Neville e Gina dançavam próximos a ele — Harry via Gina fazer freqüentes caretas sempre que Neville pisava seus pés — e Dumbledore valsava com Madame Maxime. Ficava tão pequeno junto a ela que a ponta do seu chapéu cônico mal roçava o queixo da bruxa, no entanto, Madame Máxime se movia graciosamente para uma mulher daquele tamanho.
Olho-Tonto Moody estava seguindo um compasso de dois tempos extremamente desajeitado com a Professora Sinistra, que nervosamente evitava a perna de madeira do seu par.
— Belas meias, Potter — rosnou Moody ao passar, seu olho mágico espiando através das vestes de Harry.
— Ah... São, Dobby, o elfo doméstico, tricotou-as para mim — disse Harry, sorrindo.
— Ele dá arrepios! — sussurrou Parvati, quando Moody se afastou batendo a perna de pau. — Acho que não deviam permitir aquele olho dele!
Harry ouviu a última nota trêmula da gaita de foles com alívio. As Esquisitonas pararam de tocar, os aplausos encheram mais uma vez o Salão Principal e Harry soltou Parvati.
— Vamos sentar um pouco?
— Ah... Mas... Agora vem uma realmente boa! — disse Parvati, ao ouvir as Esquisitonas começarem uma nova música, que era muito mais movimentada.
— Não, não gosto dessa — mentiu Harry e conduziu a garota para fora da pista de dança, passando por Fred e Angelina, que dançavam com tanta exuberância que as pessoas à volta deles se afastavam com medo de se machucar, e se dirigiram à mesa em que Rony e Padma estavam sentados.
— Como é que vocês estão indo? — perguntou Harry a Rony, se sentando e abrindo uma garrafa de cerveja amanteigada.
Rony não respondeu. Olhava feio para Hermione e Krum, que dançavam ali perto. Padma estava sentada com os braços e as pernas cruzadas, um pé balançando ao ritmo da música. De vez em quando ela lançava um olhar aborrecido a Rony, que a ignorava completamente. Parvati se sentou do outro lado de Harry, cruzou os braços e as pernas também e, minutos depois, foi convidada a dançar por um garoto da Beauxbatons.
— Você se importa, Harry? — perguntou Parvati.
— Quê? — disse Harry, que estava observando Cho e Cedrico.
— Ah, nada — retrucou Parvati e saiu com o garoto da Beauxbatons. Quando a música terminou, ela não voltou. Hermione apareceu e se sentou na cadeira vazia de Parvati. Estava com o rosto um pouco afogueado de dançar.
— Oi — disse Harry. Rony não disse nada.
— Está quente, não acham? — disse ela se abanando com a mão. — Vítor foi apanhar alguma coisa para a gente beber. — Rony lhe lançou um olhar irritado.
— Vítor?— disse ele. — Ele ainda não lhe pediu para chamá-lo de Vitinho?
Hermione olhou para o garoto surpresa.
— Que é que há com você?
— Se você não sabe — disse ele sarcasticamente —, não sou eu que vou lhe dizer.
Hermione encarou-o demoradamente, depois Harry, mas este sacudiu os ombros.
— Rony, que é...
— Ele é da Durmstrang — vociferou Rony. — Está competindo contra o Harry! Contra Hogwarts! Você... Você está... — Rony obviamente estava procurando palavras suficientemente fortes para descrever o crime de Hermione — confraternizando com o inimigo, é isso que você está fazendo!
Hermione ficou boquiaberta.
— Não seja tão burro! — respondeu ela após um momento. — O inimigo! Francamente, quem é que ficou todo excitado quando viu o Krum chegar? Quem é que queria pedir um autógrafo a ele? Quem é que tem um modelinho dele no dormitório?
Rony preferiu ignorar as perguntas.
— Suponho que ele a tenha convidado para vir com ele quando os dois estavam na biblioteca?
— Isso mesmo — disse Hermione, as manchas rosadas em seu rosto se intensificando. — E daí?
— Que aconteceu, estava tentando convencê-lo a participar do fale, é?
— Não, não estava, não! Se você quer realmente saber, ele... Ele disse que estava indo todos os dias à biblioteca para tentar falar comigo, mas não conseguia reunir coragem.
Hermione disse isso muito depressa e corou tanto que ficou quase da mesma cor do vestido de Parvati.
— E, é... Isto é o que ele conta — disse Rony em tom desagradável.
— E o que é que você quer dizer com isso?
— É óbvio, não é? Ele é aluno do Karkaroff não é? E sabe que você anda em companhia do... Ele só está tentando se aproximar do Harry, tirar informações sobre ele ou até chegar perto bastante para azarar ele...
Hermione pareceu ter sido esbofeteada por Rony. Quando falou, tinha a voz trêmula.
— Para sua informação, ele não me fez uma única pergunta sobre o Harry, nem umazinha...
Rony mudou o rumo da conversa com a velocidade da luz.
— Então está na esperança de você o ajudar a decifrar a mensagem do ovo! Suponho que tenham andado juntando as cabeças durante aquelas sessõezinhas íntimas na biblioteca...
— Eu nunca o ajudaria com aquele ovo! — exclamou Hermione, com ar de indignação. — Nunca. Como é que você pode dizer uma coisa dessas... Eu quero que Harry vença o torneio. Harry sabe disso, não sabe, Harry?
— Você tem um jeito engraçado de demonstrar isso — desdenhou Rony.
— O torneio é justamente para se conhecer bruxos estrangeiros e fazer amizade com eles! — disse Hermione com voz aguda.
— Não é não. É para se ganhar!
As pessoas estavam começando a olhar para eles.
— Rony — disse Harry em voz baixa —, eu não tenho nada contra Hermione vir com o Krum...
Mas Rony não deu atenção a Harry tampouco.
— Por que você não vai procurar o Vitinho, ele deve estar se perguntando aonde é que você anda — disse Rony.
— Pare de chamá-lo de Vitinho!— Hermione ficou de pé e saiu decidida pela pista de dança, desaparecendo na multidão.
Rony acompanhou-a com uma expressão no rosto que misturava raiva e satisfação.
— Você não vai me convidar para dançar? — perguntou Padma a ele.
— Não — disse Rony, ainda olhando feio para as costas de Hermione.
— Ótimo — retrucou Padma se levantando e indo se juntar a Parvati e ao garoto de Beauxbatons, que conjurou um amigo para se reunir a eles tão depressa que Harry seria capaz de jurar que chamara o amigo com um Feitiço Convocatório.
— Onde está Hermi-o-nini? — perguntou uma voz.
Krum acabara de chegar à mesa segurando duas cervejas amanteigadas.
— Não faço idéia — disse Rony emburrado, erguendo os olhos. — Perdeu ela, foi?
Krum ficou mais uma vez carrancudo.
— Pom, se focê a virr, diga que apanhei as bebidas — disse ele se afastando curvado.
— Fez amizade com Vítor Krum, Harry?
Percy apareceu animado, esfregando as mãos e com um ar extremamente pomposo.
— Excelente! Essa é a idéia, sabe, da Cooperação Internacional em Magia.
Para contrariedade de Harry, Percy imediatamente ocupou a cadeira que Padma deixara livre. A mesa principal agora estava vazia; o Professor Dumbledore dançava com a Professora Sprout, Ludo Bagman com a Professora McGonagall, Maxime com Hagrid abriam uma estrada pela pista de dança ao valsar entre os estudantes, e Karkaroff não estava à vista. Quando a música seguinte terminou, todos aplaudiram mais uma vez e Harry viu Ludo Bagman beijar a mão da Professora McGonagall e refazer seu caminho entre os dançarinos, momento em que Fred e Jorge o assediaram.
— Que é que eles acham que estão fazendo, importunando um funcionário do primeiro escalão do Ministério? — sibilou Percy, observando os gêmeos, desconfiado. — Que falta de respeito...
Mas Ludo Bagman se desvencilhou dos garotos muito rapidamente e, ao ver Harry, acenou e se aproximou da mesa.
— Espero que meus irmãos não o tenham incomodado, Sr. Bagman! — disse Percy na mesma hora.
— Quê? Ah, não, de modo algum, de modo algum! Não, eles estavam me dizendo mais alguma coisa sobre aquelas varinhas falsas que inventaram. Queriam saber se eu podia sugerir como comercializá-las. Prometi colocá-los em contato com alguns conhecidos na Zonko"s...
Percy não pareceu nada feliz com a resposta e Harry podia apostar que o irmão iria correndo contar à Sra. Weasley no minuto em que chegasse em casa.
Pelo visto, os planos dos gêmeos haviam se tornado mais ambiciosos ultimamente, se estavam pensando em vender seus produtos no varejo.
Bagman abriu a boca para perguntar alguma coisa a Harry, mas Percy o distraiu.
— Como é que o senhor acha que o torneio está correndo, Sr. Bagman? O nosso departamento está bastante satisfeito, o probleminha com o Cálice de Fogo — ele lançou um olhar a Harry — foi lamentável, naturalmente, mas as coisas parecem ter corrido muito bem até agora, o senhor não acha?
— Ah, sim — respondeu Bagman animado —, tem sido um grande divertimento.
Como anda o velho Bartô? Que pena que ele não pôde vir.
— Ah, tenho certeza de que o Sr. Crouch não vai tardar a melhorar e voltar ao trabalho — disse Percy cheio de importância —, mas, nesse meio tempo, estou preparado para cobrir a lacuna. Claro que não é somente comparecer a bailes — ele deu uma breve risada —, ah, não, tenho precisado cuidar de problemas de todo o tipo que surgem na ausência dele, o senhor ouviu falar que Ali Bashir foi apanhado contrabandeando um carregamento de tapetes voadores para dentro do país? E que temos tentado persuadir a Transilvânia a assinar uma sanção internacional aos duelos, tenho uma reunião com o chefe da cooperação em magia transilvano no próximo ano...
— Vamos dar uma volta — murmurou Rony para Harry —, sair de perto de Percy...
Fingindo que queriam se reabastecer de bebidas, Harry e Rony saíram da mesa, contornaram a pista de dança e seguiram para o saguão de entrada. As portas estavam abertas de par em par e as fadinhas luminosas no roseiral piscavam e cintilavam quando os garotos desceram os degraus da entrada e se viram cercados de plantas que formavam caminhos serpeantes e de grandes estátuas de pedra. Harry ouviu um rumorejo de água caindo, que lhe pareceu uma fonte. Aqui e ali as pessoas estavam sentadas em bancos entalhados. Os dois garotos tomaram um dos caminhos que passava pelo roseiral, mas tinham dado apenas alguns passos quando ouviram uma voz desagradável e conhecida.
— ... Não vejo com o que tem de se preocupar, Igor.
— Severo, você não pode fingir que isto não está acontecendo! — a voz de Karkaroff era baixa e ansiosa como se cuidasse para ninguém os ouvir. — Tem se tornado cada vez mais nítida nos últimos meses. Estou começando a me preocupar seriamente, não posso negar...
— Então, fuja — disse a voz de Snape secamente. — Fuja, eu apresentarei suas desculpas. Eu, no entanto, vou permanecer em Hogwarts.
Os dois professores contornaram um canto. Snape levava a varinha na mão e ia estourando roseiras, com a expressão mal-humoradíssima. Ouviam-se gritinhos em muitos arbustos e vultos escuros saiam correndo para fora deles.
— Dez pontos a menos para Lufa-Lufa, Fawcett! — rosnou Snape, quando uma garota passou correndo por ele. — E dez para Corvinal, também, Stebbins! -quando um garoto passou no encalço dela. — E que é que vocês dois estão fazendo? — acrescentou ele, avistando Harry e Rony mais adiante no caminho.
Karkaroff, percebeu Harry, pareceu ligeiramente desconfortável ao vê-los parados ali. Levou a mão nervosamente à barbicha e começou a enrolá-la com o dedo.
— Estamos passeando — respondeu Rony secamente. — Não é contra a lei, é?
— Então continuem passeando! — rosnou Snape, e passou roçando por eles, sua longa capa negra se abrindo como uma vela enfunada às suas costas.
Karkaroff apressou-se em alcançar o colega. Os dois garotos continuaram a descer pelo caminho.
— Que será que deixou o Karkaroff tão preocupado? — murmurou Rony.
— E desde quando ele e Snape estão se chamando pelo nome de batismo? — indagou Harry lentamente.
Os garotos tinham chegado a uma enorme rena de pedra agora, por cima da qual avistaram o jorro cintilante de um alto chafariz. Avistaram também, sentadas em um banco de pedra, as silhuetas escuras de duas pessoas, que contemplavam a água ao luar. Então Harry ouviu a voz de Hagrid.
— O momento em que vi você, eu soube — ia ele dizendo, numa voz estranhamente rouca.
Harry e Rony se imobilizaram. Por alguma razão aquilo não parecia o tipo de cena que eles deviam interromper... Harry virou-se para olhar o caminho e viu Fleur Delacour e Rogério Davies parados, meio escondidos por uma roseira próxima. Bateu no ombro de Rony e acenou a cabeça para o lado dos dois, querendo indicar que ele e Rony poderiam facilmente sair por ali sem serem notados (Fleur e Davies pareceram a Harry muito ocupados), mas Rony, os olhos se arregalando de terror ao ver Fleur, sacudiu a cabeça com vigor e puxou Harry para mais junto das sombras atrás da rena.
— Que é que você soube, Agrrid? — perguntou Madame Maxime, com um audível ronronar na voz baixa.
Harry decididamente não queria escutar aquilo, sabia que Hagrid iria odiar ser entreouvido numa situação daquelas (ele teria sentido o mesmo) — se fosse possível, o garoto teria enfiado os dedos nos ouvidos e cantarolado alto, mas isto não era realmente uma opção. Em lugar disso, tentou se interessar por um besouro que rastejava pelo dorso da rena, mas o besouro simplesmente não era interessante o bastante para bloquear as palavras seguintes de Hagrid.
— Eu simplesmente soube... Soube que você era como eu... Puxou ao seu pai ou à sua mãe?
— Eu... Eu não sei o que você querr dizerr com isso, Agrrid...
— Puxei à minha mãe — disse Hagrid em voz baixa. — Ela foi uma das últimas na Grã-Bretanha. Claro, eu não consigo me lembrar muito bem dela... Ela foi embora, entende. Quando eu tinha uns três anos. Não era um tipo muito maternal. Bem... Não é natureza delas, não é mesmo? Não sei o que aconteceu com ela, pode até ter morrido pelo que sei...
Madame Maxime não respondeu. E Harry, contra sua vontade, tirou os olhos do besouro e espiou por cima dos chifres da rena, escutando... Ele nunca ouvira Hagrid falar da infância antes.
— Meu pai ficou com o coração partido quando ela foi embora. Um cara miudinho, o meu pai era. Quando cheguei aos seis anos podia levantar e colocar ele em cima da cômoda quando me contrariava. Costumava fazer ele rir... — A voz grave de Hagrid quebrou. Madame Maxime o escutava, imóvel, aparentemente contemplando o chafariz de prata. — Papai me criou... Mas ele morreu é claro, logo depois que entrei para a escola. Meio que tive de abrir o meu caminho sozinho depois disso. Mas veja, Dumbledore foi uma grande ajuda. Muito bom para mim, ele foi...
Hagrid puxou um grande lenço de seda encardido e assoou o nariz com força.
— Então... Em todo o caso... Chega de falar de mim. E você? De que lado você herdou?
Mas Madame Maxime repentinamente se pusera de pé.
— Está frio — disse ela. Mas fosse qual fosse a temperatura que fazia, não chegava nem de longe à frieza na voz dela. — Acho que vou entrar agora.
— Eh? — disse Hagrid sem entender. — Não, não vá, nunca encontrei alguém igual a mim antes!
— Alguém exatamente como? — perguntou Madame Maxime, num tom de voz cortante.
Harry poderia ter dito a Hagrid que era melhor não responder; ficou parado ali nas sombras, cerrando os dentes, desejando por tudo no mundo que o amigo não respondesse, mas não adiantou nada.
— Alguém meio gigante, é claro — disse Hagrid.
— Como é que você se atreve? — gritou Madame Maxime. Sua voz explodiu na noite tranqüila como uma buzina de nevoeiro, às costas deles, Harry ouviu Fleur e Roger despencarem da roseira em que estavam. — Nunca fui mais insultada na vida! Meio gigante? Moi? Eu tenho... Eu tenho os ossos grraúdos!
Ela saiu intempestivamente, grandes enxames de fadinhas multicoloridas se ergueram no ar quando ela passou, empurrando arbustos para os lados. Hagrid continuou sentado no banco, acompanhando-a com o olhar parado. Estava escuro demais para distinguir a expressão do seu rosto.
Depois, passado um minuto, ele se levantou e se afastou, mas não voltou ao castelo, saiu pelos jardins escuros em direção à sua cabana.
— Anda — disse Harry muito baixinho a Rony. — Vamos embora...
Mas Rony não se mexeu.
— Que é que está havendo? — perguntou Rony olhando para o amigo.
Rony se virou para Harry, a expressão realmente muito séria.
— Você sabia? — sussurrou. — Que Hagrid era meio gigante?
— Não — disse Harry, sacudindo os ombros. — E daí?
Harry percebeu imediatamente pelo olhar de Rony que, mais uma vez, estava revelando sua ignorância sobre o universo da magia. Criado pelos Dursley, havia muita coisa que os bruxos aceitavam naturalmente e que eram verdadeiras revelações para Harry, mas essas surpresas tinham se tornado menos freqüentes à medida que ele progredia na escola. Agora, porém, ele percebia que a maioria dos bruxos não teria dito "E daí?" ao descobrir que um amigo tivera uma giganta por mãe.
— Eu lhe explico lá dentro — disse Rony baixinho. — Vamos...
Fleur e Rogério Davies tinham desaparecido, provavelmente em uma moita de arbustos com mais privacidade. Harry e Rony voltaram ao Salão Principal.
Parvati e Padma agora estavam sentadas a uma mesa distante com um grande grupo de garotos da Beauxbatons, e Hermione estava mais uma vez dançando com Krum. Harry e Rony se sentaram a uma mesa bem longe da pista de dança.
— Então? — perguntou Harry a Rony. — Qual é o problema de ser gigante?
— Bom, eles... Eles... Não são muito legais — terminou Rony sem graça.
— Quem se importa? — exclamou Harry. — Não há nada errado com Hagrid!
— Eu sei que não tem, mas... Caracas, não admira que ele fique na moita — disse Rony, balançando a cabeça. — Eu sempre achei que ele talvez tivesse ficado no caminho de um Feitiço de Ingurgitamento ruim quando era criança ou outra coisa do gênero. E não gostasse de mencionar isso...
— Mas qual é o problema da mãe dele ter sido uma giganta? — perguntou Harry.
— Bem... Ninguém que o conhece vai se importar, porque sabe que ele não é perigoso — disse Rony lentamente. — Mas... Harry eles são apenas gigantes cruéis. É como Hagrid disse, é da natureza deles, são como os trasgos... Gostam de matar, todo mundo sabe disso. Mas hoje não tem mais gigantes na Grã-Bretanha.
— Que foi que aconteceu com eles?
— Bem, eles estavam acabando mesmo, então um monte deles foi morto pelos aurores. Mas dizem que há gigantes no exterior... A maioria escondida em montanhas...
— Não sei quem é que a Maxime pensa que está enganando — disse Harry, observando a bruxa sentada sozinha à mesa dos juizes, com o ar muito sério.
— Se Hagrid é meio gigante, decididamente ela também é. Ossos graúdos... A única coisa que tem ossos maiores do que ela é um dinossauro.
Harry e Rony passaram o resto do baile discutindo gigantes a um canto, nenhum dos dois com a menor inclinação para dançar. Harry tentou não olhar para Cho e Cedrico, sentiu uma enorme vontade de chutar alguma coisa.
Quando as Esquisitonas terminaram de tocar à meia-noite, receberam mais uma rodada de aplausos estrepitosos e começaram a sair em direção ao saguão de entrada. Muitas pessoas expressaram o desejo de que o baile pudesse continuar por mais tempo, mas Harry estava absolutamente satisfeito de ir se deitar, e, se alguém quisesse saber, a noite não fora lá essas coisas.
Já no saguão de entrada, Harry e Rony viram Hermione se despedindo de Krum antes do garoto se retirar para o navio de Durmstrang. Ela lançou a Rony um olhar gelado, e passou por ele a caminho da escadaria de mármore sem falar.
Os dois amigos a seguiram, mas, no meio da escada, Harry ouviu alguém que o chamava.
— Ei... Harry!
Era Cedrico Diggory. Harry viu que Cho ficara à espera dele no saguão.
— Que foi? — respondeu Harry com frieza, quando o garoto correu escada acima ao seu encontro. Cedrico fez cara de quem não queria dizer o que viera dizer na frente de Rony, que encolheu os ombros, parecendo aborrecido, e continuou a subir as escadas.
— Escuta... — Cedrico baixou a voz quando Rony desapareceu. — Eu lhe devo um favor por ter me falado dos dragões. Sabe o ovo de ouro? O seu solta um grito agourento quando você o abre?
— Solta.
— Então... Toma um banho, OK?
— Quê?
— Tome um banho e... Hum, leve o ovo junto e... Hum, reflita um pouco debaixo da água quente. Vai ajudar você a pensar... Acredite em mim.
Harry ficou olhando para ele.
— Vou lhe dizer uma coisa — disse Cedrico —, use o banheiro dos monitores. Quarta porta à esquerda daquela estátua de Bons, o Pasmo, no quinto andar. A senha é Frescor de Pinho. Tenho que ir... Quero dizer boa-noite...
Ele tornou a sorrir para Harry e desceu depressa as escadas para se juntar a Cho. Harry voltou para a Torre da Grifinória sozinho. Recebera um conselho estranhíssimo. Por que um banho o ajudaria a descobrir o significado do ovo que gritava?
Será que Cedrico estava gozando a cara dele? Será que estava tentando fazer Harry parecer bobo, para que, ao comparar os dois, Cho gostasse ainda mais dele?
A Mulher Gorda e sua amiga Vi estavam tirando um cochilo no quadro que cobria a entrada da Casa. Harry teve que berrar Luzes Encantadas! Para que elas acordassem, e ao fazer isso, as duas ficaram muitíssimo irritadas. Quando entrou na sala comunal, encontrou Rony e Hermione tendo uma briga daquelas.
Mantendo uma distância de três metros, os dois vociferavam um com o outro, as caras vermelhas como pimentões.
— Ora, se você não gosta, então sabe qual é a solução, não sabe? — berrava Hermione, agora seus cabelos iam se soltando do elegante coque, e seu rosto se contraía de raiva.
— Ah, é? — berrava Rony em resposta. — Qual é?
— Da próxima vez que houver um baile, me convide antes que outro garoto faça isso, e não como último recurso!
A boca de Rony ficou mexendo sem emitir som algum como a de um peixe de aquário fora da água, enquanto Hermione virava as costas e subia batendo os pés a escada do dormitório das garotas para se deitar. Rony se virou para Harry.
— Bom — balbuciou, completamente abismado —, bom, isso prova que ela não entendeu nada...
Harry não respondeu. Estava gostando demais de ter feito pazes com o amigo para dizer o que estava pensando naquele momento — mas, em todo o caso, ele achava que Hermione entendera melhor do que Rony.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
O Furo Jornalístico de Rita Skeeter
Todos acordaram tarde no dia seguinte ao Natal, que é feriado na Grã-Bretanha. A sala comunal da Grifinória estava muito mais sossegada do que ultimamente, muitos bocejos pontuavam as conversas ociosas. Os cabelos de Hermione tinham voltado a ficar crespos e cheios, ela confessou a Harry que usara quantidades generosas de Poção Capilar Alisante para ir ao baile, "mas é muita mão-de-obra fazer isso todo dia", disse ela sem emoção, coçando atrás das orelhas do ronronante Bichento.
Rony e Hermione aparentemente tinham chegado a um acordo subentendido de não mencionarem a discussão que tinham tido. Estavam até sendo simpáticos um com o outro, embora estranhamente formais. Rony e Harry não perderam tempo para contar à garota a conversa entre Madame Maxime e Hagrid que tinham ouvido, mas Hermione não pareceu achar a novidade de que Hagrid era meio gigante tão chocante quanto Rony.
— Bem, achei que devia ser — disse ela, encolhendo os ombros. — Eu sabia que ele não poderia ser todo gigante, porque os gigantes têm uns seis metros de altura. Mas, francamente, por que toda essa histeria por causa dos gigantes? Nem todos devem ser horríveis... É o mesmo tipo de preconceito que as pessoas têm com relação aos lobisomens... É muita cegueira, não é, não?
Rony fez cara de quem gostaria de dar uma resposta desdenhosa, mas talvez não quisesse outra briga, porque se contentou em sacudir a cabeça incrédulo quando Hermione não estava olhando. Agora era hora de pensar nos deveres de casa que eles tinham posto de lado na primeira semana de férias.
Todos pareciam estar se sentindo pouco entusiasmados, agora que o Natal terminara — todos exceto Harry, isto é, que estava começando (mais uma vez) a ficar ligeiramente nervoso.
O problema era que o dia vinte e quatro de fevereiro parecia bem mais perto, uma vez passado o Natal, e ele ainda não se mexera para decifrar a pista que havia no ovo de ouro. Portanto, ele passou a tirar o ovo do malão todas as vezes que subia ao dormitório, abria-o e escutava com atenção, na esperança de que daquela vez o grito fizesse mais sentido. Harry se esforçou para descobrir o que o som lhe lembrava, além dos trinta serrotes musicais, mas nunca ouvira nada que se parecesse com aquilo. Fechou o ovo, sacudiu-o vigorosamente, reabriu-o para ver se o som mudara, mas nada. Tentou fazer perguntas ao ovo, berrando para abafar seu lamento, mas nada aconteceu. Chegou mesmo a atirar o ovo do outro lado do quarto — embora não esperasse realmente que isso resolvesse.
Harry não esquecera da dica que Cedrico lhe dera, mas seus sentimentos pouco amigáveis com relação ao campeão, naquele momento, significavam que ele não estava interessado em aceitar ajuda de Cedrico se pudesse. Em todo o caso, achava que se o garoto tivesse realmente querido dar uma mãozinha a ele, teria sido muito mais claro. Harry dissera a Cedrico exatamente o que o esperava na primeira tarefa — mas a idéia que o outro fazia de uma troca justa fora lhe dizer para tomar um banho. Bem, ele não precisava desse tipo de ajuda inútil — pelo menos, não de alguém que ficava andando para cima e para baixo pelos corredores de mãos dadas com Cho.
Assim, chegou o primeiro dia do novo trimestre e Harry foi para as aulas, sobrecarregado de livros, pergaminhos e penas, como de costume, mas também com essa preocupação a lhe pesar no estômago, como se o ovo fosse mais um peso a carregar para todo o lado com ele.
A neve continuava alta nos jardins e as janelas da estufa estavam cobertas por um vapor tão denso que não era possível enxergar através delas na aula de Herbologia. Ninguém estava ansioso para ir à aula de Trato das Criaturas Mágicas com um tempo desses, embora, como disse Rony, era provável que os explosivins deixassem os alunos bem aquecidos, quer fazendo-os correr atrás deles, quer expelindo fogo pelo rabo com tanta força que a cabana de Hagrid pegaria fogo.
Quando os garotos chegaram lá, porém, encontraram uma bruxa mais velha, com os cabelos grisalhos muito curtos e um queixo muito saliente, parada diante da porta da frente do professor.
— Vamos, andem, a sineta já tocou há cinco minutos — vociferou ela, quando os viu caminhando pela neve com dificuldade ao seu encontro.
— Quem é a senhora? — perguntou Rony, mirando-a. — Aonde foi o Hagrid?
— Meu nome é Professora Grubbly-Plank — disse ela com eficiência. Sou a professora temporária de Trato das Criaturas Mágicas.
— Aonde foi o Hagrid? — repetiu Harry em voz alta.
— Não está se sentindo bem — respondeu ela secamente.
Uma risada breve e desagradável chegou aos ouvidos de Harry. Ele se virou, Draco Malfoy e o resto dos alunos da Sonserina estavam vindo se reunir à turma.
Tinham um ar satisfeito, e nenhum pareceu surpreso de ver a Professora Grubbly-Plank.
— Por aqui, por favor — disse a professora e saiu contornando o picadeiro onde os enormes cavalos da Beauxbatons tremiam de frio. Harry, Rony e Hermione a seguiram, olhando para trás, por cima do ombro, para a cabana de Hagrid. Todas as cortinas estavam corridas. Será que Hagrid estava ali, sozinho e doente?
— Que é que o Hagrid tem? — perguntou Harry, apressando o passo para alcançar a professora.
— Não é da sua conta — disse ela, como se achasse que o garoto estava sendo intrometido.
— Mas é da minha conta — disse Harry com veemência. — Que aconteceu com ele?
A Professora Grubbly-Plank continuou como se não o ouvisse. Conduziu-os além do picadeiro dos cavalos da Beauxbatons, todos agrupados tentando se proteger do frio, e em direção a uma árvore na orla da Floresta, onde encontraram amarrado um grande e belo unicórnio. Muitas garotas soltaram exclamações de admiração ao ver o unicórnio.
— Ah, é tão bonito! — murmurou Lilá Brown. — Como será que ela conseguiu? Dizem que são realmente difíceis de apanhar!
O unicórnio era tão branco que fazia a neve ao redor parecer cinzenta.
Pateava o chão nervoso com seus cascos dourados e atirava para trás a cabeça com um só chifre.
— Meninos fiquem afastados! — gritou secamente a professora, estendendo um braço e, com isso, batendo com força em Harry na altura do peito.
— Eles preferem o toque das mulheres, os unicórnios. Meninas a frente, e se aproximem com cuidado. Vamos, devagar...
Ela e as meninas se adiantaram devagarinho até o bicho, deixando os garotos parados junto à cerca do picadeiro, assistindo. No instante em que a professora ficou fora do alcance de suas vozes, Harry se virou para Rony.
— Que é que você acha que aconteceu com ele? Acha que pode ter sido um explosivin...?
— Ah, ele não foi atacado, Potter, se é o que você está pensando — disse Malfoy suavemente. — Não, ele só está envergonhado demais para mostrar a cara.
— Que é que você quer dizer com isso? — perguntou Harry com rispidez.
Malfoy meteu a mão no bolso interno das vestes e puxou uma folha dobrada de jornal.
— Já vem você — disse ele. — Detesto ser eu a lhe dar a notícia, Potter...
Malfoy deu um sorriso afetado quando Harry pegou o jornal, desdobrou-o e leu-o com Rony, Simas, Dino e Neville que espiava por cima do ombro deste. Era um artigo encimado pela foto de Hagrid com uma cara extremamente sonsa.
“O MAIOR ERRO DE DUMBLEDORE”
Alvo Dumbledore, o excêntrico diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, nunca teve medo de fazer nomeações controvertidas para o corpo docente, escreve Rita Skeeter, nossa correspondente especial. — Em setembro deste ano, ele contratou Alastor "Olho-Tonto" Moody, o notório ex-auror que vê feitiços por toda parte, para ensinar Defesa contra as Artes das Trevas, uma decisão que fez muita gente erguer as sobrancelhas no Ministério da Magia, dado o conhecido hábito que Moody tem de atacar qualquer um que faça um movimento repentino em sua presença.
Olho-Tonto, porém, parece responsável e bondoso, em contraste com o indivíduo meio humano que Dumbledore emprega para ensinar Trato das Criaturas Mágicas.
Rúbeo Hagrid, que admite ter sido expulso de Hogwarts no terceiro ano, e desde então exerce na escola a função de guarda-caça, um emprego que Dumbledore lhe arranjou. No ano passado, no entanto, usou sua misteriosa influência sobre o diretor da escola para obter o cargo suplementar de professor de Trato das Criaturas Mágicas, preterindo muitos candidatos com melhores qualificações.
Um homem assustadoramente grande e de ar feroz, Hagrid tem usado sua recém adquirida autoridade para aterrorizar os alunos ao tratar de uma coleção de seres horripilantes. Enquanto Dumbledore faz vista grossa, Hagrid já feriu vários alunos durante uma série de aulas que muitos admitem "dar muito medo".
“Eu já fui atacado por um hipogrifo e meu amigo, Vicente Crabbe, levou uma dentada fria de um verme". Declarou Draco Malfoy, um aluno do quarto ano. “Todos odiamos Hagrid, mas temos receio demais para dizer qualquer coisa”.
Mas Hagrid não tem a menor intenção de desistir de sua campanha de intimidação. Em conversa com a repórter do Profeta Diário, no mês passado, ele admitiu que cria uns bichos a que chama de "explosivins" uma cruza extremamente perigosa de manticore com caranguejo-de-fogo. A criação de novas raças é, naturalmente, uma atividade em geral acompanhada de perto pelo Departamento para Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas. Hagrid, ao que parece, considera-se acima dessas restrições pouco importantes.
"Eu só estava me divertindo um pouco". Disse ele, antes de mudar rapidamente de assunto.
E como se isso não bastasse, o Profeta Diário agora encontrou provas de que Hagrid não é — como sempre fingiu ser — um bruxo puro-sangue. De fato, não é sequer um ser humano puro. Sua mãe, podemos revelar com exclusividade, não é outra senão a giganta Fridwulfa, cujo paradeiro é atualmente desconhecido.
Sedentos de sangue e brutais, os gigantes chegaram à extinção com as guerras que promoveram entre si no século passado. Os poucos sobreviventes se alistaram nas fileiras d’Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, e foram responsáveis por alguns dos piores massacres de trouxas durante o seu reino de terror.
Embora muitos gigantes que serviram Àquele-Que-NãoDeve-Ser-Nomeado tenham sido mortos por aurores que combatiam o partido das trevas, Fridwulfa não foi um deles.
É possível que tenha fugido para uma das comunidades de gigantes que ainda existem em montanhas no exterior. Mas se as extravagâncias de Hagrid durante as aulas de Trato das Criaturas Mágicas puderem servir de medida, o filho de Fridwulfa parece ter herdado sua natureza brutal.
Mas, bizarramente, dizem que Hagrid criou uma grande amizade pelo garoto que provocou a queda de Você-Sabe-Quem, e com isso obrigou a própria mãe, bem como os demais seguidores do bruxo das trevas, a procurar um refugio. Talvez Harry Potter não tenha conhecimento da desagradável verdade sobre seu grande amigo, mas não resta dúvida de que Alvo Dumbledore tem obrigação de providenciar para que Harry Potter, bem como seus colegas, sejam informados dos perigos de se associarem com meios gigantes.
Harry terminou a leitura e ergueu os olhos para Rony, cujo queixo estava caído.
— Como foi que ela descobriu isso? — sussurrou ele.
Mas não era isso que estava incomodando Harry.
— Que foi que você quis dizer com "todos detestamos Hagrid"? — perguntou Harry irritado a Malfoy. — Que bobagem é essa de que esse cara aí — e indicou Crabbe — levou uma mordida feia de um verme? Eles nem têm dentes!
Crabbe dava risadinhas, aparentemente muito satisfeito consigo mesmo.
— Bom, acho que isso deve encerrar a carreira desse caipirão — disse Malfoy, os olhos brilhando. — Meio gigante... E eu pensando que ele engolira um frasco de Esquelesce quando era criança... Nenhum pai nem mãe vão gostar nem um pouco dessa notícia... Vão ficar preocupados que o gigante devore os filhinhos deles, ha, ha...
— Seu...
— Vocês estão prestando atenção aqui na frente?
A voz da Professora Grubbly-Plank chegou até eles, as garotas agora estavam agrupadas em torno do unicórnio, acariciando-o. Harry sentia tanta fúria que o artigo do Profeta Diário tremia em sua mão quando ele se virou maquinalmente para o unicórnio, cujas muitas propriedades mágicas a professora começava a enumerar em voz alta, para que os garotos pudessem ouvir também.
— Espero que ela continue, essa mulher! — disse Parvati Patil quando terminaram e todos seguiram para o castelo para almoçar.
— A aula ficou mais parecida com o que eu imaginei que seria o Trato das Criaturas Mágicas... Criaturas normais como unicórnios, não monstros...
— E Hagrid? — perguntou Harry zangado, quando subiam as escadas.
— Que é que tem ele? — perguntou Parvati, com a voz inflexível. — Ele pode continuar como guarda-caça, não pode?
Parvati andava tratando Harry com frieza desde o baile. Ele supôs que devia ter dado mais atenção à garota, mas ela parecia ter se divertido mesmo assim. Com certeza estava contando a todo mundo que quisesse ouvir que combinara encontrar-se com o garoto de Beauxbatons em Hogsmeade no próximo fim de semana seguinte.
— Foi uma aula realmente boa — disse Hermione, quando eles entraram no Salão Principal. — Eu não sabia metade das coisas que a Professora Grubbly-Plank falou sobre os uni...
— Olhe isso aqui! — rosnou Harry sacudindo o artigo do Profeta Diário no nariz de Hermione.
O queixo de Hermione foi caindo à medida que lia. Sua reação foi exatamente a mesma que a de Rony.
— Como foi que aquela Skeeter horrorosa descobriu isso? Você acha que Hagrid contou a ela?
— Não — respondeu Harry, se adiantando para a mesa da Grifinória, e se atirando numa cadeira, furioso. — Hagrid nunca disse isso nem à gente, não é? Acho que ela ficou tão aborrecida porque ele não quis contar os meus podres, que saiu fuçando para se vingar dele.
— Talvez ela tenha escutado a conversa dele com Madame Maxime no baile — arriscou Hermione baixinho.
— Nós a teríamos visto nos jardins! — disse Rony. — Em todo o caso, ela não tem permissão para tornar a entrar na escola, Hagrid disse que Dumbledore a proibiu...
— Talvez ela use uma Capa da Invisibilidade — disse Harry, servindo uma concha de caçarola de frango em seu prato e derramando-a por todo o lado, tal era a sua raiva. — É o tipo de coisa que ela faria, não é, se esconder atrás de moitas para escutar as conversas dos outros.
— Como você e Rony fizeram? — perguntou Hermione.
— Não estávamos querendo ouvir! — disse Rony indignado. — Não tivemos opção! O panaca começou a falar da mãe giganta num lugar em que todo mundo podia ouvir!
— Temos que ir visitar Hagrid — disse Harry. — Hoje à noitinha, depois da aula de Adivinhação. Dizer que o queremos de volta... Você quer ele de volta, não quer? — O garoto disparou a pergunta à Hermione.
— Bem... Não vou fingir que a mudança não foi legal, ter uma aula decente de Trato das Criaturas Mágicas para variar, mas eu quero que Hagrid volte, é claro que quero! — acrescentou Hermione depressa, fraquejando diante do olhar furioso de Harry.
Então, naquela noite, depois do jantar, os três saíram do castelo, mais uma vez, e atravessaram os jardins congelados até a cabana de Hagrid. Bateram e os latidos retumbantes de Canino responderam.
— Hagrid, somos nós! — gritou Harry, socando a porta. — Abra!
Não houve resposta. Os garotos ouviram Canino arranhar a porta, mas ela não se abriu. Bateram mais uns dez minutos, Rony até bateu em uma das janelas, mas não houve resposta.
— Para que é que ele está evitando a gente? — perguntou Hermione quando finalmente desistiram e já iam voltando para a escola. — Com certeza ele não acha que nos importamos que ele seja meio gigante?
Mas pelo jeito Hagrid se importava. Os garotos não viram nem sinal dele a semana inteira. Não apareceu à mesa dos professores na hora das refeições, nem foi visto pela propriedade cuidando de suas tarefas de guarda-caça, e a Professora Grubbly-Plank continuou a dar as aulas de Trato das Criaturas Mágicas. Malfoy se gabava a cada oportunidade possível.
— Com saudades do seu amiguinho mestiço? — ele não parava de murmurar para Harry sempre que havia um professor por perto, de modo a ficar a salvo de uma reação. — Com saudades do seu homem elefante?
Houve uma visita a Hogsmeade na metade de janeiro. Hermione ficou muito surpresa que Harry pretendesse ir.
— Pensei que você ia aproveitar a tranqüilidade do salão comunal. Olha que você realmente precisa trabalhar naquele ovo.
— Ah, eu... Eu acho que agora já tenho uma boa idéia do que se trata — mentiu Harry.
— Já tem, é? — exclamou Hermione, parecendo impressionada. — Muito bem!
As entranhas de Harry deram uma revirada de culpa, mas ele fingiu não ter sentido. Afinal ainda lhe restavam cinco semanas para descobrir a pista do ovo e isso era uma eternidade... E se ele fosse a Hogsmeade, talvez desse de cara com Hagrid e tivesse uma chance de convencê-lo a voltar.
No sábado ele, Rony e Hermione deixaram o castelo, juntos, e atravessaram os jardins frios e úmidos em direção aos portões. Ao passar em pelo navio de Durmstrang ancorado no lago, viram Vítor Krum saindo para o convés, trajando apenas calções de banho. Ele era muito magro, mas bem mais forte do que parecia, porque trepou na amurada do navio, esticou os braços à frente e mergulhou direto no lago.
— Ele é doido! — comentou Harry, observando a cabeça escura de Krum reaparecer no meio do lago. — Deve estar congelando, estamos no meio de janeiro!
— É muito mais frio no lugar de onde ele vem — disse Hermione. — Imagino que ele sinta até um calorzinho aqui.
— É, mas ainda tem a lula gigante — lembrou Rony. Sua voz não revelava ansiedade, se revelava alguma coisa, era esperança. Hermione reparou no tom de voz dele e franziu a testa.
— Ele é realmente legal, sabe. Não é nada do que se poderia pensar de alguém que vem de Durmstrang. Ele me disse que gosta muito mais daqui.
Rony não fez comentários. Não mencionara Vítor Krum desde o baile, mas Harry encontrara a miniatura de um braço embaixo da cama do amigo, no dia seguinte ao Natal, que dava a impressão de ter sido arrancado do modelinho com as vestes de Quadribol da Bulgária.
Harry ficou de olhos muito atentos à procura de um sinal de Hagrid por todo o caminho até a enlameada rua Principal e sugeriu uma visita ao Três Vassouras depois de se certificar de que Hagrid não estava nas outras lojas.
O bar estava apinhado como sempre, mas uma olhada rápida pelas mesas informou a Harry que Hagrid não se encontrava ali. Desanimado, dirigiu-se ao balcão com Rony e Hermione, pediu à Madame Rosmerta três cervejas amanteigadas e pensou, deprimido, que afinal teria feito melhor se tivesse ficado na escola escutando o lamento do ovo.
— Será que ele nunca vai ao escritório? — cochichou Hermione de repente. — Olha lá!
Ela apontou para o espelho atrás do bar e Harry viu, refletido ali, Ludo Bagman, sentado em um canto mais escuro com um grupo de duendes. O bruxo falava muito rápido, e em voz baixa, com os duendes, que tinham os braços cruzados e uma expressão assustadora no rosto.
Era realmente estranho, pensou Harry, que Bagman estivesse ali no Três Vassouras, num fim de semana, quando não havia nenhum evento do torneio, e, portanto, nenhuma atividade do seu júri. Ele observou o bruxo pelo espelho.
Bagman parecia tenso, tão tenso quanto naquela noite na floresta antes da Marca Negra aparecer. Mas neste momento Bagman olhou para o bar, viu Harry e se levantou.
— Um momento, um momento! — Harry o ouviu dizer bruscamente para os duendes e atravessar o bar em direção a ele, o sorriso juvenil de sempre no rosto.
— Harry! — exclamou ele. — Como vai? Tinha esperança de encontrá-lo! Está tudo correndo bem?
— Ótimo, obrigado!
— Será que eu podia dar uma palavrinha rápida com você, em particular? — disse ele pressuroso. — Vocês poderiam nos dar licença um momento, por favor?
— Hum... OK — concordou Rony, e ele e Hermione saíram à procura de uma mesa. Bagman levou Harry para o canto mais afastado do bar de Madame Rosmerta.
— Bom, achei que gostaria de cumprimentá-lo outra vez por seu esplêndido desempenho contra o Rabo-Córneo, Harry — disse Bagman. — Foi realmente soberbo!
— Obrigado — disse o garoto, mas sabia que não devia ser só isso que Bagman queria dizer, porque poderia ter dado os parabéns diante de Rony e Hermione. Mas o bruxo parecia não ter pressa alguma de dizer o que era. Harry o viu olhar para o espelho do bar na direção dos duendes que os observavam em silêncio, com aqueles olhos escuros e puxados.
— Absoluto pesadelo — disse Bagman a Harry entre dentes, reparando que Harry também observava os duendes. — O inglês deles não é muito bom... Parece até que estou de volta à Copa Mundial de Quadribol com todos aqueles búlgaros... Mas pelo menos eles usavam gestos que todo ser humano era capaz de reconhecer. Essa turma fica algaraviando em grugulês... E só conheço uma palavra de grugulês. Bladvak. Significa "picareta". Não gosto de usá-la para eles não pensarem que estou ameaçando-os. — E soltou uma gargalhada breve, mais retumbante.
— Que é que eles querem? — perguntou Harry, notando que os duendes continuavam a observar Bagman com muita atenção.
— Hum... Bem... — disse Bagman, parecendo subitamente nervoso. — Eles... Hum... Estão procurando Bartô Crouch.
— Por que é que estão procurando por ele aqui? — perguntou Harry. — Ele não está no Ministério em Londres?
— Hum... Para falar a verdade, não faço a menor idéia de onde esteja. Vamos dizer que tenha parado de comparecer ao trabalho. Já está ausente há umas duas semanas. O jovem Percy, assistente dele, diz que ele está doente. Aparentemente tem enviado instruções via coruja. Mas se importa de não comentar isso com ninguém, Harry? Porque a Rita Skeeter continua bisbilhotando por todo lado que pode e eu seria capaz de apostar que ela poderia transformar a doença de Bartô em algo sinistro. Provavelmente dizer que ele está desaparecido como Berta Jorkins.
— O senhor teve notícias da Berta Jorkins? — perguntou Harry.
— Não — respondeu Bagman, parecendo outra vez tenso. — Tenho gente procurando, é claro... — (Já não era sem tempo, pensou Harry) — e é tudo muito estranho. Sem a menor dúvida chegou à Albânia, porque se encontrou lá com uma prima em segundo grau. Depois deixou a casa da prima dizendo que ia ao sul visitar uma tia... E parece ter desaparecido no caminho, sem deixar vestígios. O diabo é quem sabe onde ela pode ter se metido... Não parece ser do tipo que foge para casar, por exemplo... Contudo... Mas por que é que estamos falando de duendes e de Berta Jorkins? O que eu realmente queria perguntar a você e... — e aqui ele baixou a voz — como é que você vai indo com o ovo de ouro?
— Hum... Nada mal — disse Harry ocultando a verdade.
Bagman pareceu perceber que o garoto não estava sendo honesto.
— Escute, Harry — disse ele (ainda em voz muito baixa). — Eu me sinto muito mal a respeito dessa coisa toda... Você foi empurrado para o torneio, você não se voluntariou... E se — (aqui sua voz ficou tão baixa que Harry precisou chegar mais perto para escutar) — ... Se tiver alguma coisa que eu possa fazer... Um empurrãozinho na direção certa... Acabei me afeiçoando a você... O jeito com que você passou pelo dragão!... Bem, é só dizer.
Harry olhou para o rosto rosado e redondo, e para os grandes olhos azul-celeste de Bagman.
— Devemos decifrar as pistas sozinhos, não é? — disse ele, tomando cuidado para manter a voz displicente e não parecer que estava acusando o chefe do Departamento de Jogos e Esportes Mágicos de infringir o regulamento.
— Bem... Bem, é verdade — disse Bagman impaciente —, mas... Vamos, Harry, todos queremos a vitória de Hogwarts, não é mesmo?
— O senhor ofereceu ajuda a Cedrico? — perguntou Harry.
A mais leve das rugas vincou o rosto liso de Bagman.
— Não, não ofereci. Eu... Bem, como disse, me afeiçoei a você. Por isso pensei em oferecer...
— Bem, obrigado — disse Harry —, mas acho que estou quase chegando lá... Mais uns dois dias e resolvo o problema do ovo.
Ele não tinha muita certeza da razão pela qual estava recusando a ajuda de Bagman, exceto que o bruxo era quase um estranho para ele, e aceitar sua ajuda lhe parecia muito mais desonesto do que pedir conselhos a Rony, Hermione ou Sirius.
Bagman pareceu quase afrontado, mas não pôde dizer muito mais, porque Fred e Jorge apareceram naquele momento.
— Olá, Sr. Bagman — disse Fred animado. — Podemos lhe oferecer uma bebida?
— Hum... Não — disse Bagman, com um último olhar desapontado para Harry —, não, muito obrigado, garotos...
Fred e Jorge pareciam quase tão desapontados quanto Bagman, que mirava Harry como se o garoto o tivesse deixado na mão.
— Bem, preciso correr — disse ele. — Foi bom ver vocês. Boa sorte, Harry.
E saiu apressado do bar. Os duendes deslizaram para fora das cadeiras e saíram atrás de Bagman. Harry foi se reunir a Rony e Hermione.
— Que é que ele queria? — perguntou Rony, no instante em que Harry se sentou.
— Ele se ofereceu para me ajudar com o ovo de ouro.
— Ele não devia estar fazendo isso! — exclamou Hermione, parecendo muito chocada. — Ele é um dos juizes! E em todo o caso, você já decifrou sozinho, não foi?
— Hum... Quase.
— Bem, eu acho que Dumbledore não gostaria de saber que Bagman andou tentando convencer você a ser desonesto! — disse Hermione ainda com uma expressão de profunda reprovação. — Espero que ele esteja tentando ajudar Cedrico também!
— Não, não está. Eu perguntei a ele — informou Harry.
— Quem é que se importa se Cedrico está recebendo ajuda? — disse Rony.
Harry, intimamente, concordou.
— Aqueles duendes não pareciam muito simpáticos — comentou Hermione, bebericando a cerveja amanteigada. — Que é que eles estavam fazendo aqui?
— Procurando Crouch, segundo informou Bagman. Ele continua doente. Não tem ido trabalhar.
— Quem sabe Percy está envenenando ele? — sugeriu Rony. — Provavelmente acha que se Crouch apagar ele vai ser nomeado chefe do Departamento de Cooperação Internacional em Magia.
Hermione lançou a Rony um olhar do tipo não-brinque-com-essas-coisas e comentou:
— Engraçado, duendes procurando o Sr. Crouch... Eles normalmente se dirigem ao Departamento para Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas.
— Mas Crouch sabe falar um monte de línguas diferentes — lembrou Harry. — Talvez eles precisem de um intérprete.
— Agora está se preocupando com os coitadinhos dos duendes, é? — perguntou Rony a Hermione. — Está pensando em lançar um S.P.D.F. ou outra coisa do gênero? Uma Sociedade Protetora dos Duendes Feios?
— Ha, ha, ha — exclamou Hermione sarcasticamente. — Duendes não precisam de proteção. Você não tem prestado atenção ao que o Professor Binns vem nos contando sobre as revoltas dos duendes?
— Não — disseram Harry e Rony juntos.
— Pois é, eles têm plena capacidade de enfrentar os bruxos — disse Hermione, tomando mais um golinho de cerveja amanteigada. — Eles são muito inteligentes. Não são como os elfos domésticos, que nunca se unem para se defender.
— Ah — exclamou Rony, com os olhos fixos na porta. Rita Skeeter acabara de entrar. Estava usando vestes amarelo banana, tinha as unhas longas pintadas de rosa-choque e vinha acompanhada do seu fotógrafo barrigudo. Ela comprou bebidas, e os dois abriam caminho entre as pessoas e as mesas até uma mesa próxima. Harry, Rony e Hermione amarraram a cara para ela ao verem que estava se aproximando. Ela falava depressa e parecia muito satisfeita com alguma coisa.
— ... Não parecia muito interessado em falar com a gente, você também não acha, Bozo? E por que você acha que não estava? E o que é que ele estava fazendo com uma matilha de duendes na cola? Mostrando os pontos pitorescos do povoado... Que absurdo... Ele sempre foi um mau mentiroso. Você acha que ele está escondendo alguma coisa? Acha que devíamos fuçar um pouco? Ludo Bagman, o desacreditado ex-Chefe dos Esportes Mágicos... É uma boa abertura, Bozo, agora só precisamos encontrar uma história para usá-la...
— Tentando estragar a vida de mais alguém? — perguntou Harry em voz alta.
Algumas pessoas viraram a cabeça. Os olhos de Rita mal se arregalaram por trás dos óculos de pedrinhas quando viu quem falara.
— Harry! — exclamou ela sorridente. — Que ótimo? Por que você não vem se sentar conosco...?
— Eu não chegaria perto da senhora nem com uma vassoura de três metros — disse Harry furioso. — Por que a senhora fez aquilo com o Hagrid, hein?
Rita Skeeter ergueu as sobrancelhas acentuadas com lápis grosso.
— Os nossos leitores têm o direito de saber a verdade, Harry estou meramente fazendo o meu...
— Quem se importa que ele seja meio gigante? — gritou Harry. — Não há nada errado com ele!
O bar inteiro ficou em silêncio. Madame Rosmerta acompanhava de olhar fixo por trás do balcão, aparentemente esquecida de que a garrafa que estava enchendo de quentão começara a transbordar.
O sorriso de Rita Skeeter estremeceu levemente, mas ela o firmou quase no mesmo instante, abriu a bolsa de crocodilo com um estalido, tirou a pena-de-repetição-rápida e disse:
— Que tal me dar uma entrevista sobre o Hagrid que você conhece, Harry? O homem por trás dos músculos? A improvável amizade que tem por ele e as razões para tê-la? Você o chamaria de um pai substituto?
Hermione se levantou abruptamente, a cerveja amanteigada apertada na mão como se fosse uma granada.
— Sua mulher horrorosa — disse ela, entre dentes —, a senhora não se importa, não é, qualquer coisa vira artigo, e qualquer pessoa serve, não é? Até Ludo Bagman...
— Sente-se, menininha boba e não fale do que não entende — disse Rita Skeeter com frieza, seu olhar endurecendo ao pousar em Hermione. — Sei de coisas sobre Ludo Bagman que deixariam você de cabelos em pé... Não que eles precisem de ajuda — acrescentou, mirando os cabelos lanzudos de Hermione.
— Vamos embora — disse Hermione. — Anda, Harry, Rony...
Os garotos saíram, muita gente ficou olhando para eles enquanto se retiravam. Harry virou a cabeça ao alcançar a porta. A pena-de-repetição-rápida estava em posição, corria para frente e para trás no pedaço de pergaminho sobre a mesa.
— Você vai ser a próxima que ela vai perseguir, Mione — disse Rony, numa voz baixa e preocupada quando tornavam a subir a rua.
— Ela que experimente! — disse a garota com voz aguda, tremia de raiva. — Vou mostrar a ela! Menininha boba é? Ah, vai ter troco, primeiro Harry, agora o Hagrid...
— Você não vai querer se indispor com a Rita Skeeter — disse Rony nervoso. — Estou falando sério, Mione, ela vai desenterrar alguma coisa sobre você...
— Meus pais não lêem o Profeta Diário, ela não pode me apavorar e me fazer esconder! — disse Hermione, agora caminhando tão depressa que Harry e Rony mal conseguiam acompanhá-la. A última vez que Harry vira Hermione com tanta raiva assim, ela metera a mão na cara de Draco Malfoy. — E Hagrid não vai se esconder mais! Ele nunca deveria ter deixado aquela imitação de ser humano o perturbar! Andem!
Desatando a correr, ela levou os garotos de volta à estrada, cruzou os portões ladeados por javalis alados e atravessou os jardins até a cabana de Hagrid.
As cortinas ainda estavam corridas, mas eles ouviram os latidos de Canino quando se aproximaram.
— Hagrid! — chamou Hermione, batendo com força na porta da frente. — Hagrid, pode parar com isso! Sabemos que você está aí dentro! Ninguém liga a mínima se sua mãe era uma giganta, Hagrid! Você não pode deixar aquela Skeeter nojenta fazer isso com você! Hagrid, vem aqui fora, você está sendo...
A porta se abriu. Hermione disse:
— Já não era...! — e se calou, de repente porque se viu cara a cara, não com Hagrid, mas com Alvo Dumbledore.
— Boa-tarde — disse ele agradavelmente, sorrindo para os garotos.
— Nós... Hum... Nós gostaríamos de ver o Hagrid — disse Hermione baixinho.
— Claro, imaginei isso — disse Dumbledore, os olhos cintilando. — Por que não entram?
— Ah... Hum... OK..
Ela, Rony e Harry entraram na cabana. Canino se atirou sobre Harry no instante em que o garoto entrou, latindo feito louco e tentando lamber as orelhas dele. Harry afastou Canino e olhou à volta. Hagrid estava sentado à mesa, onde havia duas canecas de chá. Estava pavoroso. O rosto manchado, os olhos inchados e tinha passado ao outro extremo em termos de cabelos, em lugar de tentar amansá-los, deixara-os agora parecidos com uma peruca de arame embaraçado.
— Oi, Hagrid — disse Harry.
Hagrid ergueu os olhos.
— Alô — disse ele, com a voz rouca.
— Mais chá, acho — disse Dumbledore, que fechou a porta depois que Harry, Rony e Hermione entraram, puxou a varinha e girou-a, apareceu no ar uma bandeja giratória de chá acompanhado por um prato de bolos.
Ainda por magia, Dumbledore levou a bandeja até a mesa e todos se sentaram. Houve uma ligeira pausa e então o diretor disse:
— Você por acaso ouviu o que a Srta. Granger estava gritando, Hagrid?”
Hermione corou ligeiramente, mas Dumbledore sorriu para ela e continuou.
— Hermione, Harry e Rony parecem que ainda querem continuar a conhecer você, a julgar pela maneira com que tentavam derrubar a porta.
— Claro que ainda queremos conhecer você! — exclamou Harry fitando Hagrid. — Você não acha que alguma coisa que aquela vaca da Skeeter... Desculpe professor — acrescentou ele depressa, olhando para Dumbledore.
— Fiquei temporariamente surdo e não faço idéia do que foi que você disse, Harry — disse Dumbledore, girando os polegares e olhando para o teto.
— Hum... Certo — disse Harry envergonhado. — Eu só quis dizer, Hagrid, como é que você pôde pensar que ligaríamos para o que aquela "mulher" escreveu sobre você?
Duas grossas lágrimas saltaram dos olhos de Hagrid, negros como besouros, e caíram lentamente sobre sua barba desgrenhada.
— A prova viva do que estive lhe dizendo, Hagrid — disse Dumbledore, ainda contemplando atentamente o teto. — Já lhe mostrei as cartas dos inúmeros pais que se lembram de você do tempo em que estiveram aqui, dizendo em termos bastante claros que se eu o despedisse eles não iriam ficar calados...
— Nem todos — disse Hagrid rouco. — Nem todos querem que eu fique...
— Francamente, Hagrid, se você está esperando obter aprovação universal, receio que vá ficar trancado na cabana muito tempo — disse o diretor, agora olhando severamente por cima dos oclinhos de meia-lua. — Ainda não houve uma semana, desde que me tornei diretor desta escola, em que eu não recebesse ao menos uma coruja reclamando da maneira com que eu a dirijo. Mas o que é que eu deveria fazer? Me entrincheirar no escritório e me recusar a falar com as pessoas?
— Mas... Mas o senhor não é meio gigante! — crocitou Hagrid.
— Hagrid, olha só quem são os meus parentes! — disse Harry furioso. — Olha só os Dursley!
— Muito bem lembrado! — disse o diretor. — Meu próprio irmão, Aberforth, foi acusado de praticar feitiços impróprios em um bode. Apareceu em todos os jornais, mas ele se escondeu? Não, não se escondeu! Manteve a cabeça erguida e continuou a trabalhar como sempre! Naturalmente, não tenho muita certeza de que ele saiba ler, por isso talvez não tenha tido tanta coragem assim...
— Volte a ensinar, Hagrid — disse Hermione em voz baixa —, por favor, volte, nós realmente sentimos sua falta.
Hagrid engoliu em seco. Mais lágrimas escorreram por suas bochechas e penetraram a barba embaraçada. Dumbledore se levantou.
— Eu me recuso a aceitar o seu pedido de demissão, Hagrid, e espero que esteja de volta ao trabalho na segunda-feira — disse ele. — Você tomará café em minha companhia às oito e meia no Salão Principal. Nada de desculpas. Boa-tarde para todos vocês.
Dumbledore se retirou da cabana, parando apenas para dar uma coçada atrás da orelha de Canino. Quando a porta se fechou atrás dele, Hagrid começou a soluçar com o rosto nas mãos do tamanho de uma tampa de lata de lixo.
Hermione deu palmadinhas em seu braço e finalmente Hagrid ergueu a cabeça, os olhos de fato muito vermelhos e disse:
— Um grande homem o Dumbledore...
— Grande homem... — concordou Rony. — Posso comer um desses bolos, Hagrid?
— Sirva-se — disse ele, enxugando os olhos nas costas da mão. — Arre, ele tem razão, é claro, vocês têm razão... Tenho sido idiota... Meu velho pai teria se envergonhado do meu comportamento nesses últimos dias... — Mais lágrimas escorreram, mas ele as enxugou com mais firmeza e continuou: — Nunca mostrei a vocês uma foto do meu velho pai, não é? Olhem...
Hagrid se levantou, foi até a cômoda, abriu a gaveta e tirou uma foto de um bruxo baixinho com os mesmos olhos negros rodeados de rugas do filho, sentado sorridente no ombro dele. Hagrid tinha bem uns dois metros mais do que o pai, a julgar pela macieira ao lado deles, mas seu rosto era imberbe, jovem, redondo e liso — parecia não ter mais que uns onze anos de idade.
— Foi tirada logo depois que vim para Hogwarts — disse Hagrid rouco. — Papai morreu muito feliz... Achava que eu talvez não fosse bruxo, entende, porque mamãe.... Bem, em todo o caso... Claro que, sinceramente, nunca fui grande coisa em magia... Mas pelo menos ele não me viu ser expulso. Morreu, entende, eu estava no segundo ano... Dumbledore foi quem me apoiou depois que meu pai morreu. Me arranjou o lugar de guarda caça... Confia nas pessoas, ele. Dá uma segunda oportunidade... É isso que diferencia ele de outros diretores, entendem. Aceita qualquer pessoa em Hogwarts, que tenha talento. Sabe que as pessoas podem ser legais mesmo que as famílias delas não tenham sido... Bem... Tão respeitáveis assim. Mas tem gente que não entende isso. Tem gente que sempre usa a família contra a pessoa... Tem até gente que finge que tem ossos grandes em lugar de se levantar e dizer "eu sou o que sou e não me envergonho disso". "Nunca se envergonhe", meu velho pai costumava dizer, "tem gente que vai usar isso contra você, mas não vale a pena se preocupar com eles." E ele tinha razão. Fui um idiota. Não vou me incomodar mais com ela, prometo a vocês. Ossos graúdos, eu vou mostrar a ela os ossos graúdos.
Harry, Rony e Hermione se entreolharam nervosos, Harry preferia levar cinqüenta explosivins para passear do que admitir para Hagrid que entreouvira a conversa dele com Madame Maxime, mas Hagrid continuava falando, aparentemente inconsciente de que tivesse dito alguma coisa estranha.
— Sabe de uma coisa, Harry? — disse ele tirando os olhos da foto do pai, os olhos muito brilhantes. — Quando o conheci, você me lembrou um pouco de mim. Mãe e pai desaparecidos e você sentindo que não ia se adaptar a Hogwarts, lembra? Não tinha muita certeza de que estava à altura... E agora, olha só você, Harry! Campeão da escola!
Ele fitou o garoto um instante e então disse, muito sério:
— Sabe o que eu adoraria, Harry? Eu adoraria ver você vencer, realmente adoraria. Você iria mostrar a eles todos... Não é preciso ser puro-sangue para fazer isso. Você não tem que se envergonhar do que é. Mostraria a eles que Dumbledore é quem tem razão quando deixa qualquer um entrar desde que seja capaz de fazer mágica. Como é que você está indo com aquele ovo, Harry?
— Ótimo — disse Harry. — Realmente ótimo.
O rosto infeliz de Hagrid se abriu num grande sorriso lacrimoso.
— O meu garoto... Mostre a eles, Harry, mostre a eles. Derrote eles todos.
Mentir para Hagrid não era bem o mesmo que mentir para outras pessoas.
Harry voltou para o castelo mais no finzinho da tarde com Rony e Hermione, sem ter coragem de varrer a expressão de felicidade do rosto barbudo de Hagrid ao imaginá-lo vencendo o torneio. O ovo incompreensível pesou mais que nunca na consciência de Harry naquela noite, e quando finalmente se deitou já tomara uma decisão — estava na hora de guardar o orgulho na prateleira e ver se a dica de Cedrico valia alguma coisa.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
O Ovo e o Olho
Uma vez que Harry não fazia idéia de quanto tempo deveria gastar no banho para decifrar o segredo do ovo de ouro, ele resolveu tomá-lo à noite, quando poderia demorar o quanto quisesse. Embora relutasse em aceitar mais favores de Cedrico, ele resolveu também usar o banheiro dos monitores-chefe, muito menos gente tinha permissão de entrar lá, por isso era muito menos provável que ele fosse incomodado.
Harry planejou sua excursão cuidadosamente, porque já fora uma vez apanhado por Filch, o zelador, no meio da noite, fora da cama e dos limites estabelecidos, e não tinha vontade de repetir a experiência. A Capa da Invisibilidade seria, naturalmente, essencial, e como precaução extra, Harry pensou em levar o Mapa do Maroto, que, depois da capa era o recurso mais útil para infringir regulamentos que Harry possuía.
O mapa mostrava toda a propriedade de Hogwarts, inclusive seus muitos atalhos e passagens secretas e, o que era mais importante, mostrava as pessoas no interior do castelo como minúsculos pontinhos identificados por legendas que se deslocavam pelos corredores, de modo que Harry seria alertado se alguém se aproximasse do banheiro.
Na noite de quinta-feira, ele subiu discretamente ao dormitório, vestiu a capa, voltou à sala, e, exatamente como fizera na noite em que Hagrid lhe mostrara os dragões, esperou que o buraco do retrato se abrisse. Desta vez foi Rony quem esperou do lado de fora para dar a senha à Mulher Gorda (Pastéis de Banana).
— Boa sorte — murmurou Rony, entrando pelo buraco comunal na mesma hora em que Harry saía. Estava incômodo andar coberto pela capa hoje, porque Harry levava debaixo de um braço o ovo de ouro e, com o outro, segurava o mapa diante do nariz.
No entanto, os corredores banhados de luar estavam desertos e silenciosos, e, consultando o mapa a intervalos estratégicos, Harry pôde ter certeza de não encontrar ninguém que quisesse evitar. Quando chegou à estátua de Bons, o Pasmo, um bruxo com cara de desorientado com as luvas nas mãos trocadas, ele localizou a porta certa, encostou-se nela e murmurou a senha Frescor de Pinho, conforme Cedrico o instruíra.
A porta se abriu com um rangido. Harry entrou, trancou-a ao passar e despiu a Capa da Invisibilidade, olhando ao redor.
Sua reação imediata foi que valia a pena ser monitor-chefe só para poder usar aquele banheiro. Tinha uma iluminação suave fornecida por um esplêndido lustre de muitas velas e tudo era feito de mármore branco, inclusive o que parecia ser uma piscina retangular e vazia rebaixada no meio do piso.
Tinha umas cem torneiras de ouro em volta da borda, cada uma com uma pedra preciosa de cor diferente engastada na parte superior. Havia também um trampolim. Longas cortinas de linho protegiam as janelas, havia uma montanha de toalhas brancas e macias a um canto e um único quadro com moldura de ouro na parede. Era uma sereia loura, profundamente adormecida sobre um rochedo, cujos longos cabelos esvoaçavam sobre o rosto toda vez que ela ressonava.
Harry pôs a capa, o ovo e o mapa de lado e avançou, olhando para os lados, seus passos ecoando nas paredes. Por mais magnífico que o banheiro fosse — e por mais desejoso que estivesse de experimentar algumas daquelas torneiras —, agora que estava ali, ele não pôde reprimir de todo a sensação de que Cedrico podia estar gozando a cara dele. Como é que aquilo poderia ajudá-lo a resolver o mistério do ovo?
Mesmo assim, ele deixou uma das toalhas macias, a capa, o mapa e o ovo a um lado da banheira — que mais parecia uma piscina —, depois se ajoelhou e abriu algumas torneiras.
Percebeu imediatamente que havia diferentes tipos de espuma de banho misturados à água, embora não fosse um banho de espuma que Harry já tivesse experimentado.
Uma torneira jorrava bolhas rosas e azuis do tamanho de bolas de futebol, outra, uma espuma branca gelada tão densa que Harry achou que poderia sustentar seu peso se ele a quisesse experimentar, uma terceira despejava nuvens perfumadíssimas na superfície da água. Harry divertiu-se durante algum tempo abrindo e fechando torneiras, curtindo particularmente o efeito de uma, cujo jorro ricocheteava na superfície da água e subia em grandes arcos. Então, quando a piscina funda se encheu de água, espuma e bolhas (que considerando seu tamanho duravam pouquíssimo tempo), Harry fechou todas as torneiras, despiu o pijama, os chinelos e o roupão e entrou na água.
Era tão funda que seus pés mal tocavam o piso, e ele chegou a nadar duas vezes o comprimento da piscina antes de voltar à borda, pingando água, e examinar atentamente o ovo. Por mais prazeroso que fosse nadar na água quente e espumosa com nuvens de vapor de cores variadas fumegando a toda volta, nenhuma intuição genial lhe ocorreu, nenhum súbito clarão de compreensão.
Harry esticou os braços, ergueu o ovo nas mãos molhadas e abriu-o. O som agudo do choro encheu o banheiro, ecoou, ressoou no mármore, mas continuou a lhe parecer tão incompreensível quanto antes, se não até mais incompreensível com todos os ecos que produzia. Ele tornou a fechá-lo com um estalido, preocupado que o som pudesse atrair Filch, se perguntando se aquilo não teria sido o que Cedrico planejara — e então, alguém falou, dando-lhe um susto tão grande que ele deixou cair o ovo que saiu quicando pelo chão do banheiro.
— Eu tentaria colocá-lo dentro da água, se fosse você.
Harry engoliu uma quantidade considerável de bolhas com o choque. Ficou em pé, cuspindo água, e viu o fantasma de uma garota de aspecto muito tristonho sentado de pernas cruzadas em cima de uma das torneiras. Era a Murta Que Geme, cujos soluços em geral eram ouvidos na tubulação de um vaso sanitário em um banheiro três andares abaixo.
— Murta! — exclamou Harry indignado. — Eu... Eu não estou usando nada!
A espuma era tão densa que isso não fazia a menor diferença, mas ele teve a sensação desagradável de que a Murta o estivera espionando de uma das torneiras desde que ele chegara.
— Fechei os olhos quando você entrou — disse ela, pestanejando para ele por trás dos grossos óculos. — Faz séculos que você não vai me ver.
— Tá... Bem... — disse Harry, dobrando ligeiramente os joelhos, só para ter certeza absoluta de que Murta não pudesse ver nada além da sua cabeça. — Não posso ficar entrando no seu banheiro, não é? É de garotas.
— Você não costumava se importar — respondeu a Murta, infeliz. — Você costumava passar um tempão lá.
Era verdade, mas apenas porque ele, Rony e Hermione tinham descoberto que o banheiro interditado da Murta era um lugar conveniente para preparar em segredo a Poção Polissuco — uma poção proibida que transformara Harry e Rony em réplicas vivas de Crabbe e Goyle durante uma hora, para que eles pudessem entrar escondidos na sala comunal da Sonserina.
— Fui repreendido por entrar lá — disse Harry, o que era uma meia verdade, certa vez Percy o apanhara saindo do banheiro da Murta. — Depois disso, achei melhor não voltar.
— Ah... Entendo... — disse a Murta, cutucando uma pinta no queixo de um jeito tristonho. — Bom... Em todo o caso... Eu experimentaria pôr o ovo na água. Foi o que Cedrico Diggory fez.
— Você andou espionando ele também? — indignou-se Harry. — Que é que você faz, entra aqui à noite para ver os monitores tomarem banho?
— Às vezes — disse a Murta com um ar sonso —, mas nunca apareci para falar com ninguém antes.
— Que grande honra — disse Harry aborrecido. — Fica de olhos fechados!
Ele verificou se Murta tampara bem os óculos antes de se içar para fora do banho, enrolando bem a toalha no corpo e indo apanhar o ovo. Depois que ele entrou de novo na água, a Murta espiou entre os dedos e disse:
— Anda, então... Abre ele debaixo da água!
Harry mergulhou o ovo sob a superfície espumosa e abriu-o... E desta vez, não ouviu nenhum grito. Saía dele um som gorgolejante, uma música cujas palavras ele não conseguia distinguir através da água.
— Você precisa mergulhar a cabeça também — disse a Murta, que parecia estar adorando a idéia de dar ordens ao garoto. — Anda!
Harry tomou fôlego e escorregou para dentro da água — e agora, sentado no fundo da banheira de mármore cheia de espuma, ouviu um coro inquietante de vozes que cantavam para ele e que vinham do ovo em suas mãos:
Procure onde nossas vozes parecem estar,
Não podemos cantar na superfície,
E enquanto nos procura, pense bem:
Levamos o que lhe fará muita falta,
Uma hora inteira você deverá buscar,
Para recuperar o que lhe tiramos,
Mas passada a hora — adeus esperança de achar.
Tarde demais, foi-se, ele jamais voltará.
Harry soltou o corpo e emergiu à superfície espumosa, sacudindo os cabelos para longe dos olhos.
— Ouviu? — perguntou a Murta.
— Ouvi...
"Procure onde nossas vozes parecem estar..."
— Agüenta aí, preciso ouvir de novo... — Ele voltou a afundar na água.
Foi preciso ouvir a música do ovo mais três vezes para decorá-la, depois Harry caminhou um pouco dentro da piscina, concentrando o pensamento, enquanto a Murta continuava sentada a observá-lo.
— Preciso procurar pessoas que não podem usar a voz na superfície... — disse o garoto lentamente. — Hum... Quem poderia ser?
— Você é meio devagar, não é não?
Harry nunca vira a Murta tão animada, a não ser no dia em que a dose da Poção Polissuco de Hermione deixara a garota com a cara coberta de pêlos e um rabo de gato.
Harry deixou seu olhar vagar pelo banheiro, refletindo... Se as vozes só podiam ser ouvidas embaixo da água, então fazia sentido que pertencessem a criaturas sub-aquáticas. Ele passou essa teoria para Murta que riu dele.
— Bem, isso foi o que o Diggory pensou. Ficou deitado aí falando sozinho um tempão. E põe tempão nisso... Quase até a espuma toda desaparecer...
— Sub-aquáticas... — disse Harry lentamente. — Murta... Quem mais mora no lago, além da lula gigante?
— Ah, todo o tipo de coisa. Às vezes eu vou até lá... Às vezes não tenho escolha, quando alguém puxa a descarga do meu vaso sem eu estar esperando...
Fazendo força para não pensar na Murta Que Geme descendo veloz por um cano até o lago, misturada ao conteúdo de um vaso, Harry falou:
— Bem, alguma coisa lá tem voz humana? Calma aí...
Os olhos de Harry tinham pousado sobre o quadro da sereia sonolenta na parede.
— Murta, tem sereias lá?
— Aaah, muito bem — disse ela, com os grossos óculos cintilando. — Diggory levou muito mais tempo para sacar! E olha que ela estava acordada — a Murta acenou com a cabeça em direção à sereia, com uma expressão de grande desagrado no rosto tristonho — dando risadinhas, se exibindo e fazendo cintilar as barbatanas...
— É isso então, não é? — perguntou Harry excitado. — A segunda tarefa é ir procurar as sereias no lago e... E...
Mas ele subitamente percebeu o que estava dizendo e sentiu a excitação se esvair como se alguém tivesse acabado de puxar uma tomada de sua barriga.
Ele não era bom nadador; nunca pudera praticar muito. Duda recebera aulas quando os dois eram menores, mas tia Petúnia e tio Válter, sem dúvida na esperança de que Harry um dia se afogasse, não tinham se incomodado de lhe ensinar. Nadar duas vezes essa banheira não era problema, mas aquele lago era muito grande e muito fundo... E as sereias com certeza viviam lá em baixo...
— Murta — perguntou Harry, lentamente —, como é que eu vou respirar?
Ao ouvir isso, os olhos da Murta se encheram de lágrimas inesperadas.
— Que falta de tato! — resmungou ela, procurando um lenço nas vestes.
— Que é que é falta de tato? — perguntou Harry espantado.
— Falar de respirar na minha frente! — disse ela com uma voz aguda que ecoou muito alta pelo banheiro. — Quando eu não posso... Quando eu não respiro... Há séculos... — Ela escondeu o rosto no lenço e fungou alto.
Harry se lembrou como a Murta sempre fora sensível com essa questão de estar morta, mas nenhum dos outros fantasmas que ele conhecia criava caso por isso.
— Desculpe — disse com impaciência. — Eu não quis... Me esqueci...
— Ah, é, é muito fácil esquecer que a Murta está morta — disse ela, engolindo em seco e fitando o garoto com os olhos inchados. — Ninguém nunca sentiu falta de mim, nem quando eu estava viva. Levou horas para encontrarem o meu corpo, eu sei, fiquei sentada lá dentro esperando alguém aparecer. Olívia Hornby entrou no banheiro e perguntou: "Você está aí emburrada outra vez, Murta? Porque o ProfessorDippet me pediu para a procurar...” Ai ela viu o meu corpo... Aaaah, isso ela não esqueceu até o dia da morte, eu fiz questão de garantir... Eu a seguia para todo o lado para lembrar, me lembro de que no dia do casamento do irmão dela...
Mas Harry não estava escutando, voltara a pensar na música das sereias:
"Levamos o que lhe fará muita falta ." Pelo jeito elas iam roubar alguma coisa dele, alguma coisa que ele ia precisar recuperar. Que é que elas iam levar?
— ... Então, é claro, ela foi ao Ministério da Magia para me obrigar a parar de persegui-la, então tive que voltar para cá, viver no meu banheiro.
— Ótimo — disse Harry vagamente. — Bem, já cheguei bem mais longe do que estava... Quer fechar os olhos outra vez, eu vou sair da água.
Ele apanhou o ovo no fundo da banheira, saiu, se enxugou e tornou a vestir o pijama e o roupão.
— Você vai vir um dia desses me visitar no meu banheiro? — perguntou a Murta Que Geme em tom lamurioso, quando Harry apanhou a Capa da Invisibilidade.
— Hum... Vou tentar — prometeu Harry, embora intimamente pensasse que a única maneira de tornar a visitar o banheiro da Murta seria se os outros banheiros do castelo estivessem interditados. — Até outro dia, Murta... Obrigado pela ajuda.
— Tchauzinho — disse ela tristonha, e quando Harry se cobriu com a capa ele a viu disparar de volta à torneira.
Já do lado de fora no corredor escuro, Harry examinou o Mapa do Maroto para verificar se o caminho continuava livre. Sim, os pontinhos que pertenciam a Filch e à Madame Nor-r-ra estavam seguros na sala do zelador... Nada mais parecia estar se mexendo à exceção do Pirraça, que andava saltitando pela sala de troféus no andar de cima... Harry acabara de dar o primeiro passo de volta à Torre da Grifinória, quando uma outra coisa no mapa chamou sua atenção... Uma coisa decididamente estranha.
Pirraça não era a única coisa que estava se mexendo. Um pontinho isolado esvoaçava por uma sala no canto inferior à esquerda — a sala de Snape. Mas o ponto não estava identificado como "Severo Snape"... Era Bartolomeu Crouch.
Harry arregalou os olhos para o ponto. Todos supunham que o Sr. Crouch estava doente demais para trabalhar ou vir ao Baile de Inverno — então, que é que ele estava fazendo secretamente em Hogwarts à uma hora da manhã? Harry observou com atenção o ponto se mexer para um lado e outro da sala, detendo-se aqui e ali...
O garoto hesitou, pensando... Então, sua curiosidade levou a melhor. Ele deu meia-volta e saiu na direção oposta, para a escada mais próxima. Ia ver o que Crouch andava aprontando. Harry desceu as escadas o mais silenciosamente que pôde, embora os rostos em alguns quadros se virassem cheios de curiosidade ao ouvir o rangido do soalho, o atrito do pijama no seu roupão. Ele seguiu, sorrateiro, pelo corredor, empurrou uma tapeçaria mais ou menos a meio caminho, e desceu por uma escada estreita, um atalho que o levaria dois andares abaixo. Harry mantinha os olhos no mapa, pensando... Não parecia coisa do Sr. Crouch, um homem correto e cumpridor das leis andar xeretando a sala de alguém a essa hora da noite...
Então, no meio da escada, sem pensar no que estava fazendo, sem se concentrar em nada exceto no estranho comportamento do Sr. Crouch, sua perna de repente afundou pelo degrau defeituoso que Neville sempre se esquecia de pular. Ele se desequilibrou, e o ovo de ouro, ainda molhado do banho, escorregou de baixo do seu braço — ele se atirou à frente para tentar agarrá-lo, mas tarde demais: o ovo caiu pela longa escada batendo e ecoando como um tambor em cada degrau — a Capa da Invisibilidade escorregou — Harry agarrou-a, mas o Mapa do Maroto escapuliu de sua mão e escorregou seis degraus, onde, com a perna enterrada até o joelho, o garoto não pôde alcançá-lo.
O ovo de ouro atravessou a tapeçaria ao pé da escada, se abriu e soltou o seu lamento alto no corredor em baixo. Harry puxou a varinha e se esticou para bater com ela no Mapa do Maroto, para apagá-lo, mas o pergaminho estava fora do seu alcance...
Cobrindo-se de novo com a capa, Harry se endireitou, escutando com atenção, os olhos apertados de medo... E, quase imediatamente...
— PIRRAÇA!
Era o inconfundível grito de Filch caçando o poltergeist. Harry ouviu os passos rápidos e arrastados se aproximarem cada vez mais, a voz asmática berrando de fúria.
— Que estardalhaço é esse? Quer acordar o castelo inteiro? Vou pegar você Pirraça, vou pegar, você vai... E o que é isso?
Os passos de Filch pararam, ouviu-se um estalido metálico e o lamento parou — Filch apanhara o ovo e o fechara. Harry ficou muito quieto, a perna ainda entalada no degrau mágico, à escuta. A qualquer momento agora, Filch iria afastar a tapeçaria, esperando ver Pirraça... E não haveria Pirraça algum... E se ele subisse as escadas, encontraria o Mapa do Maroto... E com ou sem Capa da Invisibilidade, o mapa mostraria "Harry Potter" parado exatamente onde estava.
— Ovo? — exclamou Filch baixinho ao pé da escada. — Minha queridinha! –Madame Nor-r-ra obviamente o acompanhava. — Isto é uma pista do Tribruxo! Isto pertence a um campeão de escola!
Harry se sentiu enjoado, seu coração batia forte e depressa...
— PIRRAÇA! — rugiu Filch com satisfação. — Você andou furtando!
O zelador empurrou a tapeçaria embaixo e Harry viu seu rosto balofo e feio, seus olhos claros esbugalhados espiarem para o alto da escada escura (e para Filch) deserta.
— Se escondendo, é? — perguntou baixinho. — Estou indo pegar você, Pirraça... Você foi roubar uma pista do Tribruxo, Pirraça... Dumbledore vai expulsar você daqui por isso, seu poltergeist gatuno e mau caráter...
Filch começou a subir a escada, a gata magricela, cor de serragem, em seus calcanhares. Os olhos de Madame Nor-r-ra iguais a lanternas, tão semelhantes aos do dono, estavam fixos diretamente em Harry. O garoto já tivera antes ocasião de se perguntar se a Capa da Invisibilidade funcionava para os gatos... Doente de apreensão, ele observou Filch se aproximar cada vez mais, trajando seu velho roupão de flanela — tentou desesperadamente soltar a perna entalada, mas só conseguiu que ela afundasse mais alguns centímetros —, a qualquer segundo agora, Filch iria ver o mapa ou pisar bem em cima dele...
— Filch? Que é que está havendo?
O zelador parou a poucos degraus abaixo de Harry e se virou. Ao pé da escada estava a única pessoa que poderia piorar a situação de Harry — Snape.
Estava usando um longo camisão cinzento e parecia lívido.
— É o Pirraça, professor — murmurou Filch maldosamente. — Ele atirou este ovo escada abaixo. — Snape galgou depressa os degraus e parou ao lado de Filch.
Harry cerrou os dentes, convencido de que as marteladas do seu coração o denunciariam a qualquer minuto...
— Pirraça? — exclamou Snape baixinho, olhando para o ovo nas mãos de Filch. — Mas Pirraça não poderia ter entrado na minha sala...
— Esse ovo estava na sua sala, professor?
— Claro que não — retorquiu Snape. — Ouvi batidas e lamentos...
— Foi, professor, isso foi o ovo...
— ... Vim investigar...
— ... Pirraça atirou o ovo, professor...
— ... E quando passei pela minha sala, vi que os archotes estavam acesos e a porta de um armário estava entreaberta! Alguém a andou revistando!
— Mas Pirraça não poderia...
— Eu sei que não poderia, Filch! — respondeu Snape com rispidez. — Lacro a minha sala com um feitiço que somente um bruxo poderia desfazer! — Snape olhou para o alto da escada, diretamente através de Harry, depois para o corredor embaixo.
— Quero que você venha me ajudar a procurar o intruso, Filch.
— Eu... Claro, professor... Mas...
Filch mirou as escadas, o olhar desejoso atravessando Harry, e o garoto percebeu claramente que o homem relutava em deixar passar uma oportunidade de encurralar Pirraça. Vai, suplicou Harry a ele silenciosamente, vai com o Snape... Vai... Madame Nor-r-ra espiava em volta das pernas do dono... Harry teve a nítida impressão de que a gata o farejava... Por que ele enchera aquela banheira com tanta espuma perfumada?
— A questão, professor, é que — disse Filch com voz queixosa — o diretor vai ter que me escutar desta vez, Pirraça andou furtando de um estudante, talvez seja a minha chance de o ver expulso do castelo para sempre...
— Filch, estou me lixando para esse desgraçado desse poltergeist, é a minha sala que...
Toque. Toque. Toque.
Snape parou de falar muito abruptamente. Ele e Filch, os dois, olharam para o pé da escada. Harry viu Olho-Tonto Moody aparecer mancando pela estreita abertura entre as cabeças deles. Moody estava usando sua velha capa de viagem por cima do camisão e se apoiava na bengala como sempre.
— É uma festa em que todos vão de pijama? — rosnou ele para os dois na escada.
— O Professor Snape e eu ouvimos ruídos, professor — informou Filch imediatamente. — Pirraça, o poltergeist, atirando coisas pelo castelo, como sempre, e Professor Snape descobriu que alguém tinha invadido a sala...
— Cale a boca! — sibilou Snape.
Moody deu mais um passo em direção à escada. Harry viu seu olho mágico passar por Snape e, depois, inconfundivelmente, por ele. O coração de Harry deu um solavanco horrível. Moody via através das Capas da Invisibilidade... Somente ele era capaz de compreender toda a estranheza da cena... Snape de camisão, Filch agarrado ao ovo e ele, Harry, entalado na escada às costas dos dois. A boca torta e rasgada de Moody se abriu com a surpresa.
Por alguns segundos ele e Harry se encararam nos olhos. Então, Moody fechou a boca e tornou a virar seu olho azul para Snape.
— Eu ouvi isso direito, Snape? — perguntou ele lentamente. — Alguém invadiu sua sala?
— Não tem importância — disse Snape com frieza.
— Muito ao contrário — rosnou Moody —, é muito importante. Quem iria querer invadir sua sala?
— Um estudante, eu diria. — Harry podia ver uma veia latejar medonhamente na têmpora gordurosa de Snape. — Já aconteceu antes. Desapareceram ingredientes para poções do meu estoque particular... Sem dúvida estudantes tentando fazer misturas ilegais...
— Acha que eles andavam atrás de ingredientes para poções, eh? — perguntou Moody. — Não está escondendo mais nada em sua sala, está?
Harry viu o contorno do rosto macilento de Snape ficar cor de tijolo, a veia em sua têmpora pulsar mais rápida.
— Você sabe que não estou escondendo nada, Moody — respondeu ele em um tom de voz suave e perigoso —, porque você revistou pessoalmente a minha sala, e exaustivamente.
O rosto de Moody se contorceu em um sorriso.
— Privilégio de Auror, Snape. Dumbledore me mandou ficar vigilante...
— Acontece que Dumbledore confia em mim — disse Snape por entre os dentes cerrados. — Recuso-me a acreditar que tenha dado ordens para revistar minha sala!
— Claro que Dumbledore confia em você — rosnou Moody. — Ele é um homem de boa fé, não é? Acredita em dar uma segunda oportunidade. Mas eu... Eu digo que certos traços de uma pessoa não mudam nunca, Snape. Traços que não mudam nunca, entende o que eu quero dizer?
Snape subitamente fez uma coisa muito estranha. Segurou o braço esquerdo convulsivamente com a mão direita, como se alguma coisa nele o incomodasse. Moody deu uma risada.
— Volte para a cama, Snape.
— Você não tem autoridade para me mandar a lugar algum! — sibilou Snape, soltando o braço como se estivesse zangado consigo mesmo. — Tenho tanto direito de andar por esta escola depois do anoitecer quanto você!
— Então ande o quanto quiser — disse Moody, mas sua voz estava carregada de ameaça. — Espero um dia desses encontrá-lo num corredor escuro... A propósito, você deixou cair uma coisa...
Com uma pontada de horror, Harry viu Moody apontar para o Mapa do Maroto, que continuava caído na escada, uns seis degraus abaixo dele. Quando Snape e Filch se viraram para olhar, Harry mandou para o ar toda a cautela, ergueu os braços por baixo da capa e acenou furiosamente para atrair a atenção de Moody, falando sem emitir nenhum som: "É meu! Meu!" Snape estendera a mão para apanhar o mapa, uma medonha expressão de compreensão se desenhando em seu rosto...
— Accio pergaminho!
O mapa voou para o alto, escapando dos dedos estendidos de Snape, e mergulhou em direção à mão de Moody.
— Me enganei — disse ele calmamente. — É meu, devo ter deixado cair hoje mais cedo...
Mas os olhos negros de Snape correram do ovo nos braços de Filch para o mapa na mão de Moody e Harry percebeu que o professor estava somando dois mais dois, como só ele era capaz de fazer...
— Potter — disse ele baixinho.
— Que foi que você disse? — perguntou Moody calmamente, dobrando o mapa e embolsando-o.
— Potter! — rosnou Snape e ele chegou mesmo a virar a cabeça para o lugar em que Harry estava, como se de repente pudesse vê-lo. — Esse ovo é o ovo de Potter. Esse pergaminho pertence ao Potter. Já o vi antes e estou reconhecendo! Potter está aqui! Potter está coberto pela Capa da Invisibilidade!
Snape estendeu as mãos para frente como um cego e começou a subir a escada; Harry poderia jurar que as narinas enormes do professor estavam se dilatando, tentando farejá-lo — com a perna presa, o garoto se deitou para trás, tentando evitar as pontas dos dedos de Snape, mas a qualquer momento...
— Não há nada aí, Snape! — disse Moody com rispidez. — Mas terei prazer em contar ao diretor como os seus pensamentos rapidamente voaram para Harry Potter!
— Está querendo dizer o quê com isso? — rosnou Snape, voltando-se mais uma vez para encarar Moody, as mãos ainda estendidas, a centímetros do peito de Harry.
— Quero dizer que Dumbledore está muito interessado em saber quem é que está querendo acabar com aquele garoto! — respondeu Moody, mancando mais para junto da escada. — E eu também estou Snape... Muito interessado... — A luz dos archotes iluminou brevemente seu rosto mutilado, de modo que as cicatrizes e o pedaço que faltava do seu nariz pareceram mais fundos e mais escuros que nunca.
Snape estava olhando para baixo, para Moody, e Harry não pôde ver a expressão do seu rosto. Por um instante, ninguém se mexeu nem disse nada.
Então Snape lentamente baixou as mãos.
— Eu meramente pensei — disse Snape, com uma voz de forçada calma — que se Potter anda outra vez passeando por aí a altas horas da noite... É um hábito indesejável que ele tem... Deviam obrigá-lo a parar. Para... Para sua própria segurança.
— Ah, entendo — disse Moody brandamente. — Você sempre tem em mente o que é melhor para Potter, não é mesmo?
Houve uma pausa. Snape e Moody continuaram a se encarar.
Madame Nor-r-ra miou alto, ainda espiando por trás das pernas de Filch, procurando a fonte do banho de espuma de Harry.
— Acho que vou voltar para a cama — disse Snape secamente.
— A melhor idéia que você já teve esta noite — comentou Moody. — Agora Filch, se me fizer o favor de me entregar este ovo...
— Não — exclamou Filch agarrando o ovo como se fosse um filho primogênito.
— Professor Moody, ele é a prova do comportamento traiçoeiro do Pirraça!
— É a propriedade do campeão de quem ele o roubou — disse Moody. — Entregue-o, agora.
Snape desceu com arrogância e passou por Moody sem dizer mais nada.
Filch fez um som de chilreio para Madame Nor-r-ra, que continuou vidrada em Harry por mais alguns segundos antes de se virar para acompanhar o dono. Ainda ofegando, Harry ouviu Snape se afastar pelo corredor; Filch entregou o ovo a Moody e também desapareceu de vista, resmungando para a gata:
— Tudo bem, doçura... Veremos Dumbledore amanhã de manhã... Contaremos a ele o que o Pirraça andou fazendo...
Uma porta bateu. Harry ficou olhando para Moody, que apoiou a bengala no primeiro degrau da escada e começou a subida em direção ao garoto, penosamente, uma batida surda a cada segundo passo.
— Essa foi por pouco, Potter.
— Foi... Eu... Hum... Obrigado — disse Harry com a voz fraca.
— Que é isso? — perguntou o professor, tirando o Mapa do Maroto do bolso e desdobrando-o.
— Mapa de Hogwarts — respondeu o garoto, desejando que Moody não demorasse muito a soltá-lo da escada, sua perna estava realmente doendo.
— Pelas barbas de Merlin! — sussurrou Moody, examinando o mapa, seu olho mágico endoidando. — É um senhor mapa, Potter!
— É, é... Muito útil. — Os olhos de Harry estavam começando a marejar de dor. — Hum... Professor Moody, o senhor acha que poderia me dar uma mãozinha...?
— Quê? Ah! É... Claro...
Moody segurou os braços de Harry e puxou-o, a perna do garoto se soltou do degrau defeituoso e ele subiu para o degrau acima. Moody continuou observando o mapa.
— Potter... — perguntou ele lentamente — não lhe aconteceu, por acaso, ver quem invadiu a sala de Snape? Neste mapa, quero dizer?
— Hum... Vi, vi sim... — admitiu Harry. — Foi o Sr. Crouch.
O olho mágico de Moody perpassou toda a superfície do mapa. De repente ele pareceu assustado.
— Crouch? Você... Você tem certeza, Potter?
— Absoluta.
— Bem, ele não está mais aqui — disse o professor, seu olho ainda percorrendo o mapa. — Crouch... Isso é muito... Muito interessante...
O professor ficou calado quase um minuto, ainda fitando o mapa. Harry percebeu que aquela notícia significava alguma coisa para Moody, e quis muito saber o quê. Ficou em dúvida se teria coragem de perguntar. Moody lhe dava um pouco de medo... No entanto, acabara de ajudá-lo a evitar uma grande confusão...
— Hum... Professor Moody... Por que o senhor acha que o Sr. Crouch queria dar uma olhada na sala de Snape?
O olho mágico de Moody abandonou o mapa e se fixou, trêmulo, em Harry.
Era um olhar penetrante e o garoto teve a impressão de que Moody o avaliava, pensando se deveria lhe responder ou o quanto lhe dizer.
— Vamos pôr a coisa desta maneira, Potter — murmurou ele finalmente — dizem que o velho Olho-Tonto é obcecado em apanhar bruxos das trevas... Mas Olho-Tonto não é nada, nadinha comparado a Bartô Crouch.
Ele continuou a examinar o mapa. Harry estava ardendo de vontade de ouvir mais.
— Professor Moody? — perguntou ele outra vez. — O senhor acha... Isso poderia ter alguma ligação com... Talvez o Sr. Crouch pense que tem alguma coisa acontecendo...
— O quê, por exemplo? — perguntou Moody energicamente.
Harry se perguntou o quanto se atreveria a dizer. Não queria que Moody adivinhasse que tinha uma fonte de informação fora de Hogwarts; isto poderia levar a perguntas perigosas sobre Sirius.
— Não sei — murmurou Harry —, tem coisas estranhas acontecendo ultimamente, não é? Tem saído no Profeta Diário... A Marca Negra na Copa Mundial, os Comensais da Morte e todo o resto...
Os dois olhos desiguais de Moody se arregalaram.
— Você é um menino perspicaz, Potter. — Seu olho mágico voltou a percorrer o Mapa do Maroto. — Crouch poderia estar pensando mais ou menos nesse sentido — disse ele lentamente. — Muito possível... Tem havido boatos esquisitos circulando por aí ultimamente, com a ajuda de Rita Skeeter, é claro. Eu reconheço que isso está deixando muita gente nervosa. — Um sorriso amargo torceu sua boca enviesada. — Ah, se tem uma coisa que detesto — murmurou ele, mais para si mesmo do que para Harry, e seu olho mágico se fixou no canto inferior esquerdo do mapa — é um Comensal da Morte que continuou em liberdade...
Harry encarou o professor. Seria possível que Moody estivesse dizendo o que Harry achava que estava dizendo?
— E agora sou eu que quero fazer a você uma pergunta, Potter — disse Moody, num tom mais profissional.
Harry sentiu o coração encolher; tinha achado que aquilo não iria demorar.
Moody ia perguntar onde ele arranjara o mapa, que era um objeto mágico muito duvidoso — e a história de como o mapa viera ter às suas mãos incriminava não somente a ele, mas ao seu próprio pai, a Fred e Jorge Weasley e ao Professor Lupin, seu professor anterior de Defesa contra as Artes das Trevas. Moody agitou o mapa diante de Harry, que se preparou...
— Posso pedir isso emprestado?
— Ah! — exclamou Harry. Gostava muito do mapa, mas, por outro lado, sentia-se extremamente aliviado de que Moody não estivesse perguntando onde o obtivera e não havia dúvida de que ele ficara devendo um favor ao professor. — Claro, tudo bem.
— Bom menino — rosnou Moody. — Posso fazer bom uso disso... Pode ser exatamente do que eu estava precisando... Certo, para a cama, Potter, vamos, agora...
Os dois subiram juntos a escada, Moody ainda examinando o mapa como se fosse um tesouro como ele jamais vira igual. Seguiram em silêncio até a porta da sala de Moody, onde o professor parou e encarou Harry.
— Você já pensou em seguir a carreira de auror, Potter?
— Não — respondeu Harry surpreso.
— Devia pensar nisso — disse Moody, acenando a cabeça e mirando Harry pensativo. — Sem dúvida devia... E incidentalmente... Estou achando que você não estava simplesmente levando esse ovo para passear hoje à noite?
— Hum... Não — respondeu Harry sorrindo. — Estive tentando decifrar a pista.
Moody piscou para o garoto, seu olho mágico endoidando outra vez.
— Nada como um passeio noturno para se ter idéias, Potter... Vejo você amanhã de manhã... — E entrando na sala, voltou sua atenção para o Mapa do Maroto e fechou a porta ao passar. Harry caminhou lentamente até a Torre da Grifinória, perdido em pensamentos sobre Snape, Crouch e o que significava tudo aquilo... Por que Crouch estava fingindo estar doente, se podia vir a Hogwarts quando quisesse? Que é que ele achava que Snape estava ocultando no escritório?
E Moody achando que ele, Harry, devia ser auror! Que idéia interessante... Mas quando Harry se enfiou silenciosamente em sua cama de colunas, dez minutos mais tarde, o ovo e a capa já guardados em segurança em seu malão, por alguma razão ele achou que gostaria de ver se os outros aurores também eram cheios de cicatrizes, antes de escolher essa carreira.
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