quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Harry Potter e Cálice de fogo. 1/7


Harry Potter
E O CÁLICE DE FOGO
Joanne K. Rowling

Harry Potter and the Goblet of Fire


SUMÁRIO

Capítulo Um — A Casa dos Riddle
Capítulo Dois — A Cicatriz
Capítulo Três — O Convite
Capítulo Quatro — De Volta à Toca
Capítulo Cinco — As "Gemialidades" Weasley
Capítulo Seis — A Chave do Portal
Capítulo Sete — Bagman e Crouch
Capítulo Oito — A Copa Mundial de Quadribol
Capítulo Nove — A Marca Negra
Capítulo Dez — Caos no Ministério
Capítulo Onze — A Bordo do Expresso de Hogwarts
Capítulo Doze — O Torneio TriBruxo
Capítulo Treze — Olho-Tonto Moody
Capítulo Catorze — As Maldições Imperdoáveis
Capítulo Quinze — Beauxbatons e Durmstrang
Capítulo Dezesseis — O Cálice de Fogo
Capítulo Dezessete — Os Quatro Campeões
Capítulo Dezoito — A Pesagem das Varinhas
Capítulo Dezenove — O Rabo-Córneo Húngaro
Capítulo Vinte — A Primeira Tarefa
Capítulo Vinte e Um — A Frente de Liberação dos Elfos Domésticos
Capítulo Vinte e Dois — A Tarefa inesperada
Capítulo Vinte e Três — O Baile de Inverno
Capítulo Vinte e Quatro — O Furo Jornalístico de Rita Skeeter
Capítulo Vinte e Cinco — O Ovo e O Olho
Capítulo Vinte e Seis — A Segunda Tarefa
Capítulo Vinte e Sete — A Volta de Almofadinhas
Capítulo Vinte e Oito — A Loucura do Sr. Crouch
Capítulo Vinte e Nove — O Sonho
Capítulo Trinta — A Penseira
Capítulo Trinta e Um — A Terceira Tarefa
Capítulo Trinta e Dois — Osso, Carne e Sangue
Capítulo Trinta e Três — Os Comensais da Morte
Capítulo Trinta e Quatro — Priori Incantatem
Capítulo Trinta e Cinco — Veritaserum
Capítulo Trinta e Seis — Os Caminhos se Separam
Capítulo Trinta e Sete — O Começo


É tempo de férias de verão e, certa noite, em seu quarto na Rua dos Alfeneiros número 4, Harry Potter acordou com a cicatriz ardendo intensamente.
Teve um sonho estranho, sobre o qual não conseguiu parar de pensar, intrigado, até receber aquele convite dos Weasley para assistir, nada mais nada menos, à Copa Mundial de Quadribol.
Não foi fácil convencer seu tio Válter a deixá-lo passar o resto das férias na casa da família Weasley, mas, ultrapassada esta barreira, Harry começa a vibrar com todas as emoções que envolvem um jogo internacional de Quadribol. A magia acontece... E é real todo o deslumbramento de nosso bruxinho órfão diante das extraordinárias equipes de atletas irlandeses e búlgaros, que se confrontam numa emocionante partida. No entanto, uma coisa terrível acontece e lança uma sombra sobre tudo e, principalmente, sobre Harry Potter.
O recomeço de mais um ano letivo vem amenizar os temores de Harry, que compartilha com os melhores amigos, Rony Weasley e Hermione Granger, todas as aventuras emocionantes que continuavam a acontecer na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Também neste quarto ano, acontecimentos inesperados — como, por exemplo, a presença de um novo professor de Defesa contra as Artes das Trevas e um evento extraordinário promovido na escola — alvoroçam os ânimos dos estudantes.
Outras escolas de magia se apresentam e alguns de seus alunos, ao lado de veteranos de Hogwarts, liderados pelo sábio Professor Dumbledore, terão de demonstrar todas as habilidades mágicas — e não-mágicas — que vêm adquirindo ao longo de suas vidas. Estarão eles preparados para tudo que lhes está reservado? Seu desempenho será satisfatório para que nada de grave lhes aconteça? Uma nova aventura de Harry Potter, criada pela genial J. K. Rowling.
A britânica J. K. Rowling é autora da série Harry Potter, que já foi vendida em dezenas de países e traduzida para diversos idiomas.
O primeiro livro da série, Harry Potter e a pedra filosofal, recebeu um prêmio inaudito do Scottish Arts Council, e a partir de então se tornou um fenômeno internacional, acumulando críticas entusiastas e prêmios importantes, como o National Book Award, o Book Awareds Children's Book of the Year e o Snarties Prize.
As férias de verão vão se arrastando e Harry Potter mal pode esperar pelo início do ano letivo. É o seu quarto ano na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, e há feitiços a serem aprendidos, poções a serem preparadas e aulas de Adivinhação, entre outras, a serem assistidas.
Harry anseia por tudo isso. Porém, muitos outros acontecimentos surpreendentes já estão em marcha...
Vocês nem podem imaginar!!!



CAPÍTULO UM
A Casa dos Riddle

 Os habitantes de Little Hangleton continuavam a chamá-la de "Casa dos Riddle", ainda que já fizesse muitos anos desde que a família Riddle morara ali. A casa ficava em um morro com vista para o povoado, algumas janelas pregadas, telhas faltando e a hera se espalhando livremente pela fachada.
Outrora uma bela casa senhorial, e, sem favor algum, a construção maior e mais imponente de toda a redondeza, a Casa dos Riddle agora estava úmida, em ruínas, e desocupada.
As pessoas do local concordavam que a velha casa dava arrepios. Meio século antes uma coisa estranha e terrível acontecera ali, uma coisa que os antigos habitantes do povoado ainda gostavam de discutir quando faltava assunto para fofocas. A história fora requentada tantas vezes e enfeitada em tantos pontos, que ninguém mais sabia onde estava a verdade. Todas as versões, porém, começavam no mesmo ponto: cinqüenta anos antes, ao amanhecer de uma bela manhã de verão, quando a casa dos Riddle ainda era bem cuidada e imponente, uma empregada entrou na sala de estar e encontrou os três Riddle mortos.
A empregada saiu correndo morro abaixo, aos berros, até o povoado, e acordou o maior numero possível de pessoas.
— Caídos na sala com os olhos abertos! Gelados! Ainda com a roupa do jantar!
A polícia foi chamada e Little Hangleton inteiro fervilhou de espanto, curiosidade e mal disfarçada excitação. Ninguém gastou fôlego em fingir tristeza com o que acontecera aos Riddle, porque eles eram muito impopulares. Os velhos Sr. e Sra. Riddle tinham sido ricos, esnobes e grosseiros, e seu filho adulto, Tom, era tudo isso em grau maior. A preocupação de todos que moravam em Little Hangleton era a identidade do assassino — pois não havia dúvida de que três pessoas aparentemente saudáveis não poderiam ter morrido, na mesma noite, de causas naturais.
O Enforcado, o bar local, faturou sem parar aquela noite; os habitantes do povoado apareceram em peso para discutir a matança. Foram recompensados por terem deixado o conforto de sua lareira, quando a cozinheira dos Riddle apareceu teatralmente e anunciou para o bar, repentinamente silencioso, que um homem chamado Franco Bryce acabara de ser preso.
— Franco! — exclamaram várias pessoas. — Nunca!
Franco Bryce era o jardineiro dos Riddle. Morava sozinho em uma casa malcuidada na propriedade dos patrões. Voltara da guerra com uma perna dura e uma intensa aversão por ajuntamentos e barulhos, e, desde então, trabalhava para os Riddle.
Houve um corre-corre geral para pagar bebidas para a cozinheira e ouvir maiores detalhes.
— Sempre achei que ele era esquisito — disse a mulher aos ouvintes ansiosos, depois do quarto xerez. — Assim, antipático. Tenho certeza de que não ofereci a ele só uma xícara de chá, ofereci bem umas cem. Nunca quis se misturar, nunca mesmo.
— Ah — disse uma mulher sentada ao balcão —, mas ele passou muito sofrimento na guerra, e gosta de uma vida tranqüila. Isso não é razão...
— Quem mais tinha a chave da porta dos fundos, então? — vociferou a cozinheira. — Desde que me entendo por gente, sempre teve uma chave de reserva pendurada na casa do jardineiro! Ninguém forçou a porta ontem à noite!
Não tem janelas quebradas! Franco só precisou entrar escondido na casa grande enquanto a gente dormia...
As pessoas trocaram olhares tenebrosos.
— Eu sempre achei que ele tinha um jeito ruim, e não me enganei — resmungou um homem junto ao balcão.
— Foi a guerra que deixou ele esquisito, se querem saber a minha opinião — disse o dono do bar.
— Eu disse que não queria desagradar a Franco, não disse, Dot? — falou uma mulher agitada a um canto.
— Gênio terrível — concordou Dot acenando a cabeça com vigor. — Me lembro quando ele era criança...
Na manhã seguinte, quase ninguém em Little Hangleton duvidava que Franco Bryce tivesse matado os Riddle.
Mas na cidadezinha vizinha de Great Hangleton, na delegacia de polícia escura e feia, Franco teimava em repetir sem parar que era inocente e que a única pessoa que ele vira perto da casa, no dia da morte dos Riddle, fora um adolescente estranho, de cabelos negros e rosto pálido. Ninguém mais no povoado vira o tal garoto e a polícia não teve dúvidas de que Franco o inventara.
Então, quando as coisas estavam ficando muito feias para Franco, chegou o laudo sobre os cadáveres dos Riddle e tudo mudou.
A polícia nunca vira um laudo mais esquisito. Uma equipe de legistas examinara os corpos e concluíra que nenhum dos Riddle fora baleado, envenenado, esfaqueado, estrangulado, sufocado ou, pelo que sabiam, sofrera qualquer violência. Com efeito, continuava o laudo, em tom de inconfundível perplexidade, os Riddle, tirando o fato de que estavam mortos, pareciam gozar de perfeita saúde. Os legistas observaram (como se estivessem decididos a encontrar alguma coisa errada nos cadáveres) que cada membro da família tinha uma expressão de terror no rosto — mas, segundo afirmava a frustrada polícia, quem já ouvira falar de alguém morrer de pavor e como não havia a menor prova de que os Riddle tivessem sido assassinados, a polícia foi obrigada a soltar Franco. Os mortos foram enterrados no cemitério da igreja de Little Hangleton e, por algum tempo, suas sepulturas se tornaram alvo da curiosidade geral. Para surpresa de todos, e acompanhado por uma nuvem de desconfiança, Franco Bryce voltou para sua casinha na propriedade dos Riddle.
— Para mim, foi ele quem matou a família e não me interessa o que a polícia disse — comentou Dot no Enforcado. — E se ele tivesse um pingo de decência, iria embora daqui, sabendo que a gente sabe que foi ele.
Mas Franco não foi embora. Ficou para cuidar do jardim para a família que veio morar logo depois na Casa dos Riddle, e para a próxima — porque nenhuma das duas se demorou muito. Em parte, talvez tenha sido por causa de Franco que cada proprietário dizia que o lugar dava uma sensação desagradável e, por falta de moradores, acabou se desmantelando.
O ricaço que era o atual dono da Casa dos Riddle nem morava lá nem dava um destino a casa, diziam no povoado que ele a mantinha por "causa dos impostos", embora ninguém entendesse muito bem o que significava isso. E o ricaço continuou a pagar a Franco para cuidar da jardinagem. Ele agora se aproximava do seu septuagésimo sétimo aniversário, muito surdo, a perna mais dura que nunca, mas era visto trabalhando pelos jardins quando fazia bom tempo, embora o mato já começasse a levar a melhor.
O mato não era, no entanto, o único problema que Franco precisava enfrentar. Os garotos do povoado tinham criado o hábito de atirar pedras nas janelas da Casa dos Riddle. Passavam de bicicleta por cima da grama que Franco se empenhava tanto para manter aveludada. Umas duas vezes eles haviam arrombado a velha casa para ganhar apostas. Sabiam que o velho Franco era dedicado à propriedade e achavam graça vê-lo mancando pelo jardim, brandindo a bengala e ralhando, a voz roufenha, com os invasores. Franco, por sua vez, acreditava que os garotos o atormentavam porque, tal qual seus pais e avós, achavam que ele era um assassino. Por isso, quando acordou certa noite de agosto e viu uma coisa muito estranha na casa, ele simplesmente supôs que os garotos estivessem indo um pouco mais longe em suas tentativas de castigá-lo.
Foi a perna dura que o acordou; doía mais do que nunca agora na velhice.
Franco se levantou e desceu as escadas até a cozinha pensando em tornar a encher a bolsa de água quente para aliviar a rigidez do joelho. Parado a pia, enchendo a chaleira, ele olhou para a Casa dos Riddle e viu uma luz brilhando nas janelas do primeiro andar. Franco percebeu na mesma hora o que estava acontecendo. Os garotos tinham invadido novamente a casa e, a julgar pelo bruxuleio da luz, haviam acendido a lareira.
Franco não possuía telefone e, de qualquer modo, desconfiava demais da polícia, desde que esta o levara para interrogatório depois das mortes dos Riddle.
Na mesma hora, ele pousou a chaleira, correu para cima o mais rápido que a perna dura lhe permitiu, e logo voltou à cozinha, completamente vestido, e apanhou uma velha chave enferrujada no gancho junto à porta. Depois, pegou a bengala, que deixara apoiada na parede, e saiu pela noite.
A porta de entrada da Casa dos Riddle não tinha sinais de arrombamento, e o mesmo acontecia com as janelas. Andando com dificuldade, Franco contornou a casa em direção aos fundos até chegar a uma porta semi-escondida pela hera, apanhou a velha chave, enfiou-a na porta e abriu -a silenciosamente.
Entrou em uma cozinha cavernosa. Havia muitos anos não entrava ali; ainda assim, mesmo no escuro, ele se lembrou de onde era a porta para o corredor e tateou até encontrá-la, as narinas invadidas pelo cheiro de podridão, os ouvidos atentos a qualquer som de passos ou vozes no primeiro andar.
Chegou ao corredor, que estava um pouquinho mais claro, graças às grandes janelas de caixilhos que havia de cada lado da porta de entrada, e começou a subir as escadas, abençoando a poeira grossa que cobria a pedra, porque abafava o som dos seus passos e de sua bengala.
No patamar, Franco virou à direita e viu imediatamente onde se encontravam os intrusos: no finzinho do corredor havia uma porta entreaberta de onde saía uma luz vacilante, que projetava uma longa nesga dourada no chão escuro. Franco foi se aproximando mais, segurando a bengala com firmeza. A alguns passos da entrada, conseguiu entrever uma faixa estreita do quarto adiante.
O fogo estava aceso na lareira. Isto o espantou. Parou e escutou com atenção, porque uma voz masculina falava dentro do quarto; parecia tímida e temerosa.
— Sobrou um pouco na garrafa, milorde, se ainda tiver fome.
— Mais tarde — respondeu uma segunda voz. Esta também pertencia a um homem, mas era estranhamente aguda e fria como uma rajada repentina de vento gélido. Alguma coisa naquela voz fez os poucos cabelos na nuca de Franco ficarem em pé. — Me leve mais para perto do fogo, Rabicho.
Franco virou a orelha direita para a porta, para ouvir melhor. Ouviu o tinido de uma garrafa que alguém pousava sobre uma superfície dura, depois o ruído prolongado e seco de uma cadeira pesada arrastando pelo chão. O jardineiro viu de relance um homenzinho, de costas para a porta, empurrando a cadeira conforme lhe pediram. Usava uma longa capa preta, e tinha uma grande pelada na parte de trás da cabeça.
Depois, ele desapareceu de vista.
— Aonde foi Nagini? — perguntou a voz fria.
— N... Não sei, milorde — disse a primeira voz, nervosamente. — Saiu para explorar a casa, acho...
— Você vai ordenhá-la antes de nos recolhermos, Rabicho — disse a segunda voz. — Vou precisar me alimentar durante a noite. A viagem me deu uma enorme canseira.
A testa enrugada, Franco inclinou o ouvido para mais perto da porta, e escutou. Houve uma pausa e, em seguida, o homem chamado Rabicho tornou a falar.
— Milorde, posso perguntar quanto tempo vamos ficar aqui?
— Uma semana — disse a voz fria. — Talvez mais. O lugar é razoavelmente confortável, e ainda não podemos dar seguimento ao plano. Seria tolice agir antes do fim da Copa Mundial de Quadribol.
Franco meteu um dedo nodoso no ouvido e girou-o. Com certeza, devido ao acúmulo de cera, ele ouvira a palavra "Quadribol", uma palavra que não existia.
— A... A Copa Mundial de Quadribol, milorde? — admirou-se Rabicho. (Franco enfiou o dedo com mais força no ouvido.) — Me perdoe, mas... Não compreendo... Por que precisamos esperar o fim da Copa Mundial?
— Porque, seu tolo, neste exato momento estão chegando ao país bruxos do mundo inteiro e todos os bisbilhoteiros do Ministério da Magia estarão em campo, à procura de sinais de atividades incomuns, verificando identidades e tornando a verificá-las. Estarão obcecados com a segurança, tentando impedir que os trouxas percebam alguma coisa. Por isso vamos aguardar.
Franco parou de tentar desentupir o ouvido. Ouvira distintamente as palavras "Ministério da Magia", "bruxos" e trouxas. Era óbvio que cada uma dessas expressões significava alguma coisa secreta, e Franco só conseguia pensar em dois tipos de gente que falava em código — espiões e bandidos. Franco apertou mais a bengala e apurou ainda mais os ouvidos.
— Milorde continua decidido, então? — perguntou Rabicho em voz baixa.
— Claro que estou decidido, Rabicho. — Agora havia um tom de ameaça em sua voz fria.
Seguiu-se uma pausa — e então Rabicho falou, as palavras saíram de sua boca num atropelo, como se ele estivesse se obrigando a falar antes de perder a coragem.
— Poderia ser feito sem o Harry Potter, milorde.
Outra pausa, mais longa, e então...
— Sem o Harry Potter? — sussurrou a segunda voz. — Entendo...
— Milorde, não estou dizendo isso porque me preocupo com o garoto! -explicou Rabicho, a voz subindo esganiçada. — O garoto não significa nada para mim, nadinha! É só porque se usássemos outro bruxo ou bruxa, qualquer um, a coisa poderia ser feita muito mais rapidamente! Se o senhor me permitisse deixá-lo por algum tempo... O senhor sabe que posso me disfarçar com muita eficiência... Eu voltaria em apenas dois dias com a pessoa necessária...
— Eu poderia usar outro bruxo — disse a primeira voz, baixinho — é verdade...
— Milorde, faz sentido — disse Rabicho, parecendo muito mais aliviado — pôr as mãos em Harry Potter seria tão difícil, ele está tão bem protegido...
— E então você se oferece para ir buscar um substituto? Estranho... Talvez a tarefa de cuidar de mim tenha se tornado cansativa para você, Rabicho? A sugestão de abandonar o plano não seria apenas uma tentativa de me abandonar?
— Milorde! N... Não tenho nenhum desejo de deixá-lo, absolutamente nenhum...
— Não minta para mim! — sibilou a segunda voz. — Sempre percebo, Rabicho! Você está arrependido de ter voltado para mim. Eu o horrorizo. Vejo você fazer careta quando olha para mim, sinto você estremecer quando me toca...
— Não! Minha devoção a milorde...
— Sua devoção não passa de covardia. Você não estaria aqui se tivesse aonde ir. Como posso sobreviver sem você, quando preciso que alguém me alimente a intervalos regulares? Quem vai ordenhar Nagini?
— Mas o senhor parece tão mais forte, milorde...
— Mentiroso — sussurrou a segunda voz. — Não estou mais forte e uns poucos dias sozinho seriam suficientes para me roubar a pouca saúde que recuperei com os seus cuidados desajeitados. Silêncio!
Rabicho, que estivera resmungando incoerentemente, calou-se na mesma hora. Durante alguns segundos, Franco não ouviu nada exceto o crepitar do fogo.
Então o segundo homem recomeçou a falar, num sussurro que era quase um silvo.
— Tenho minhas razões para usar o garoto, como já lhe expliquei, e não vou usar mais ninguém. Esperei treze anos. Mais uns meses não me farão diferença. Quanto à proteção que rodeia o garoto, creio que o meu plano funcionará. Preciso apenas um pouco de coragem de sua parte, Rabicho, e você encontrará coragem, a menos que queira sentir o peso da cólera de Lord Voldemort...
— Milorde, tenho que falar! — disse Rabicho, agora com pânico na voz. — Durante a nossa viagem repassei mentalmente o plano, milorde, o desaparecimento de Berta Jorkins não passará despercebido por muito tempo, e se dermos seguimento a ele, se eu enfeitiçar...
— Se? — murmurou a primeira voz. — Se? Se você der seguimento ao plano, Rabicho, o Ministério jamais precisará saber que mais alguém desapareceu. Você fará isso em surdina, sem confusão; eu bem gostaria de fazer isso pessoalmente, mas na minha condição atual... Vamos, Rabicho, mais um obstáculo vencido, e o caminho até Harry Potter estará livre. Não estou pedindo que você aja sozinho. Até lá, o meu fiel servo terá se reunido a nós.. .
— Eu sou um servo fiel — disse Rabicho, com um levíssimo traço de aborrecimento na voz.
— Rabicho, preciso de alguém com cérebro, alguém que nunca tenha vacilado em sua lealdade, e você, infelizmente, não satisfaz nenhum dos dois requisitos.
— Eu o encontrei — disse Rabicho, e agora decididamente havia irritação em sua voz. — Fui eu que o encontrei. Fui eu que lhe trouxe Berta Jorkins.
— É verdade — disse o segundo homem, parecendo achar graça. — Um lance de genialidade que eu nunca teria achado possível em você, Rabicho, embora, a verdade seja dita, você não fizesse idéia do quanto ela seria útil quando a pegou, não é?
— Eu... Eu achei que ela poderia ser útil, milorde...
— Mentiroso — disse novamente a primeira voz, a zombaria cruel mais acentuada do que nunca. — Mas não nego que a informação da mulher foi preciosa. Sem ela, eu nunca poderia ter traçado o nosso plano, e por isso você terá a sua recompensa, Rabicho. Vou deixá-lo realizar uma tarefa essencial para mim, uma que muitos seguidores meus dariam a mão direita para realizar...
— V... Verdade, milorde! Qual...? — Rabicho parecia outra vez aterrorizado.
— Ah, Rabicho, você não quer que eu estrague a surpresa! Sua parte virá bem no finzinho... Mas, prometo que você terá a honra de ser tão útil quanto Berta Jorkins.
— O senhor... O senhor... — a voz de Rabicho saiu repentinamente rouca, como se sua boca tivesse ficado muito seca. — O senhor... Vai... Me matar, também?
— Rabicho, Rabicho — disse a voz fria suavemente —, por que eu iria matá-lo? Matei Berta porque precisei. Ela não servia para mais nada depois do meu interrogatório, completamente inútil. Em todo o caso, haveria perguntas embaraçosas se ela tivesse voltado ao Ministério com a notícia de que encontrara você nas férias. Seria melhor que bruxos presumivelmente mortos não esbarrassem em bruxas do Ministério da Magia em hotéis à beira de estradas...
Rabicho murmurou alguma coisa tão baixinho que Franco não pôde ouvir, mas fez o segundo homem rir — uma risada sem alegria, fria como a sua fala.
— Poderíamos ter alterado a memória dela? Mas os Feitiços da Memória podem ser desfeitos por um bruxo poderoso, como eu provei ao interrogá-la. Teria sido um insulto à memória da bruxa não usar as informações que ela me forneceu, Rabicho.
Fora no corredor, Franco de repente percebeu que a mão que segurava a bengala se tornara escorregadia de suor. O homem de voz fria tinha matado uma mulher.
E falava disso sem um pingo de remorso — divertia-se. Ele era perigoso — um doido. E estava planejando outros assassinatos — esse garoto, Harry Potter, fosse ele quem fosse — corria perigo...
O jardineiro sabia o que devia fazer. Agora, como nunca antes, estava na hora de ir a policia. Ele sairia silenciosamente da casa e iria direto à cabine telefônica no povoado... Mas a voz fria recomeçara a falar e Franco continuou onde estava, paralisado, escutando tudo que podia.
— Mais um feitiço... Meu fiel servo em Hogwarts... E Harry Potter será praticamente meu, Rabicho. Está decidido. Não haverá mais discussões. Mas fique quieto. .. Acho que ouvi Nagini...
E a voz do segundo homem mudou. Começou a emitir ruídos que Franco jamais ouvira na vida, sibilava e bufava sem inspirar. Franco achou que ele devia estar tendo algum tipo de ataque ou acesso.
E então o jardineiro ouviu um movimento às suas costas no corredor escuro. Virou-se para olhar e quedou paralisado de medo.
Alguma coisa deslizava em sua direção pelo chão escuro do corredor, e quando se aproximou da nesga de luz, ele percebeu, com um choque de terror, que era uma cobra gigantesca, no mínimo, com três metros de comprimento.
Apavorado, pregado no chão, ele viu aquele corpo ondulante abrir uma trilha larga e curva na poeira espessa do chão, sempre mais próximo, o que faria?
O único meio de fugir era entrar no quarto onde os dois homens estavam sentados planejando matar, mas se ele ficasse onde estava a cobra certamente o mataria...
Mas antes que se decidisse, a cobra emparelhou com ele e então, incrivelmente, milagrosamente, passou; orientava-se pelos silvos e bufos que a voz fria emitia do outro lado da porta e, em segundos, a ponta do rabo da cobra, malhada de losangos, desapareceu pela abertura.
Havia suor na testa de Franco agora e a mão na bengala tremia.
No quarto, a voz fria continuava a silvar, e ocorreu a Franco uma idéia estranha, uma idéia impossível... Esse homem podia falar com as cobras. Franco não entendia o que estava acontecendo. Queria mais do que tudo voltar para a cama com a sua bolsa de água quente. O problema é que suas pernas não pareciam querer se mexer.
Enquanto estava parado ali, trêmulo, tentando se controlar, a voz fria voltou de repente a falar em inglês.
— Nagini trouxe notícias interessantes, Rabicho.
— Ver... Verdade, milorde? — respondeu Rabicho.
— Verdade. Segundo Nagini, tem um velho trouxa parado do lado de fora do quarto, escutando cada palavra que dizemos.
Franco não teve a menor chance de se esconder. Ouviu passos e em seguida a porta do quarto se escancarou. Um homem baixo de cabelos grisalhos e ralos, um nariz pequeno e pontudo, olhos lacrimosos, parou diante dele com uma mescla de medo e susto no rosto.
— Convide-o a entrar, Rabicho. Onde está a sua educação?
A voz fria vinha de uma velha poltrona diante da lareira, mas Franco não conseguiu ver quem falava. A cobra, por sua vez, se enroscara no tapete podre diante da lareira, em uma medonha imitação de bichinho de estimação.
Rabicho fez sinal para Franco entrar. Embora continuasse profundamente abalado, Franco segurou com firmeza a bengala e, coxeando, cruzou o portal.
O fogo na lareira era a única fonte de luz no quarto; projetava sombras longas e aranhosas nas paredes. Franco fixou o olhar nas costas da poltrona; o homem sentado nela parecia ser ainda menor do que o seu criado, pois Franco não conseguia sequer ver a parte de trás de sua cabeça.
— Você ouviu tudo, trouxa? — perguntou a voz fria.
— Do que foi que o senhor me chamou? — perguntou Franco, desafiando-o, porque agora que estava dentro do quarto, agora que chegara a hora de agir, ele se sentia mais corajoso, sempre fora assim na guerra.
— Chamei-o de trouxa — disse a voz calmamente. — Isso quer dizer que você não é bruxo.
— Eu não sei o que o senhor quer dizer por trouxa — respondeu Franco, com a voz mais firme. — Só sei é que esta noite ouvi o suficiente para despertar o interesse da polícia, ah, isto eu ouvi, O senhor já matou uma vez e está planejando matar mais! E vou-lhe dizer outra coisa — acrescentou, numa súbita inspiração —, minha mulher sabe que estou aqui e se eu não voltar...
— Você não tem mulher — disse a voz fria, muito baixinho. — Ninguém sabe que você está aqui. Você não disse a ninguém que vinha. Não minta para Lord Voldemort, trouxa, porque ele sabe... Ele sempre sabe...
— É mesmo? — retrucou Franco com aspereza. — Lord é? Ora, não tenho muito respeito pelos seus modos, milorde. Vire-se e me encare como homem, por que não faz isso?
— Mas eu não sou homem, trouxa — retrucou a voz fria, quase inaudível devido ao crepitar das chamas. — Sou muito, muito mais do que um homem. Mas... Por que não? Vou encará-lo... Rabicho, venha virar minha poltrona. O servo deu um gemido.
— Você me ouviu, Rabicho.
Lentamente, com o rosto contraído, como se preferisse fazer qualquer coisa a ter que se aproximar do seu senhor e do tapete em que se deitara a cobra, o homenzinho se adiantou e começou a girar a cadeira. A cobra ergueu a feia cabeça triangular e sibilou baixinho quando as pernas da poltrona se prenderam no tapete.
E, então, a poltrona ficou de frente para Franco e ele viu o que havia nela.
Sua bengala caiu no chão com estrépito. Ele abriu a boca e soltou um grito. Gritou tão alto que nunca ouviu as palavras que a coisa na poltrona disse ao erguer a varinha. Houve um relâmpago de luz verde, um ruído farfalhante e Franco Bryce desabou. Morreu antes de bater no chão.
A trezentos quilômetros dali, o garoto chamado Harry Potter acordou assustado.



CAPÍTULO DOIS
A cicatriz

 Harry estava deitado de costas, respirando com esforço como se tivesse corrido. Acordara de um sonho vivido, apertando o rosto com as mãos. A antiga cicatriz em sua testa, que tinha a forma de um raio, ardia sob seus dedos como se alguém tivesse comprimido sua pele com um arame em brasa.
Ele se sentou, uma das mãos ainda na cicatriz, a outra estendida no escuro à procura dos óculos que deixara na mesa-de-cabeceira. Ele os colocou e o quarto entrou em foco, iluminado por uma luz fraca e enevoada vinda de um lampião de rua fora da janela.
Harry tornou a passar os dedos pela cicatriz. Continuava dolorida. Ele acendeu o abajur ao seu lado, saiu da cama, atravessou o quarto, abriu o guarda-roupa e espiou no espelho que havia do lado interno da porta. Um menino magricela de catorze anos olhou para ele, os olhos muito verdes e intrigados sob os cabelos negros em desalinho. Examinou com mais atenção a cicatriz em sua imagem. Parecia normal, mas continuava ardendo.
Harry tentou se lembrar do que estivera sonhando antes de acordar.
Parecera tão real... Havia duas pessoas que ele conhecia e uma que não conhecia... Ele se concentrou, enrugando a testa, tentando se lembrar...
Veio à sua mente a imagem pouco nítida de um quarto escuro... Havia uma cobra em cima de um tapete diante da lareira... Um homenzinho chamado Pedro, de apelido Rabicho... E uma voz aguda e fria... A voz de Lord Voldemort. Só de pensar, Harry teve a sensação de que uma pedra de gelo estava descendo para o seu estômago...
Fechou os olhos com força e tentou se lembrar que aparência tinha Voldemort, mas foi impossível... Tudo que Harry sabia era que, no momento em que a poltrona girara, vira o que estava sentado nela, sentira um espasmo de horror que o acordara... Ou fora a dor na cicatriz?
E quem era o velho? Porque sem dúvida havia um velho; Harry o vira cair no chão. Tudo estava ficando confuso; o garoto levou as mãos ao rosto tampando a visão do quarto em que estava, tentando reter a imagem daquele outro mal iluminado, mas era o mesmo que tentar segurar água com as mãos; os detalhes agora desapareciam com a mesma rapidez com que ele tentava retê-los...
Voldemort e Rabicho estiveram conversando sobre alguém que haviam matado, embora Harry não conseguisse lembrar o nome... E estiveram planejando matar mais alguém... Ele...
Harry tirou as mãos do rosto, abriu os olhos e contemplou o quarto a toda a volta como se esperasse ver alguma coisa diferente ali. Como era de esperar, havia uma quantidade extraordinária de coisas diferentes em seu quarto. Havia um malão de madeira aberto ao pé da cama, deixando à mostra um caldeirão, uma vassoura, vestes negras e vários livros de feitiços. Rolos de pergaminho atulhavam a parte do tampo de sua escrivaninha que não estava levantada por causa de uma enorme gaiola vazia, em que sua coruja muito branca, Edwiges, normalmente se encarrapitava. No chão ao lado de sua cama havia um livro aberto; ele o estivera lendo antes de adormecer na véspera. As ilustrações do livro se mexiam.
Homens com vestes laranja-vivo voavam em vassouras e entravam e saíam do seu campo de visão, jogando uma bola vermelha.
Harry foi até o livro, apanhou-o e assistiu a um dos bruxos marcar um gol espetacular enfiando a bola por um aro a quinze metros de altura. Então o garoto fechou o livro. Nem mesmo o Quadribol — na opinião de Harry, o melhor esporte do mundo — conseguiria distraí-lo naquele momento. Ele repôs o livro Voando com os Cannons sobre a mesa-de-cabeceira, dirigiu-se à janela e afastou as cortinas para olhar a rua lá embaixo.
A Rua dos Alfeneiros tinha o aspecto exato que uma rua de subúrbio respeitável deveria ter nas primeiras horas de um sábado.
Todas as cortinas estavam fechadas. Até onde Harry pôde ver no escuro, não havia um único ser vivo à vista, nem mesmo um gato.
Contudo... Contudo... Harry voltou inquieto para a cama e se sentou, passando mais uma vez um dedo pela cicatriz. Não era a dor que o incomodava; Harry não era estranho à dor e aos ferimentos.
Uma vez perdera todos os ossos do braço direito e sentira a dor de recuperá-los em uma noite. O mesmo braço fora perfurado pela presa venenosa de uma cobra, pouco tempo depois. Ainda no ano anterior, ele despencara quinze metros da vassoura em que voava. Estava acostumado com acidentes e ferimentos incomuns; eram inevitáveis quando se freqüentava a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e se tinha um pendor para atrair confusões.
Não, a coisa que estava incomodando Harry era que da última vez que sua cicatriz doera, fora porque Voldemort tinha andado por perto... Mas o bruxo não poderia estar ali, naquela hora... A idéia de Voldemort estar rondando a Rua dos Alfeneiros era absurda, impossível...
Harry parou para escutar com atenção o silêncio à sua volta. Estaria esperando ouvir o rangido de um degrau, o farfalhar de uma capa? Então teve um leve sobressalto, seu primo Duda acabara de soltar um tremendo ronco no quarto ao lado.
Harry deu em si mesmo uma sacudidela imaginária; estava sendo burro; não havia mais ninguém em casa exceto o tio Válter, a tia Petúnia e Duda, e era evidente que eles ainda dormiam, embalados por sonhos tranqüilos e indolores.
Era quando dormiam que Harry mais gostava dos Dursley; não porque não o ajudassem em nada quando estavam acordados. Tio Válter, tia Petúnia e Duda eram os únicos parentes vivos de Harry. Eram trouxas (não eram bruxos) que odiavam e desprezavam qualquer forma de magia, o que significava que Harry era tão bem-vindo em sua casa, quanto uma pelota de mofo. Eles explicaram as longas ausências de Harry nos últimos três anos dizendo a todos que o garoto estudava no Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis. Sabiam muito bem que, como bruxo menor de idade, Harry era proibido de usar a magia fora de Hogwarts, mas não perdiam a mania de culpá-lo por tudo que acontecia de errado na casa. Harry nunca pudera fazer confidências a eles, nem contar nada de sua vida no mundo da magia. A simples idéia de procurá-los quando acordassem para falar que sua cicatriz estava doendo e que estava preocupado com Voldemort era ridícula.
No entanto, era por causa de Voldemort que Harry viera morar com os Dursley, para início de conversa. Se não fosse por aquele bruxo, Harry não teria na testa a cicatriz em forma de raio. Se não fosse por Voldemort, o garoto ainda teria pais...
Harry tinha um ano de idade na noite em que Voldemort — há um século o bruxo das trevas mais poderoso do mundo, um bruxo que fora adquirindo poder continuamente durante onze anos — tinha chegado a sua casa e matado seus pais. Depois, Voldemort brandira sua varinha contra Harry; executara o feitiço que havia liquidado muitos bruxos adultos durante sua ascensão ao poder — e, inacreditavelmente, o feitiço não produzira efeito. Em vez de matar o garotinho, o feitiço se voltara contra o bruxo. Harry sobrevivera marcado apenas por um corte em forma de raio na testa, mas Voldemort fora reduzido a uma coisa quase sem vida. Despojado de seus poderes, a vida quase extinta, ele fugira; o terror em que a comunidade secreta de bruxos vivera tanto tempo se dissipou, os seguidores de Voldemort debandaram, e Harry Potter se tornou famoso.
Harry tivera um choque de bom tamanho ao descobrir, no seu décimo primeiro aniversário, que era bruxo; fora ainda mais desconcertante descobrir que todos no mundo secreto da magia conheciam seu nome. Harry chegara a Hogwarts e deparara com cabeças que se viravam e cochichos que o seguiam aonde fosse. Mas agora já se acostumara com isso. No fim deste verão, ele iria começar o seu quarto ano em Hogwarts; e já estava contando os dias para regressar ao castelo.
Mas faltavam ainda quinze dias para as aulas recomeçarem. Harry tornou a examinar o quarto, desanimado, e seus olhos pousaram nos cartões de aniversário que seus dois melhores amigos tinham lhe mandado no fim de julho.
Que será que diriam se lhes escrevesse para contar que a cicatriz estava doendo?
Na mesma hora a voz de Hermione Granger penetrou sua cabeça, aguda e cheia de pânico. “Sua cicatriz está doendo? Harry, isso é realmente sério... Escreve ao Professor Dumbledore! Vou verificar no meu livro Aflições e Males Comuns na Magia... Quem sabe tem alguma coisa lá sobre cicatrizes produzidas por feitiços...”
E, este seria o conselho de Hermione: vai procurar o diretor de Hogwarts, e, enquanto isso, vai consultando um livro. Harry contemplou pela janela o céu azul, quase negro. Duvidava muito que um livro pudesse ajudá-lo. Que ele soubesse, era a única pessoa que tinha sobrevivido a um feitiço como o de Voldemort; portanto, era pouco provável que encontrasse os seus sintomas descritos em Aflições e Males Comuns na Magia. Quanto a informar ao diretor, Harry não fazia a menor idéia de onde Dumbledore passava as férias de verão. Só por um momento divertiu-se em imaginar Dumbledore, com suas longas barbas prateadas, vestes compridas de bruxo e chapéu cônico, estirado em uma praia qualquer, passando filtro solar no longo nariz torto.
Mas onde quer que Dumbledore estivesse, Harry tinha certeza de que Edwiges seria capaz de encontrá-lo; a coruja de Harry, até aquele dia, jamais deixara de entregar uma carta, mesmo sem endereço. Mas o que iria escrever?
“Prezado Professor Dumbledore. Desculpe-me o incômodo, mas minha cicatriz doeu hoje de manhã.
Atenciosamente, Harry Potter.”
Mesmo em sua cabeça as palavras pareciam idiotas.
Então ele tentou imaginar a reação do seu outro melhor amigo, Rony Weasley e, num instante, o rosto sardento, de nariz comprido, do amigo começou a flutuar diante de Harry com uma expressão de atordoamento.
“Sua cicatriz doeu? Mas... Mas Você-Sabe-Quem não pode estar por perto agora, pode? Quero dizer... Você saberia, não saberia? Ele estaria tentando matar você outra vez, não é? Sei não, Harry, vai ver as cicatrizes produzidas por feitiços sempre doem um pouquinho... Vou perguntar ao meu pai...”
O Sr. Weasley era um bruxo diplomado que trabalhava na Seção de Controle do Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas, no Ministério da Magia, mas, pelo que Harry soubesse, não tinha qualquer formação específica em feitiços. Em todo o caso, não lhe agradava a idéia de que a família Weasley inteira soubesse que estava assustado por causa de uma dorzinha. A Sra. Weasley se preocuparia mais do que Hermione, e Fred e Jorge, os gêmeos de dezesseis anos, irmãos de Rony, poderiam pensar que Harry estava se acovardando. Os Weasley eram a família de que Harry mais gostava no mundo e ele tinha esperanças que o convidassem para passar uns dias em casa deles uma hora dessas (Rony mencionara alguma coisa sobre uma Copa Mundial de Quadribol), e Harry não queria que sua visita fosse pontuada por perguntas ansiosas sobre sua cicatriz.
O garoto massageou a cicatriz com os nós dos dedos. O que ele realmente queria (e se sentiu quase envergonhado de admitir para si mesmo) era alguém como um pai ou uma mãe para um bruxo adulto a quem pudesse pedir um conselho sem se sentir burro, alguém que gostasse dele, que tivesse tido experiência com artes das trevas...
E então lhe ocorreu a solução. Era tão simples, tão óbvia, que ele nem podia acreditar que tivesse levado tanto tempo para lembrar — Sirius.
Harry saltou da cama, saiu correndo e se sentou à escrivaninha; puxou um pergaminho para perto, molhou a pena de águia no tinteiro, escreveu “Caro Sirius”, e em seguida parou, pensando qual seria a melhor maneira de contar o seu problema, ainda admirado com o fato de não ter pensado nele logo de saída. Mas, por outro lado, talvez não merecesse tanta admiração — afinal, ele só descobrira que Sirius era seu padrinho fazia dois meses.
Havia uma razão simples para a absoluta ausência de Sirius da vida de Harry até aquele momento — o bruxo estivera em Azkaban, a assustadora prisão de bruxos, guardada por dementadores, criaturas malignas que não possuíam olhos, sugavam a alma das pessoas, e tinham ido a Hogwarts procurar Sirius quando ele fugira. Porém, o bruxo era inocente — as mortes pelas quais fora condenado tinham sido cometidas por Rabicho, seguidor de Voldemort, que quase todos ainda pensavam estar morto. Harry, Rony e Hermione sabiam que não; tinham encontrado Rabicho cara a cara no ano anterior, embora apenas o Professor Dumbledore tivesse acreditado na história que eles contaram.
Durante uma gloriosa hora, Harry acreditara que finalmente deixaria a casa dos Dursley, porque Sirius se oferecera para ficar com ele, depois que limpasse o próprio nome. Mas a oportunidade lhe fora roubada — Rabicho escapara antes que pudessem levá-lo ao Ministério da Magia, e Sirius teve de fugir para salvar a vida.
Harry o ajudara a escapar montado em um hipogrifo chamado Bicuço, e desde então Sirius estava foragido. A casa que Harry poderia ter tido, se Rabicho não tivesse desaparecido, o atormentara o verão inteiro. Fora duas vezes mais penoso voltar para os Dursley sabendo que quase se livrara deles para sempre.
Ainda assim, Sirius vinha ajudando Harry, mesmo sem poder estar presente. Graças ao padrinho, Harry agora tinha todo o seu material escolar guardado no quarto. Os Dursley nunca haviam permitido isso; o desejo geral de tornar a vida de Harry a mais infeliz possível, somado ao medo dos seus poderes, levara os tios, nos verões anteriores, a trancar o malão de escola do garoto no armário sob a escada. Mas a atitude dos Dursley mudara desde que descobriram que Harry tinha um perigoso condenado como padrinho — Harry, convenientemente, se esquecera de acrescentar que Sirius era inocente.
O garoto recebera duas cartas de Sirius desde que voltara à Rua dos Alfeneiros. Ambas tinham sido entregues não por corujas (como era costume entre os bruxos), mas por grandes e coloridos pássaros tropicais. Edwiges não aprovara aqueles intrusos espalhafatosos; relutara muito a permitir que eles usassem o seu bebedouro antes de irem embora. Harry, por outro lado, gostara muito das aves; fizeram-no lembrar palmeiras e praias de areia branca e ele desejara que, onde quer que o padrinho estivesse (Sirius nunca dizia, temendo que as cartas fossem interceptadas), que estivesse se divertindo. Por alguma razão, Harry achava difícil imaginar dementadores que sobrevivessem muito tempo sob o sol forte; talvez por isso é que Sirius tivesse rumado para o sul. As cartas dele, que agora estavam escondidas sob a utilíssima tábua solta do soalho, embaixo da cama de Harry, tinham um tom animado e, nas duas, ele lembrava Harry que o chamasse se um dia precisasse. Bem, ele bem que precisava chamar o padrinho agora...
Sua luz de cabeceira parecia estar enfraquecendo a medida que a luz fria e cinzenta que antecede o nascer do sol penetrava devagarzinho no quarto.
Finalmente, quando o sol nasceu, quando as paredes do quarto ficaram douradas e quando ele ouviu sons de gente se mexendo no quarto de tio Válter e tia Petúnia, Harry tirou os pedaços amassados de pergaminho de cima da escrivaninha e releu a carta que escrevera.

“Caro Sirius,
Obrigado por sua última carta, a ave era enorme, quase não pôde passar pela minha janela.
As coisas continuam na mesma por aqui. A dieta de Duda não está dando muito certo. Minha tia o pegou contrabandeando rosquinhas fritas e açucaradas para dentro do quarto, ontem.
Meus tios disseram que vão ter de cortar a mesada dele caso ele continue fazendo isso, então Duda ficou com muita raiva e atirou pela janela o PlayStation.
Isso é uma espécie de computador com muitos jogos. Foi realmente uma burrice porque agora ele não tem nem um Mega-Mutilation parte três para distrair as idéias.
Eu vou bem, principalmente porque os Dursley estão apavorados que você possa aparecer e transformar eles em morcegos se eu pedir.
Mas aconteceu uma coisa estranha, hoje de madrugada. Minha cicatriz doeu outra vez. A última vez que isto aconteceu foi porque Voldemort estava em Hogwarts. Mas acho que ele não pode estar por perto agora, pode? Você sabe se cicatrizes produzidas por um feitiço podem doer até anos depois?
Vou mandar esta carta quando Edwiges voltar, no momento ela saiu para caçar. Diga olá ao Bicuço por mim.
Harry”.

Pensou Harry, parecia boa. Não fazia sentido incluir o sonho, ele não queria que a carta deixasse transparecer que estava muito preocupado. O garoto enrolou o pergaminho e deixou-o em cima da escrivaninha, pronto para quando Edwiges voltasse.
Depois se levantou, se espreguiçou e abriu mais uma vez o guarda-roupa.
Sem olhar para a imagem refletida no espelho, começou a se vestir para ir tomar o café da manhã.
CAPÍTULO TRÊS
O Convite

Quando Harry finalmente chegou à cozinha, os três Dursley já estavam sentados à mesa.
Nenhum deles ergueu a cabeça quando o garoto entrou ou se sentou. A caraça vermelha de tio Válter estava escondida atrás do matutino Daily Mail, e tia Petúnia partia um grapefruit em quatro, os lábios contraídos por cima dos dentes de cavalo.
Duda parecia furioso e carrancudo, e, por alguma razão, dava a impressão de estar ocupando mais espaço do que de costume. E isso não era pouco, porque ele sempre ocupava sozinho um lado inteiro da mesa quadrada. Quando tia Petúnia pôs um quarto de grapefruit no prato do filho com um trêmulo "Tome, Dudinha querido", o garoto lançou-lhe um olhar raivoso. A vida de Duda tomara um rumo muito desagradável desde que ele voltara para passar as férias de verão em casa trazendo o boletim de fim de ano.
Tio Válter e tia Petúnia, como sempre, tinham conseguido arranjar desculpas para as notas baixas dele; tia Petúnia sempre insistia que Duda era um menino muito talentoso, incompreendido pelos professores, enquanto tio Válter sustentava que "ele não queria mesmo um filho cê-dê-efe e educadinho".
Eles também passaram por cima das acusações de truculência e intimidação de colegas que havia no boletim. "Ele é um garotinho turbulento, mas não faria mal a uma mosca!", comentou tia Petúnia chorosa.
Contudo, no finalzinho havia uma observação muito bem colocada da enfermeira da escola, que nem mesmo os pais conseguiram justificar. Por mais que tia Petúnia choramingasse que Duda tinha ossos grandes e que seu excesso de peso era na realidade gordura infantil, que ele era um menino em crescimento e precisava de muita comida, o fato era que os fornecedores de uniformes da escola não estocavam calças suficientemente grandes para Duda. A enfermeira da escola vira o que os olhos de tia Petúnia — tão atentos quando se tratava de encontrar marcas de dedos em suas paredes brilhantes e observar as idas e vindas dos vizinhos — simplesmente se recusavam a enxergar: que, longe de precisar de alimentação suplementar, Duda atingira aproximadamente o tamanho e o peso de um filhote de orca.
Então — depois de muitos acessos de raiva, muitas discussões que sacudiram o soalho do quarto de Harry e muitas lágrimas de tia Petúnia — o novo regime começara. A receita da dieta que a enfermeira da Smeltings enviara fora colada na geladeira, já esvaziada de todas as coisas que Duda mais gostava — bebidas gasosas e bolos, barras de chocolate e hambúrgueres — e cheia de frutas, legumes e coisas que tio Válter chamava de "comida de coelho". Para fazer Duda se sentir melhor com a mudança, tia Petúnia insistira que a família inteira seguisse a mesma dieta. Agora ela passava um quarto de grapefruit para Harry. O garoto reparou que o dele era bem menor que o de Duda. A tia parecia sentir que a melhor maneira de manter o moral de Duda era providenciar para que ele, no mínimo, recebesse mais comida do que Harry.
Mas tia Petúnia não sabia o que estava escondido sob as tábuas soltas do soalho no andar de cima.
Não fazia a menor idéia de que Harry não estava seguindo dieta alguma.
No momento em que descobriu que esperavam que ele sobrevivesse durante o verão comendo palitos de cenoura crua, Harry despachara Edwiges à casa dos amigos com pedidos de ajuda, e eles tinham correspondido mais do que à altura.
A coruja voltara da casa de Hermione com uma enorme caixa de lanchinhos sem açúcar (os pais de Hermione eram dentistas). Hagrid, o guarda-caça de Hogwarts, comparecera com um saco de bolos que ele mesmo fabricara (Harry ainda não provara; tinha muita experiência com a culinária de Hagrid). A Sra. Weasley, porém, mandara a coruja da família, Errol, com um enorme bolo de frutas e tortinhas variadas.
O coitado do Errol, que era velho e fraco, precisara de cinco dias inteiros para se recuperar da viagem. Então, no aniversário de Harry (a que os Dursley sequer deram atenção), ele recebera quatro esplêndidos bolos de aniversário de Rony, Hermione, Hagrid e Sirius.
Ainda lhe restavam dois, e sabendo que teria um café da manhã de verdade quando voltasse ao seu quarto, ele começou a comer o grapefruit sem reclamar.
Tio Válter pôs de lado o jornal com um profundo suspiro de desaprovação e olhou para o seu quarto de grapefruit.
— É só isso? — perguntou em tom de reclamação à tia Petúnia. A mulher lhe lançou um olhar severo e indicou com a cabeça o filho, que já acabara de comer o seu quarto de fruta e estava cobiçando o de Harry com um olhar azedo nos olhinhos de porco, Tio Válter soltou um grande suspiro, que arrepiou sua espessa bigodeira, e apanhou a colher ao lado do prato.
A campainha da porta tocou. Ele se levantou penosamente da cadeira e saiu em direção ao hall.
Rápido como um raio, enquanto a mãe se ocupava com a chaleira, Duda furtou o resto de grapefruit do pai.
Harry ouviu vozes à porta, alguém rindo e a resposta seca do tio. Então a porta se fechou e seguiu-se um ruído de papel rasgado no hall.
Tia Petúnia colocou o bule de chá sobre a mesa e olhou curiosa à volta para ver aonde fora o marido. Não precisou esperar muito para descobrir; passado um minuto ele estava de volta. Com o rosto lívido.
— Você — vociferou ele para Harry. — Na sala de estar. Agora.
Espantado, perguntando-se o que teria feito desta vez, Harry se levantou e acompanhou o tio para fora da cozinha e rumaram para o aposento vizinho. Válter fechou a porta com força depois que ele e o sobrinho entraram.
— Então — disse o tio, indo até a lareira e se virando para encarar Harry, como se estivesse prestes a lhe dar voz de prisão.
— Então.
Harry teria adorado responder "Qual é?", mas achou que a boa disposição do tio não deveria ser testada assim cedinho, principalmente se já estava sob forte estresse por falta de comida. Então decidiu fazer cara de quem está educadamente intrigado.
— Isto acabou de chegar — disse o tio. E brandiu na cara de Harry a folha de papel de carta roxo. — Uma carta. A seu respeito.
A confusão de Harry aumentou. Quem estaria escrevendo a tio Válter a respeito dele? Quem é que ele conhecia que mandava cartas pelo correio?
Tio Válter olhou aborrecido para Harry, depois baixou os olhos para a carta e começou a ler em voz alta:

“Prezados Sr. e Sra. Dursley,
Nunca fomos apresentados, mas tenho certeza de que já ouviram Harry falar muito do meu filho Rony.
Como Harry deve ter-lhes contado, a final da Copa Mundial de Quadribol vai se realizar na próxima segunda-feira à noite, e meu marido, Arthur, conseguiu arranjar ótimos lugares para o jogo por intermédio de conhecidos do Departamento de Jogos e Esportes Mágicos.
Espero que o senhor e sua mulher nos permitam levar Harry ao jogo, pois é realmente uma oportunidade única na vida. A Grã-Bretanha não sedia a Copa há trinta anos e as entradas são muito difíceis de se obter. Ficaríamos muito felizes se Harry pudesse passar o resto das férias de verão conosco, e de acompanhá-lo em segurança até o embarque para a escola.
Seria preferível que ele nos mandasse a resposta, o mais depressa possível, da maneira normal, porque o carteiro trouxa jamais entregou correspondência em nossa casa e não tenho muita certeza de que saiba onde é.
Esperando ver Harry em breve, subscrevo-me,
Atenciosamente,
Molly Weasley.
PS. Espero ter colado selos suficientes na carta.”

Tio Válter terminou a leitura, tornou a meter a mão no bolso superior do paletó e tirou mais alguma coisa.
— Olhe só isto — rosnou.
E mostrou o envelope em que chegara a carta da Sra. Weasley, e Harry precisou fazer força para não rir. O envelope estava coberto de selos, exceto por um quadrado de uns três centímetros na face, em que a senhora havia espremido o endereço dos Dursley numa letra miudinha.
— Então ela colou selos suficientes — disse Harry tentando fazer parecer que o engano da Sra. Weasley era muito comum. Os olhos do tio faiscaram.
— O carteiro reparou — disse ele entre dentes. — Estava muito interessado em saber de onde veio a carta. Foi por isso que tocou a campainha. Parecia estar achando muito engraçado.
Harry ficou calado. Outras pessoas talvez não entendessem o porquê da preocupação do tio com tantos selos, mas Harry vivera com os Dursley tempo bastante para saber que se incomodavam muito com qualquer coisa até ligeiramente anormal. O pior receio dos dois era alguém descobrir que estavam ligados (por mais remotamente que fosse) com gente como a Sra. Weasley.
Tio Válter continuou a olhar feio para Harry, que tentava sustentar uma expressão neutra. Se não fizesse nem dissesse nada idiota, talvez pudesse curtir uma oportunidade que só ocorria uma vez na vida.
Esperou o tio dizer alguma coisa, mas o homem simplesmente continuou a fitá-lo com raiva. Harry resolveu, então, quebrar o silêncio.
— Então... Posso ir? — perguntou.
Um ligeiro espasmo passou pela caraça púrpura do tio. Os bigodes se arrepiaram. Harry achou que sabia o que estava acontecendo por trás daquela bigodeira: uma batalha encarniçada em que dois instintos muito fundamentais de tio Válter se confrontavam. Permitir que Harry fosse seria fazer o garoto feliz, uma coisa que o tio lutava para evitar havia treze anos. Por outro lado, deixar que Harry sumisse para a casa dos Weasley o resto do verão seria livrar-se dele duas semanas mais cedo do que os Dursley poderiam ter sonhado, e tio Válter detestava ter Harry em casa.
Aparentemente, para ganhar tempo para pensar, ele baixou os olhos para a carta da Sra. Weasley.
— Quem é essa mulher? — perguntou examinando a assinatura com desagrado.
— O senhor já a viu. É a mãe do meu amigo Rony, estava esperando ele descer do trem de Hog... Do trem da escola no fim do ano letivo.
Quase dissera "Hogwarts", e isso certamente irritaria o tio. Ninguém jamais mencionava o nome da escola de Harry em voz alta na casa dos Dursley. Tio Válter amarrou a cara enorme como se tentasse se lembrar de uma coisa muito desagradável.
— Uma mulher feito uma rolha de poço? — rosnou finalmente. — Uma penca de filhos de cabelos vermelhos?
Harry franziu a testa. Achou que era demais o tio chamar alguém de "rolha de poço", uma vez que seu filho, Duda, finalmente atingira a forma que vinha ameaçando atingir desde os três anos de idade, ter mais largura do que altura. Tio Válter tornou a examinar a carta.
— Quadribol — resmungou. — Quadribol, que droga é isso?
Harry sentiu nova pontada de aborrecimento.
— Um esporte — respondeu secamente. — Joga-se montado numa vass...
— Está bem, está bem! — disse o tio em voz alta. Harry observou, com alguma satisfação, que ele parecia ligeiramente em pânico. Pelo visto seus nervos não iriam suportar o som da palavra "vassouras" em sua sala de estar. Refugiou-se outra vez no exame da carta. Harry viu os lábios do tio formarem as palavras "nos mandasse a resposta da maneira normal". Tornou a fechar a cara.
— Que é que ela quer dizer da maneira normal? — bufou ele.
— Normal para nós — explicou Harry e, antes que o tio pudesse interrompê-lo, acrescentou: — o senhor sabe, por correio-coruja. Isso é que é o normal para os bruxos.
Tio Válter fez uma cara tão indignada como se Harry tivesse dito um palavrão. Trêmulo de raiva, lançou um olhar nervoso para a janela, como se esperasse ver os vizinhos com os ouvidos colados na vidraça.
— Quantas vezes tenho que lhe dizer para não mencionar essa anormalidade sob o meu teto? — sibilou ele, o rosto agora um intenso tom ameixa. — Você fica parado aí, vestindo as roupas com que Petúnia e eu cobrimos suas costas ingratas...
— Só depois que Duda não quer mais elas — disse Harry com frieza, pois na realidade estava vestindo um suéter tão grande que ele precisava fazer cinco dobras nas mangas para poder usar as mãos, e que lhe caía abaixo dos joelhos da calça jeans muito larga.
— Não vou admitir que você fale comigo assim! — disse o tio tremendo de raiva.
Mas Harry não precisava aturar isso. Ia longe o tempo em que era obrigado a aceitar todas as regras idiotas dos Dursley. Não ia seguir a dieta de Duda, e não ia deixar o tio impedi-lo de assistir à Copa Mundial de Quadribol, não se dependesse dele. Harry inspirou profundamente para se acalmar e então disse:
— Muito bem, não posso assistir à Copa Mundial de Quadribol. Posso ir, agora? É que eu tenho uma carta para Sirius que quero terminar. O senhor sabe, o meu padrinho.
Conseguira. Dissera as palavras mágicas. Ficou então observando o tom púrpura no rosto do tio ir clareando desigualmente, fazendo-o parecer um sorvete de groselha mal misturado.
— Você está escrevendo para ele? — indagou tio Válter numa voz falsamente calma, mas Harry vira as pupilas dos olhos dele se contraírem com repentino medo.
— Bem... É — disse Harry em tom casual. — Já faz um tempo que ele não tem notícias minhas e, o senhor sabe, se não receber nada, pode pensar que aconteceu algum problema.
Ele parou para gozar o efeito de suas palavras. Quase pôde até ver as engrenagens girando por baixo dos cabelos do tio, escuros, grossos e caprichosamente repartidos. Se Válter tentasse impedir Harry de escrever para Sirius, este pensaria que o garoto estava sendo maltratado. Se dissesse que o sobrinho não podia ir à Copa Mundial de Quadribol, o garoto iria escrever contando ao padrinho, que teria certeza de que Harry estava sendo maltratado. Só havia uma coisa para tio Válter fazer. Harry via a conclusão se formando no cérebro do tio como se sua caraça bigoduda fosse transparente. O garoto tentou não sorrir e manter o rosto o mais inexpressivo possível. E então...
— Bem, está bem, então. Pode ir para a casa dessa rolha... Dessa idiota... Para essa tal de Copa Mundial. Escreva respondendo a esses... Esses Weasley para virem apanhá-lo, veja bem. Não tenho tempo para acompanhar você por todo o país. E pode passar o resto do verão lá. E pode dizer ao seu, seu padrinho... Diga a ele... Diga a ele que você vai.
— O.K. então — disse Harry animado.
O garoto se virou e saiu pela porta da sala de estar, brigando com a vontade de saltar no ar e gritar. Ele ia... Ia para a casa dos Weasley, ia assistir à Copa Mundial de Quadribol!
Já no corredor, ele quase colidiu com Duda, que estivera escondido atrás da porta, na esperança de ouvir Harry levar um passa-fora. Ficou chocado ao ver o largo sorriso no rosto do primo.
— Foi um excelente café da manhã, não foi? — exclamou Harry. — Estou de barriga cheia, você não?
Rindo da cara de espanto de Duda, Harry subiu a escada, saltando três degraus de cada vez, e correu para dentro de seu quarto.
A primeira coisa que viu foi que Edwiges voltara. Estava na gaiola, espiando Harry com seus enormes olhos cor de âmbar, estalando o bico de um jeito que significava que estava aborrecida com alguma coisa. Exatamente o que a estava aborrecendo tornou-se visível quase na mesma hora.
— AI! — gemeu Harry.
Algo que lembrava uma minúscula bola de tênis, cinzenta e emplumada, acabara de bater do lado da cabeça de Harry. Ele massageou a cabeça furiosamente erguendo os olhos para ver o que o atingira, e viu uma corujinha mínima, pequena o bastante para caber na palma de sua mão, chiando excitada pelo quarto como se fosse um busca-pé. O garoto percebeu que a coruja deixara cair uma carta a seus pés. Ele se abaixou, reconheceu a letra de Rony e abriu o envelope. Dentro havia um bilhete apressado.

“Harry,
PAPAI CONSEGUIU AS ENTRADAS — Irlanda contra a Bulgária. Na noite de segunda. Mamãe escreveu aos trouxas para convidar você. Talvez a carta já tenha chegado, não sei quanto tempo demora o correio dos trouxas.
Pensei em lhe mandar este bilhete pela Píchi.

Harry olhou bem para a palavra "Píchi", depois para a minúscula coruja que voava velozmente em volta da luz no teto. Que nome mais esquisito para uma coruja. Talvez ele não tivesse entendido a letra de Rony. Voltou ao bilhete.

Vamos buscar você, quer os trouxas gostem ou não, você não pode perder a Copa, só que mamãe e papai acham que é melhor a gente primeiro fingir que está pedindo permissão. Se eles disserem sim, mande logo Píchi com a sua resposta, e iremos buscar você às cinco horas no domingo. Se eles disserem não, por favor, mande Pichi de volta depressa e iremos buscá-lo no domingo às cinco horas, assim mesmo.
Hermione está chegando hoje à tarde. Percy começou a trabalhar no Departamento de Cooperação Internacional em Magia. Não fale em ir para o exterior enquanto estiver aqui a não ser que queira que ele lhe arranque as calças pela cabeça.
Até é mais.  Rony.”

— Calma aí! — disse Harry, quando a corujinha tirou um rasante da cabeça dele, batendo as asas loucamente. Harry só pôde supor que de orgulho por ter entregado a carta à pessoa certa. — Vem cá, preciso que você leve a minha resposta!
A corujinha voou até o topo da gaiola da coruja de Harry.
Edwiges olhou-a friamente, como se a desafiasse a tentar se aproximar mais. Harry tomou a pena de águia mais uma vez, apanhou um pergaminho limpo e escreveu:

“Rony, está tudo certo, os trouxas disseram que eu posso ir.
Vejo vocês amanhã às cinco.
Mal posso esperar.
Harry”.

Depois, dobrou o bilhete muitas vezes e, com imensa dificuldade, prendeu-o na perna da corujinha que pulava no mesmo lugar de tanta excitação. No instante em que o bilhete ficou preso, a coruja partiu, disparou pela janela e se perdeu de vista.
Harry se virou para Edwiges.
— Está com disposição para fazer uma longa viagem? — perguntou.
A coruja piou com uma certa dignidade.
— Pode levar isto ao Sirius para mim? — disse ele apanhando a — Espera aí... quero terminar.
Ele tornou a desenrolar o pergaminho e apressadamente acrescentou um post scriptum.
“Se quiser entrar em contato comigo, estarei na casa do meu amigo Rony Weasley até o fim do verão. O pai dele arranjou entradas para a gente assistir à Copa Mundial de Quadribol!”
Terminada a carta, ele a amarrou à perna de Edwiges; ela ficou anormalmente quieta, como se estivesse decidida a mostrar ao dono como é que uma verdadeira coruja-correio devia se comportar.
— Vou estar na casa de Rony quando você voltar, está bem? — Harry a informou.
A coruja deu uma bicadinha carinhosa no dedo do garoto, depois, com um ruído farfalhante, abriu as enormes asas e saiu voando pela janela aberta.
Harry observou-a desaparecer ao longe, depois entrou de quatro embaixo da cama, soltou a tábua do soalho e apanhou um pedação de bolo de aniversário.
Sentou-se no chão para comê-lo, saboreando a felicidade que o invadia. Ele comia bolo e Duda só comia grapefruit, fazia um belo dia de verão, sua cicatriz estava perfeitamente normal, ele ia deixar a Rua dos Alfeneiros no dia seguinte e ia assistir à Copa Mundial de Quadribol. Naquele momento era difícil se preocupar com alguma coisa — até mesmo com Lord Voldemort.










CAPÍTULO QUATRO
De volta à Toca

Por volta do meio-dia do dia seguinte, o malão de Harry estava pronto com o seu material escolar e seus pertences mais preciosos — a Capa da Invisibilidade que ele herdara do pai, a vassoura que ganhara de Sirius, o mapa encantado de Hogwarts, presente de Fred e Jorge Weasley no ano anterior.
Ele retirara toda a comida do esconderijo sob a tábua solta, verificara duas vezes cada cantinho de seu quarto para ver se esquecera livros de feitiços ou penas, baixara da parede o calendário em que fizera a contagem regressiva para o dia primeiro de setembro, riscando cada dia que passava até a volta a Hogwarts.
A atmosfera no nº 4 da Rua dos Alfeneiros estava extremamente tensa. A chegada iminente à casa de um grupo variado de bruxos estava deixando os Dursley nervosos e irritadiços. Tio Válter parecera decididamente assustado quando Harry informou-o de que os Weasley chegariam às cinco horas do dia seguinte.
— Espero que você tenha avisado para se vestirem direito, a essas pessoas — rosnou o tio na mesma hora. — Já vi o tipo de coisa que gente da sua laia usa. É melhor terem a decência de vestir roupas normais, é só.
Harry sentiu uma ligeira apreensão. Raramente vira o casal Weasley usar alguma coisa que os Dursley pudessem chamar de "normal". Os filhos até usavam roupas de trouxas durante as férias, mas o Sr. e a Sra. Weasley, em geral, usavam vestes longas e surradas em vários graus. Harry não se incomodava com o que os vizinhos pudessem pensar, mas estava aflito com as grosserias que os Dursley pudessem fazer aos Weasley se eles realmente correspondessem à péssima idéia que os tios faziam dos bruxos.
Tio Válter vestira o melhor terno. Para alguns isto poderia parecer um gesto de boas-vindas, mas Harry sabia que era porque o tio queria impressionar e intimidar. Duda, por outro lado, parecia encolhido.
Não era porque a dieta afinal estivesse produzindo efeito, mas por medo. O garoto saíra do último encontro com um bruxo adulto levando um rabo de porco, enroscado, que saía pelo fundilho das calças e tia Petúnia e tio Válter precisaram pagar um hospital particular em Londres para remover o tal rabo.
Portanto, não surpreendia que Duda não parasse de passar a mão, nervosamente, pelo bumbum, e andasse de lado quando ia de um cômodo a outro, para não oferecer o mesmo alvo ao inimigo.
O almoço foi uma refeição quase silenciosa. Duda sequer protestou contra a comida (queijo branco e aipo ralado). Tia Petúnia não comeu nadinha. Manteve os braços cruzados, os lábios contraídos e parecia estar mastigando a língua, como se refreasse o discurso violento e injurioso que queria fazer para Harry.
— Eles virão de carro, naturalmente? — vociferou tio Válter por cima da mesa.
— Hum — fez Harry.
Ele não pensara nisso. Como é que os Weasley viriam apanhá-lo? Não tinham mais carro; o velho Ford Anglia, que outrora possuíam, atualmente andava rodando pela Floresta Proibida de Hogwarts. Mas, no ano anterior, o Sr. Weasley tomara emprestado o carro do Ministério da Magia; será que faria o mesmo hoje?
— Acho que sim — respondeu Harry.
Tio Válter bufou para dentro dos bigodes. Normalmente, ele teria perguntado qual era a marca do carro do Sr. Weasley; tinha uma tendência a julgar outros homens pelo tamanho e o luxo de seus carros.
Mas o garoto duvidava que o tio tivesse simpatizado com o Sr. Weasley mesmo que o bruxo dirigisse uma Ferrari.
Harry passou a maior parte da tarde em seu quarto; não suportava ver tia Petúnia espiar entre as cortinas a todo instante, como se tivesse havido um alerta de que existia um rinoceronte à solta.
Finalmente, as quinze para as cinco, Harry voltou ao térreo e entrou na sala de estar. Tia Petúnia ajeitava compulsivamente as almofadas. Tio Válter fingia ler o jornal, mas seus olhinhos miúdos não se mexiam, e Harry teve certeza de que na realidade ele mantinha os ouvidos muito atentos para a chegada de um carro.
Duda se enterrou numa poltrona, sentado em cima das mãos muito gordas, e segurava com firmeza o bumbum. Harry não suportou a tensão: saiu da sala e foi se sentar na escada do hall, os olhos no relógio de pulso e o coração batendo muito forte de tanta excitação e nervosismo.
Às cinco horas vieram e se foram. Tio Válter, suando ligeiramente no terno, abriu a porta da frente, espiou para um lado e outro da rua, e recolheu depressa a cabeça.
— Eles estão atrasados! — rosnou para Harry.
— Eu sei — disse Harry. — Talvez... Hum... O trânsito esteja ruim, ou outro problema qualquer.
Cinco e dez... Depois cinco e quinze... Harry estava começando a ficar ansioso também. Às cinco e meia, ele ouviu os tios conversarem em murmúrios tensos na sala de estar.
— Não tem a menor consideração.
— Poderíamos ter outro compromisso.
— Talvez eles pensem que serão convidados para o jantar se chegarem tarde.
— Certamente que não serão — respondeu tio Válter, e Harry o ouviu se levantar e começar a andar pela sala. — Vão pegar o garoto e ir embora, não vão se demorar. Isto é, se é que vão aparecer. Provavelmente se enganaram no dia. Eu diria que gente da laia deles não liga muito para pontualidade. Ou isso ou estão dirigindo uma lata velha que parou de... AAAAAAAARRRRRFEE!
Harry deu um pulo. Do outro lado da porta da sala ele ouviu os três Dursley correrem precipitadamente, cheios de pânico. No momento seguinte, Duda entrou voando pelo hall, aterrorizado.
— Que aconteceu? — perguntou Harry. — Que foi que houve? Mas Duda parecia incapaz de responder. As mãos ainda agarradas às nádegas, saiu desengonçado, e o mais depressa que pôde, em direção à cozinha. Harry correu para a sala de estar.
Ouviam-se fortes batidas e arranhões por trás das tábuas que vedavam a lareira dos Dursley, diante da qual estava ligada uma imitação de fogo a carvão.
— Que é isso? — exclamou tia Petúnia, que recuara de costas para a parede, arregalando os olhos para a lareira, aterrorizada.
— Que é isso, Válter?
Mas eles não precisaram gastar nem um segundo pensando. Ouviram-se vozes no interior da lareira fechada.
— Ai! Fred, não... Volte, volte, houve algum engano... Diga Jorge para não... AI! Jorge, não, não há espaço, volte depressa e diga ao Rony...
— Talvez Harry possa ouvir a gente, papai... Talvez possa abrir para a gente passar...
Ouviram-se murros contra as tábuas.
— Harry? Harry, você está ouvindo a gente?
Os Dursley investiram contra Harry como um casal de carcajus furiosos.
— Que é isso? — vociferou tio Válter. — Que é que está acontecendo?
— Eles... Eles tentaram chegar aqui usando Pó de Flu — disse Harry, reprimindo uma vontade louca de rir. — Eles podem viajar entre lareiras, só que vocês tamparam a entrada, esperem um pouco...
Harry se aproximou da lareira e chamou.
— Sr. Weasley? O senhor está me ouvindo?
As pancadas pararam. Alguém do outro lado fez "psiu".
— Sr. Weasley, é o Harry... A lareira está bloqueada. O senhor não vai conseguir passar por aí.
— Droga! — exclamou a voz do Sr. Weasley. — Para que foi que eles inventaram de bloquear a lareira?
— Eles têm um fogo elétrico — explicou Harry.
— Verdade? — ouviu-se a voz excitada do Sr. Weasley. — Eclético, você disse? Com uma tomada? Nossa, eu preciso ver isso... Vamos pensar... Ai, Rony!
A voz de Rony agora se juntava a dos outros.
— Que é que estamos fazendo aqui? Deu alguma coisa errada?
— Não, Rony — ouviu-se a voz de Fred, muito sarcástica. — Era exatamente aqui que queríamos chegar.
— É, e estamos nos divertindo de montão — acrescentou Jorge, cuja voz parecia abafada, como se ele estivesse esmagado contra a parede.
— Meninos, meninos... — disse o Sr. Weasley vagamente. — Estou tentando pensar no que fazer... É... É o jeito... Afaste-se, Harry.
Harry recuou até o sofá. Tio Válter, porém, avançou para a lareira.
— Espere aí! — berrou para a peça. — Que é que você vai fazer exatamente...?
BAM!
O fogo elétrico foi arremessado pela sala, ao mesmo tempo que as tábuas saltavam da lareira, expulsando o Sr. Weasley, Fred, Jorge e Rony em meio a uma nuvem de caliça e fragmentos de madeira.
Tia Petúnia berrou e caiu de costas por cima da mesinha de centro; tio Válter agarrou-a antes que ela batesse no chão e encarou os Weasley, boquiaberto, incapaz de falar, todos de cabelos ruivos, inclusive Fred e Jorge, gêmeos idênticos até a última sarda.
— Agora melhorou — ofegou o Sr. Weasley, espanando a poeira das longas vestes verdes e endireitando os óculos. — Ah... Vocês devem ser a tia e o tio de Harry!
Alto, magro e meio careca, o bruxo caminhou em direção ao tio Válter, a mão estendida, mas o homem recuou vários passos, arrastando tia Petúnia. As palavras lhe fugiram totalmente. Seu melhor terno estava coberto de pó branco, que assentara em seus cabelos e bigodes e dava a impressão de que ele acabara de envelhecer trinta anos.
— Hum... Ah... Sinto muito — disse o Sr. Weasley, baixando a mão e olhando por cima do ombro para a lareira destruída. — Foi minha culpa, mas não me ocorreu que não poderíamos sair por aqui. Mandei ligar a sua lareira à rede do Flu, entende, só por uma tarde, sabe, para podermos apanhar Harry. Rigorosamente falando, as lareiras dos trouxas não podem ser ligadas, mas tenho um contato útil na Comissão de Regulamentação do Flu e ele deu um jeitinho. Mas posso consertar tudo em um segundo, não se preocupe. Vou acender um fogo para mandar os garotos de volta, depois posso refazer sua lareira antes de desaparatar.
Harry podia apostar que os Dursley não tinham entendido uma única palavra. Continuavam a boquiabrir-se para o Sr. Weasley, aparvalhados. Tia Petúnia levantou-se com dificuldade e se escondeu atrás do marido.
— Olá, Harry! — cumprimentou o Sr. Weasley animado. — A mala está pronta?
— Está lá em cima — respondeu o garoto, retribuindo o sorriso.
— Vamos buscar — disse Fred na mesma hora. Piscando para Harry, ele e Jorge saíram da sala.
Sabiam onde era o quarto de Harry, porque tinham salvado o garoto uma vez no meio da noite. Harry suspeitou que Fred e Jorge estavam querendo dar uma espiada em Duda; tinham ouvido Harry falar muito do primo.
— Bom — disse o Sr. Weasley, agitando levemente os braços, enquanto tentava encontrar palavras para quebrar o silêncio mais que desagradável. — Uma bela... Hum... Bela casa vocês têm.
Como a sala habitualmente impecável estava agora coberta de poeira e caliça, o comentário não foi muito bem recebido pelos Dursley. O rosto do tio Válter ficou, mais uma vez, púrpura, e tia Petúnia recomeçou a mastigar a língua.
Porém eles pareciam demasiado apavorados para conseguir falar alguma coisa.
O Sr. Weasley olhou para todos os lados. Adorava tudo que dizia respeito aos trouxas. Harry via que ele estava doido de vontade de examinar a televisão e o videocassete.
— Eles funcionam com eletricidade, não é? — disse mostrando-se bem informado. — Ah, é, estou vendo as tomadas. Eu coleciono tomadas — acrescentou para o tio Válter. — E baterias. Tenho uma enorme coleção de baterias. Minha mulher acha que eu sou maluco, mas o que fazer?
Era visível que tio Válter também o achava maluco. Ele avançou um tantinho para a direita, escondendo tia Petúnia, como se achasse que o bruxo poderia de repente avançar e atacá-los.
Duda, de repente, reapareceu na sala. Harry ouviu o ruído metálico do malão descendo pelas escadas, e concluiu que o barulho havia afugentado Duda da cozinha.
O garoto vinha costeando a parede, olhando para o Sr. Weasley com terror nos olhos e, depois, tentou se esconder atrás da mãe e do pai. Infelizmente, o corpanzil do tio Válter, embora suficiente para esconder a ossuda tia Petúnia, não era bastante grande para esconder também o filho.
— Ah, e esse é o seu primo, não é, Harry? — perguntou o Sr. Weasley fazendo outra corajosa tentativa de iniciar uma conversa.
— É — confirmou Harry —, é o Duda.
Ele e Rony se entreolharam e desviaram depressa os olhos para longe; a tentação de cair na gargalhada era forte demais. Duda ainda segurava o bumbum como se tivesse medo de que ele se soltasse.
O Sr. Weasley, porém, parecia sinceramente preocupado com o comportamento estranho do garoto. De fato, pelo tom de voz com que falou a seguir, Harry teve certeza de que o Sr. Weasley achava que Duda era tão maluco quanto os Dursley achavam que ele era, só que o Sr. Weasley sentia piedade em vez de medo.
— Está gostando das férias, Duda? — perguntou bondosamente.
Duda choramingou. Harry viu as mãos do primo apertarem com mais força o bumbum maciço. Fred e Jorge voltaram à sala trazendo o malão escolar de Harry.
Eles olharam para os lados ao entrar e viram Duda. Seus rostos se abriram em sorrisos malvados idênticos.
— Ah, certo — disse o Sr. Weasley. — Melhor irmos andando, então.
Ele arregaçou as mangas das vestes e puxou a varinha. Harry viu os Dursley recuarem contra a parede, como se fossem uma pessoa só.
— Incêndio!— disse o bruxo, apontando a varinha para o buraco na parede.
As chamas irromperam na mesma hora na lareira, crepitando alegremente como se já estivessem acesas há horas. O Sr. Weasley tirou do bolso um saquinho fechado com cordões, desamarrou-o, tirou uma pitada do pó e jogou-o nas chamas, que viraram verde-esmeralda e rugiram com mais força do que antes.
— Pode ir, Fred — disse o Sr. Weasley.
— Estou indo — respondeu Fred. — Ah, não... Espera aí...
Um saquinho de balas caiu do bolso de Fred e o conteúdo se espalhou em todas as direções — grandes caramelos em embalagens muito coloridas.
Fred saiu catando os caramelos, guardando-os de volta no bolso, depois deu um adeusinho animado aos Dursley, adiantou-se e entrou direto nas chamas, dizendo "A Toca!". Tia Petúnia soltou uma exclamação trêmula. Ouviu-se um barulho de deslocamento de ar e Fred desapareceu.
— Agora você, Jorge — disse o Sr. Weasley. — Leve a mala.
Harry ajudou Jorge a carregar a mala até as chamas da lareira e virou-a de ponta para o gêmeo poder segurá-la melhor. Depois com um segundo deslocamento de ar, Jorge gritara "A Toca!" e desapareceu também.
— Rony, você é o próximo — disse o Sr. Weasley.
— Até outro dia — disse Rony animado para os Dursley. Deu um grande sorriso para Harry, entrou no fogo e gritou "A Toca!" e desapareceu.
Agora só faltavam Harry e o Sr. Weasley.
— Bom... Tchau então — disse Harry aos Dursley.
Os tios não disseram uma palavra. Harry adiantou-se para o fogo, mas na hora em que pisou na lareira, o Sr. Weasley esticou a mão e segurou-o. Encarou os Dursley surpreso.
— Harry disse tchau para vocês — falou ele. — Vocês não ouviram?
— Não faz mal — murmurou Harry para o Sr. Weasley. — Francamente, eu não me importo.
O Sr. Weasley não tirou a mão do ombro de Harry.
— Vocês não vão ver seu sobrinho até o próximo verão — disse ele a tio Válter, ligeiramente indignado. — Com certeza, vocês vão se despedir?
O rosto de tio Válter se contraiu furiosamente. A idéia de aprender a ter consideração com um homem que acabara de explodir metade da sua sala de estar parecia lhe causar intenso sofrimento.
Mas o Sr. Weasley ainda empunhava a varinha e o olhar do tio Válter correu até ela antes de dizer, muito ressentido:
— Então, tchau.
— Até outro dia — disse Harry enfiando um pé nas chamas que, aos seus sentidos, pareceram um hálito morno. Naquele momento, porém, um horrível ruído de alguém se engasgando ocorreu às costas dele e tia Petúnia começou a gritar.
Harry se virou. Duda não estava mais escondido atrás dos pais. Estava ajoelhado ao lado da mesinha de centro, e tossia e cuspia uma coisa de uns trinta centímetros, roxa e viscosa que saía de sua boca. Passado um segundo de aturdimento, Harry se deu conta de que aquela coisa de trinta centímetros era a língua de Duda — e que havia um papel de caramelo, vivamente colorido, caído no chão ao lado dele.
Tia Petúnia atirou-se ao chão ao lado do filho, agarrou a ponta da língua inchada e tentou arrancá-la da boca do garoto; como era de se esperar, Duda berrou e cuspiu pior do que antes, tentando resistir à mãe. Tio Válter urrava e agitava os braços, e o Sr. Weasley precisou gritar para ser ouvido.
— Não se preocupem, posso dar um jeito nisso! — gritou ele, avançando para Duda com a varinha estendida, mas tia Petúnia berrou mais do que antes e se atirou em cima de Duda, protegendo-o do Sr. Weasley.
— Não, estou falando sério! — disse o Sr. Weasley, desesperado. — É um processo simples, foi o caramelo, meu filho... Gosta de pregar peças, mas é apenas um Feitiço de Ingurgitamento, pelo menos, acho que é, por favor, posso consertar tudo...
Mas longe de se tranqüilizar, os Dursley foram tomados de um pânico ainda maior; tia Petúnia, soluçando histericamente, puxava a língua de Duda como se estivesse decidida a arrancá-la, o garoto parecia estar sufocando sob a pressão da língua e da mãe somadas e tio Válter, que se descontrolara completamente, agarrou uma estatueta de porcelana de cima do bufê e atirou-a contra o Sr. Weasley, que se abaixou, deixando o enfeite se espatifar na lareira escancarada.
— Ora francamente! — exclamou o Sr. Weasley, zangado, brandindo a varinha. — Estou tentando ajudar!
Urrando feito um hipopótamo ferido, tio Válter agarrou outro enfeite.
— Harry, vá! Vá logo! — gritou o Sr. Weasley, a varinha apontada para tio Válter. — Eu resolvo isso!
Harry não queria perder o espetáculo, mas o segundo enfeite atirado pelo tio errou por pouco a sua orelha esquerda e, pensando bem, ele achou preferível deixar o Sr. Weasley resolver a situação.
Entrou nas chamas, espiando por cima do ombro e disse "A Toca!"; seu último vislumbre da sala de estar foi o Sr. Weasley arrancando com a varinha um terceiro enfeite da mão do tio, tia Petúnia gritando agachada por cima de Duda e a língua do primo pendurada para fora como uma grande e viscosa jibóia.
Mas no momento seguinte, Harry começou a rodopiar em grande velocidade e a sala de estar dos Dursley desapareceu de vista numa erupção de chamas verde-esmeralda.



CAPÍTULO CINCO
As "Gemialidades" Weasley

Harry rodopiou cada vez mais veloz, apertando os cotovelos junto ao corpo, lareiras difusas passaram como relâmpagos por ele, até que começou a se sentir nauseado e fechou os olhos. Depois, ao sentir finalmente que estava desacelerando, esticou as mãos para frente e fez força para parar em tempo de evitar cair de cara na lareira da cozinha da casa dos Weasley.
— Ele comeu? — perguntou Fred excitado, estendendo a mão para ajudar Harry a se levantar.
— Comeu — disse Harry se endireitando. — O que era?
— Caramelo Incha-Língua — informou-lhe Fred, animado. — Foi Jorge e eu que inventamos, passamos o verão todo procurando alguém para experimentar...
A pequena cozinha explodiu de risadas; Harry olhou para os lados e viu que Rony e Jorge estavam sentados à mesa da cozinha com dois rapazes ruivos que ele nunca vira antes, embora soubesse na hora quem deviam ser: Gui e Carlinhos, os dois irmãos Weasley mais velhos.
— Como vai, Harry? — disse o que estava mais próximo, sorrindo para ele e estendendo a mão enorme, que Harry apertou sentindo calos e bolhas sob os dedos.
Tinha que ser Carlinhos, que trabalhava com dragões na Romênia. O rapaz tinha o mesmo físico dos gêmeos, mais baixo e mais forte do que Percy e Rony, que eram compridos e magros. Seu rosto era largo e bem-humorado, castigado pelo sol e tão sardento que quase parecia bronzeado; os braços eram musculosos e em um deles havia uma grande e reluzente queimadura.
Gui se levantou, sorrindo, e também apertou a mão de Harry. O rapaz foi uma surpresa. Harry sabia que ele trabalhava para o banco dos bruxos, o Gringotes, e que fora monitor-chefe em Hogwarts, e sempre imaginara que Gui fosse uma versão mais velha de Percy; preocupado com as infrações dos regulamentos e chegado a mandar em todo mundo.
No entanto, Gui era — não havia outra palavra — descolado. Alto, os cabelos compridos presos em um rabo-de-cavalo. Usava um brinco de argola com um berloque pendurado que parecia um dente canino.
Suas roupas não estariam deslocadas em um concerto de rock, exceto pelo detalhe de que as botas não eram feitas de couro de boi, mas de couro de dragão.
Antes que alguém pudesse dizer alguma coisa, ouviu-se um leve estalo e o Sr. Weasley apareceu de repente junto ao ombro de Jorge. Parecia mais zangado do que Harry jamais o vira.
— Não teve graça alguma, Fred! — gritou ele. — Que diabo foi que você deu àquele garoto trouxa?
— Eu não dei nada a ele — disse Fred, com outro sorriso malvado. — Só deixei cair um caramelo... Foi culpa dele se o apanhou e comeu, não o mandei fazer isso.
— Você deixou cair de propósito! — berrou o Sr. Weasley. — Sabia que ele ia comer, sabia que ele estava fazendo regime...
— De que tamanho ficou a língua dele? — perguntou Jorge, ansioso.
— Já estava com mais de um metro quando os pais me deixaram encolhê-la!
Harry e os Weasley caíram na gargalhada outra vez.
— Não tem graça! — gritou o Sr. Weasley. — Esse tipo de comportamento desestabiliza seriamente as relações bruxos-trouxas! Passo metade da vida fazendo campanha contra os maus-tratos aos trouxas e os meus próprios filhos...
— Não demos o caramelo a ele porque é trouxa! — disse Fred.
— Não, demos porque ele é um filho-da-mãe implicante — disse Jorge. — Não é verdade, Harry?
— É, sim, Sr. Weasley — confirmou Harry com sinceridade.
— Isto não vem ao caso! — vociferou o Sr. Weasley. — Espere até eu contar à sua mãe...
— Contar o quê? — perguntou uma voz às costas dele.
A Sra. Weasley acabara de entrar na cozinha. Era uma mulher baixa e gorducha, de rosto bondoso, embora, no momento, seus olhos estivessem apertados numa expressão de desconfiança.
— Ah, olá, Harry querido — disse ela, sorrindo, ao vê-lo. Então seus olhos se voltaram para o marido. — Contar o quê, Arthur?
O Sr. Weasley hesitou. Harry percebeu que, por mais zangado que estivesse com Fred e Jorge, ele não pretendera realmente contar a Sra. Weasley o que tinha acontecido. Fez-se silêncio, enquanto o Sr. Weasley encarava a esposa, nervoso. Então duas meninas apareceram à porta da cozinha atrás da Sra. Weasley. Uma, de cabelos castanhos muito fofos e os dentes da frente um tanto grandes, era a amiga de Harry e Rony, Hermione Granger. A outra, pequena e ruiva, era a irmã mais nova de Rony, Gina. As duas sorriram para Harry, que retribuiu o sorriso, fazendo Gina ficar escarlate — tinha um xodó por Harry desde a primeira visita dele à Toca.
— Contar o quê, Arthur? — repetiu a Sra. Weasley, num tom de voz perigoso.
— Não é nada, Molly — resmungou o marido. — Fred e Jorge... Mas eu já tive uma conversa com eles...
— Que foi que eles fizeram desta vez? — perguntou a Sra. Weasley. — Se foi alguma coisa relacionada com as "Gemialidades" Weasley...
— Por que você não mostra ao Harry aonde ele vai dormir, Rony? — sugeriu Hermione da porta.
— Ele já sabe aonde vai dormir — respondeu Rony. — No meu quarto, foi lá que dormiu da última...
— Então todos podemos ir — disse Hermione, sublinhando as palavras.
— Ah — fez Rony, entendendo. — Certo.
— É, nós também vamos — disse Jorge.
— Vocês ficam onde estão!— vociferou a Sra. Weasley.
Harry e Rony saíram de fininho da cozinha e seguiram com as meninas pelo corredor estreito, subiram a escada desconjuntada e saíram ziguezagueando pela casa até os últimos andares.
— Que são "Gemialidades" Weasley? — perguntou Harry quando subiam.
Rony e Gina riram, embora Hermione continuasse seria.
— Mamãe encontrou uma pilha de formulários de pedidos quando estava limpando o quarto de Fred e Jorge — disse Rony em voz baixa. — Listas enormes de preços de coisas que eles inventaram. Artigos para logros e brincadeiras, sabe. Varinhas de imitação, doces-surpresa, um monte de coisas.
— Genial. Eu não sabia que eles estavam inventando tanta coisa...
— Há muito tempo que ouvíamos explosões no quarto deles, mas nunca pensamos que estavam fabricando coisas — explicou Gina —, achamos que era só vontade de fazer barulho.
— Só que, a maior parte das coisas, bom, na realidade, tudo... Era meio perigoso — disse Rony — e, sabe, eles estavam planejando vender os artigos em Hogwarts para ganhar dinheiro, e mamãe ficou uma fera. Disse que eles estavam proibidos de fabricar aquelas coisas e queimou todos os formulários... Já estava furiosa mesmo porque eles não conseguiram tantos N.O.M’s quanto ela esperava.
Os N.O.M’s eram Níveis Ordinários de Magia, os exames que os alunos de Hogwarts faziam aos quinze anos.
— Depois houve uma briga danada — disse Gina —, porque mamãe queria que eles entrassem para o Ministério da Magia como papai, e os dois responderam que o que eles querem é abrir uma loja de logros e brincadeiras.
Nessa hora, uma porta se abriu no segundo patamar e um rosto com óculos de aros de tartaruga e expressão mal-humorada espiou pra fora.
— Oi, Percy — cumprimentou Harry.
— Ah, olá, Harry. Eu estava imaginando quem é que estava fazendo essa barulheira. Estou tentando trabalhar aqui dentro, sabe, tenho um relatório do escritório para terminar, e é difícil me concentrar se as pessoas não param de subir e descer fazendo as escadas reboarem.
— Não estamos fazendo as escadas reboarem — retrucou Rony irritado. — Estamos andando. Desculpe se perturbamos o trabalho secreto do Ministério da Magia.
— No que é que você está trabalhando? — perguntou Harry.
— Sei, sei, tudo bem — interrompeu-o Rony e recomeçou a subir as escadas.
Percy bateu a porta do quarto. Quando Harry, Hermione e Gina iam começar a acompanhar Rony na subida de mais três lances de escada, ouviram os ecos dos gritos na cozinha. Pelo jeito o Sr. Weasley contara a Sra. Weasley sobre os caramelos.
O quarto em que Rony dormia, no último andar da casa, conservava a mesma aparência da última vez que Harry viera passar dias com o amigo; os mesmos pôsteres do time favorito de Quadribol de Rony, os Chudley Cannons, em que os jogadores acenavam das paredes e do teto inclinado, o aquário no peitoril da janela que anteriormente abrigara ovas de rã agora continha um enorme sapo.
O velho rato de Rony, Perebas, não morava mais ali, em seu lugar havia a coruja minúscula que entregara a carta de Rony na Rua dos Alfeneiros. Saltitava numa gaiolinha, piando feito louca.
— Cala a boca, Píchi — disse Rony, manobrando para passar entre duas das quatro camas que haviam sido espremidas no quarto.
— Fred e Jorge estão aqui conosco, porque Gui e Carlinhos ficaram com o quarto dos dois — disse Rony a Harry. — Percy conseguiu ficar com o quarto só para ele porque tem que trabalhar.
— Hum... Por que é que você chama essa coruja de Píchi? — perguntou Harry a Rony.
— Porque Rony está sendo idiota — disse Gina. — O nome todo é Pichitinho.
— É, e isso não é um nome nem um pouco idiota — comentou Rony sarcasticamente.
— Foi Gina que o batizou — explicou a Harry. — Ela acha que é um nome bonitinho. Tentei mudar, mas já era tarde demais, ele não responde a nenhum outro. Então ficou Píchi. Tenho que trancar ele aqui porque vive chateando o Errol e o Hermes. Pensando bem, chateia a mim também.
Pichitinho voava alegremente pela gaiola, piando em tom agudo. Harry conhecia Rony muito bem para levá-lo a sério. Tinha reclamado o tempo todo do seu velho rato Perebas, mas ficara aborrecidíssimo quando pareceu que o gato de Hermione, Bichento, o comera.
— Por onde anda o Bichento? — perguntou Harry a Hermione nessa hora.
— No jardim, espero. Ele gosta de caçar gnomos, nunca tinha visto nenhum.
— Então o Percy está gostando do trabalho? — perguntou Harry se sentando em uma das camas e se pondo a observar os Chudley Cannons entrando e saindo velozes dos pôsteres no teto.
— Gostando? — disse Rony misterioso. — Acho que nem voltaria para casa se papai não obrigasse. Está obcecado. Nem puxe conversa sobre o chefe dele. O Sr. Crouch diz... Como eu ia dizendo ao Sr. Crouch... O Sr. Crouch é de opinião... O Sr. Crouch esteve me dizendo... Qualquer dia desses vão anunciar o noivado dos dois.
— Como foi o seu verão, Harry, bom? — perguntou Hermione.
— Recebeu os pacotes de comida que mandamos e tudo o mais?
— Recebi, muito obrigado. Salvaram minha vida, aqueles bolos.
— E você teve notícias de...? — Rony começou, mas a um olhar de Hermione calou a boca. Harry sabia que Rony ia perguntar por Sirius. Rony e Hermione tinham participado tão intensamente da fuga de Sirius do Ministério da Magia que estavam quase tão preocupados com o padrinho de Harry quanto o garoto.
Porém, falar dele na frente de Gina não era uma boa idéia. Ninguém a não ser eles e o Professor Dumbledore sabiam como o padrinho de Harry havia fugido ou acreditavam em sua inocência.
— Acho que eles pararam de discutir — disse Hermione, para disfarçar o momento de constrangimento, porque Gina olhava com curiosidade de Rony para Harry. — Vamos descer e ajudar sua mãe com o jantar?
— Tudo bem — disse Rony. Os quatro tornaram a descer e encontraram a Sra. Weasley sozinha na cozinha, parecendo extremamente mal-humorada.
— Vamos comer no jardim — disse ela quando os garotos entraram. — Não há lugar para onze pessoas aqui dentro. Podem levar os pratos para fora, meninas? Gui e Carlinhos estão armando as mesas. Facas e garfos, por favor, vocês dois — disse ela a Rony e Harry, e apontou a varinha com um pouco mais de força do que pretendera para um monte de batatas na pia, que saíram da casca demasiado depressa e acabaram ricocheteando nas paredes e nos tetos.
— Ah, pelo amor de Deus! —, exclamou ela, agora apontando a varinha para uma pá, que saltou de lado e começou a patinar pelo piso, recolhendo as batatas. — Aqueles dois! —, explodiu ela furiosa, agora tirando tachos e panelas de um armário, e Harry entendeu que ela estava se referindo a Fred e Jorge. — Não sei o que vai ser deles, realmente não sei. Não têm ambição, a não ser que se leve em conta toda confusão que são capazes de aprontar...
Ela bateu com uma grande caçarola de cobre na mesa da cozinha e começou a agitar a mão para os lados. Um molho cremoso foi escorrendo da ponta da varinha à medida que ela mexia.
— Não é que não tenham inteligência — continuou ela irritada, levando a caçarola para o fogão e acendendo-o com um toque da varinha —, mas estão desperdiçando a que têm e, a não ser que tomem jeito depressa, vão se meter em apuros. Já recebi mais corujas de Hogwarts a respeito dos dois do que de todos os outros juntos. Se continuarem assim, vão terminar tendo que comparecer a Seção de Controle do Uso Indevido da Magia.
A Sra. Weasley apontou a varinha para a gaveta de talheres, que se abriu com violência. Harry e Rony saltaram para o lado ao ver várias facas saírem voando, atravessarem a cozinha e começarem a cortar as batatas que tinham acabado de ser devolvidas à pia pela pá.
— Não sei onde foi que erramos com os gêmeos — disse a Sra. Weasley descansando a varinha e recomeçando a tirar mais caçarolas do armário. — Tem sido sempre assim há anos, uma coisa atrás da outra, e eles não dão ouvidos... AH, OUTRA VEZ, NÃO!
Ela apanhara a varinha da mesa, e a coisa emitira um guincho alto e se transformara em um enorme camundongo de borracha.
— Mais uma varinha falsa fabricada por eles! — gritou ela. — Quantas vezes já disse aos dois para não deixarem essas coisas largadas por aí?
Ela agarrou a própria varinha, e quando se virou descobriu que o molho no fogão estava soltando fumaça.
— Vamos — disse Rony depressa a Harry, enfiando a mão na gaveta e tirando uma mão cheia de talheres —, vamos ajudar o Gui e o Carlinhos.
Eles deixaram a Sra. Weasley e saíram pela porta dos fundos em direção ao quintal. Tinham dado apenas alguns passos quando o gato de Hermione, de pêlo amarelo e pernas arqueadas, saiu saltando do jardim, o rabo de escova de limpar garrafas esticado no ar, caçando alguma coisa que parecia uma batata com pernas, suja de terra.
Harry reconheceu-a instantaneamente, era um gnomo. Mal chegava aos vinte e cinco centímetros de altura, os pezinhos cascudos batendo célere no chão ao atravessar o quintal e mergulhar de cabeça em uma das botas espalhadas à porta da casa. Harry ouviu o gnomo se acabar de rir quando Bichento enfiou a pata na bota, tentando alcançá-lo. Entrementes, ouvia-se um estrépito de coisas que batiam do outro lado da casa. A origem do barulho surgiu quando eles entraram no jardim e viram Gui e Carlinhos, de varinhas em punho, fazendo duas mesas velhas voarem alto pelo gramado e colidirem, cada qual tentando derrubar a outra no chão. Fred e Jorge aplaudiam; Gina ria e Hermione estava parada junto à sebe, pelo jeito dividida entre o riso e a aflição.
A mesa de Gui bateu na de Carlinhos com estrondo e perdeu uma das pernas. Eles ouviram um barulho no alto, todos ergueram os olhos e viram a cabeça de Percy aparecer à janela do segundo andar.
— Dá para vocês maneirarem? — berrou ele.
— Desculpe, Percy — disse Gui rindo. — Como é que vão os fundos dos caldeirões?
— Muito mal — disse Percy irritado e tornou a fechar a janela com uma pancada.
Rindo, Gui e Carlinhos devolveram as mesas em segurança ao chão, juntaram-nas pelas extremidades e, então, com um golpe de varinha, Gui colou de volta a perna da mesa e conjurou toalhas do nada.
Às sete horas, as duas mesas rangiam sob o peso de travessas e mais travessas da excelente comida da Sra. Weasley, e os nove Weasley, Harry e Hermione se sentaram para jantar sob um céu azul escuro e limpo. Para alguém que andara sobrevivendo com refeições de bolos cada vez mais secos o verão inteiro, aquilo era o paraíso e, no primeiro momento, Harry escutou mais do que falou, se servindo de empadão de galinha e presunto, batatas cozidas e salada.
Na ponta da mesa, Percy contava ao pai todos os detalhes do seu relatório sobre os fundos dos caldeirões.
— Eu prometi ao Sr. Crouch que aprontaria o relatório até terça-feira — dizia Percy pomposo. — É um pouco mais cedo do que ele pediu, mas gosto de estar um passo à frente. Acho que ele ficará agradecido por eu ter terminado em menos tempo. Quero dizer, há muito trabalho em nosso departamento neste momento, com todas as providências para a Copa Mundial. Não estamos recebendo a colaboração necessária do Departamento de Jogos e Esportes Mágicos. Ludo Bagman...
— Eu gosto do Ludo — disse o Sr. Weasley em tom ameno. — Foi ele que nos arranjou aqueles excelentes lugares para a Copa. Fiz um favorzinho a ele: o irmão, Otto, se meteu em uma pequena confusão, um cortador de grama com poderes fora do comum, eu acertei o problema.
— Ah, Bagman é uma pessoa agradável, é claro — disse Percy fugindo à questão —, mas como conseguiu ser chefe do departamento... Quando o comparo ao Sr. Crouch! Não posso imaginar o Sr. Crouch perdendo um funcionário do departamento sem tentar descartar Berta Jorkins que está desaparecida há mais de um mês? Saiu de férias para a Albânia e nunca mais voltou?
— Verdade, indaguei ao Ludo sobre isso — respondeu o Sr. Weasley enrugando a testa. — Ele me disse que Berta já se perdeu uma porção de vezes antes, embora eu deva dizer que se fosse alguém no meu departamento eu ficaria preocupado...
— Ah, a Berta não toma jeito, é verdade — falou Percy. — Ouvi dizer que ela é empurrada de departamento para departamento há anos, dá mais trabalho do que trabalha... Mas, mesmo assim, Bagman devia estar tentando encontrá-la. O Sr. Crouch tem demonstrado interesse pessoal, sabe, ela chegou a trabalhar no nosso departamento e acho que o Sr. Crouch gostava bastante dela, mas Bagman fica rindo e dizendo que ela provavelmente leu mal o mapa e em vez da Austrália acabou na Albânia. Contudo — Percy deixou escapar um imponente suspiro, e tomou um bom gole do vinho de flor de sabugueiro —, já temos muito com o que nos preocupar no Departamento de Cooperação Internacional em Magia sem ficar tentando achar funcionários de outros departamentos. Como o senhor sabe, já temos outro grande evento para organizar logo depois da Copa.
Ele pigarreou cheio de importância e olhou para a ponta da mesa em que Harry, Rony e Hermione estavam sentados.
— O senhor sabe do que estou falando, papai. — E alteou ligeiramente a voz. — O evento secreto.
Rony girou os olhos para o alto, e murmurou para Harry e Hermione:
— Ele está tentando fazer a gente perguntar que evento é esse desde que começou a trabalhar. Provavelmente uma exposição de caldeirões com fundo grosso.
No centro da mesa, a Sra. Weasley discutia com Gui por causa do brinco, que aparentemente era uma aquisição recente.
—... Com um canino horroroso pendurado, francamente Gui, que é que eles dizem lá no banco?
— Mamãe, ninguém lá no banco liga a mínima para a roupa que eu uso desde que eu traga muito ouro para eles — disse Gui pacientemente.
— E seus cabelos estão sem corte, querido — disse a Sra. Weasley passando os dedos, carinhosamente, pelos cabelos do filho. — Gostaria que você me deixasse aparar...
— Eu gosto deles assim — disse Gina, que estava sentada ao lado de Gui. — Você é tão antiquada, mamãe. Mesmo desse tamanho, eles não chegam nem perto do comprimento dos cabelos do Professor Dumbledore...
Ao lado da Sra. Weasley, Fred, Jorge e Carlinhos discutiam animadamente a Copa Mundial.
— Vai ser da Irlanda — disse Carlinhos com a voz enrolada por causa das batatas que lhe enchiam a boca. — Eles acabaram com o Peru nas semifinais.
— Mas a Bulgária tem o Vítor Krum — comentou Fred.
— O Krum é apenas um jogador decente, a Irlanda tem sete — cortou Carlinhos. — Mas eu gostaria que a Inglaterra tivesse passado para as finais. Foi um vexame, ah, foi.
— Que aconteceu? — perguntou Harry pressuroso, lamentando mais do que nunca o seu alheamento do mundo mágico quando ficava atolado na Rua dos Alfeneiros. Harry era apaixonado por Quadribol.
Jogava como apanhador no time da Grifinória desde o primeiro ano em Hogwarts e era dono de uma Firebolt, uma das melhores vassouras de corrida do mundo.
— Perdeu para a Transilvânia, por trezentos e noventa a dez — disse Carlinhos sombriamente. — Um desempenho sinistro. E Gales perdeu para Uganda, e a Escócia foi massacrada por Luxemburgo.
O Sr. Weasley conjurou velas para clarear o jardim antes de comerem a sobremesa (sorvete de morangos feito em casa), e na altura em que o jantar terminou, as mariposas voavam baixo sobre a mesa e o ar morno estava perfumado com o aroma de relva e madressilvas.
Harry se sentia muitíssimo bem alimentado e em paz com o mundo, e observava vários gnomos saltarem por dentro das roseiras, rindo como loucos, perseguidos de perto por Bichento.
Rony correu os olhos, cauteloso, pela mesa, verificando se o resto da família estava entretida conversando, depois perguntou baixinho a Harry:
— Então... Tem tido notícias de Sirius ultimamente?
Hermione olhou para os lados, apurando os ouvidos.
— Tenho — disse Harry baixinho —, duas vezes. Tenho a impressão de que está bem. Escrevi para ele anteontem. Talvez receba resposta enquanto estou aqui.
De repente ele se lembrou do motivo por que escrevera a Sirius e, por um instante, esteve prestes a contar aos dois amigos que a cicatriz voltara a doer e que um sonho o acordara... Mas na realidade não queria preocupá-los naquele momento, não quando ele próprio estava se sentindo tão feliz e tranqüilo.
— Gente, olhe as horas! — exclamou subitamente a Sra. Weasley, consultando o relógio de pulso. — Vocês deviam estar na cama, todos vocês, vão ter que acordar quase de madrugada para ir à Copa. Harry, se você deixar a sua lista de material escolar, eu compro tudo para você amanhã, no Beco Diagonal. Vou comprar o dos meus meninos. Talvez não haja tempo depois da Copa Mundial, da última vez o jogo durou cinco dias.
— Uau... Espero que aconteça o mesmo desta vez! — exclamou Harry entusiasmado.
— Eu espero que não — disse Percy, virtuosamente. — Estremeço só de pensar no estado da minha caixa de entrada se eu me ausentar cinco dias do trabalho.
— Um, alguém poderia deixar bosta de dragão nela outra vez, hein, Percy? — comentou Fred.
— Aquilo foi uma amostra de fertilizante da Noruega! — protestou Percy, corando.
— Não foi nada conta mim.
— Foi sim — cochichou Fred para Harry, quando eles se levantavam da mesa. — Fomos nós que mandamos.

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